segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Uma experiência Zen

Uma experiência Zen

            Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


No meu trabalho acadêmico em torno da mística comparada das religiões, tenho me dedicado também aos estudos da mística zen budista. Escrevi alguns textos a respeito, priorizando a experiência de alguns monges-buscadores. Alguns destes textos passei para a amiga querida, Monja Coen, que publicou com generosidade na sua página na internet[1]. O meu contato com o Zen foi sempre mais teórico, com poucas e curtas experiências de Zazen (meditação sentada). Por convite de meu irmão, Pulika, que já participou de vários Sesshins, resolvi fazer uma experiência de um dia no Mosteiro Pico de Raios, em Ouro Preto, fundado em 1984 pelo Mestre Ryotan Tokuda. A ocasião se deu neste agosto, no dia 17, durante o sesshin com a presença do Mestre Tokuda. Foi um “encontro” celebrativo, pois se comemorava os 50 anos da Missão Zen no Brasil e da atuação pioneira de Tokuda em nosso país. O Sesshin é um período de meditação intensiva, que ocorre tanto nos mosteiros da tradição Rinzai como na Soto-Zen. São dias inteiramente consagrados à meditação Zen, que acontecem em determinados períodos do ano, com duração variável, entre três dias a um mês. 

            Meu irmão Pulika foi antes, participando de todo o período do Sesshin, de 15 a 19 de agosto de 2018. Eu cheguei um pouco depois. Fui com minha esposa, Teita, saindo de Juiz de Fora no dia 16 de agosto. Ficamos hospedados nas proximidades do Mosteiro, numa pousada chamada Aldea Zen. O lugar é meio distante do centro de Ouro Preto, localizando-se numa alta colina da cidade, a cerca de 1.500 metros de altura. O tempo estava bem frio, em torno de 12 graus, com neblina acentuada. 

            Não houve muito treinamento prévio para a experiência, nem orientação precisa para o que iria acontecer no dia seguinte, já com o Sesshin em andamento. Alguns dos participantes da experiência, que estavam igualmente hospedados na pousada, deram algumas dicas básicas e ligeiras. Nada de muito aprofundado. Chegamos no final da tarde e tínhamos que dormir cedo para poder acordar às 03:30 e chegar a tempo no Mosteiro. Foi uma noite marcada por certa ansiedade. Não dava para imaginar como poderia reagir à experiência de meditação. 

            Chegamos ao Mosteiro por volta de 04:00, numa noite cerrada. Logo em seguida nos encaminhamos para o Zendo, a sala de meditação que ficava numa localização mais alta do Mosteiro. Tínhamos que fazer uma breve caminhada por uma trilha de pedras, com belas imagens nas laterais. O grupo era grande, bem maior do que o habitual nos Sesshins, talvez em razão do caráter festivo do evento. Na entrada da sala deixamos nossos sapatos ou sandálias e entramos descalços na sala retangular. Junto à sala principal, duas outras salinhas para acomodar alguns participantes. No meu caso, fiquei numa pequena sala junto ao Zendo. Ali estavam 6 pessoas. O lugar que me foi destinado era o do canto, junto a um pequeno altar com imagens de Buda. A posição era difícil, bem junto à parede de pedra. Como ocorre na prática do Zazen, todos ficam voltados para a parede. Foi difícil para mim, que tenho uma prática de meditação diversa. Buscava um despojamento para a experiência nova. Era noite cerrada.

            Com as pessoas acomodadas em seus lugares, já desde 04:20, a meditação podia então começar. E o início aconteceu às 04:30, pontualmente, e o som de um pequeno sino sinalizava o início da prática. A sala estava escura, iluminada apenas por uma pequena vela. Como tinha mais dificuldade para fazer a experiência no chão, consegui um banquinho para me acomodar no canto. Foram 40 minutos de Zazen. Não foi assim tão simples para mim, que buscava acertar a melhor postura e encontrar um ritmo adequado de respiração. A quebra do silêncio ocorria com novo toque do sino. Na sequência, os participantes colocaram-se em fila indiana para fazer o Kinhin, que é a meditação caminhando. Trata-se de uma prática para manter o espírito vigilante, evitando igualmente o entorpecimento das pernas e a sonolência do espírito. Foi uma sessão mais breve, sendo seguida por novo momento de Zazen, igualmente de 40 minutos. Aí foi então mais difícil. Tentar esvaziar a mente e viver intensamente o momento de despojamento. Um passo de abertura e aprendizado para quem vem de uma tradição distinta. Não é mesmo simples passar 40 minutos voltados para a parede, sem a intercorrência de obstáculos para envolver a mente. Sem dúvida, uma questão que exige disposição, preparação e técnica. É a chave essencial do que significa “simplesmente sentar” (Shikantaza). 

            Os dois momentos de Zazen concluíram-se por volta de 6:00, finalizando com a cerimônia matinal (Chôka) de recitação do sutra do coração e o  Niten Shôji (limpeza). Em seguida, o desjejum (Gyohatsu) e um intervalo para os cuidados pessoais. Por volta de 08:30, o trabalho coletivo (Samu), com duração de cerca uma hora. Na sequência, outras duas atividades de Zazen, com início às 10:00, intercalados pela prática do Kinhin. Em seguida, o almoço (Saiza) e um período de descanso. No início da tarde, às 14:00, ocorreu a palestra proferida por Tokuda – o Teishô – com o aprofundamento de passos da doutrina do Dharma. Ainda na parte da tarde, às 17:10, mais um Zazen de 40 minutos e  depois o jantar (Yakusei), servido às 18:00.  Durante a noite, após o jantar, com início às 19:30, mais duas práticas de Zazen, intermeadas por Kinhin. Ao final da noite, por volta de 21:00, o Kaichin, que é o momento da meditação deitada, dando início ao descanso noturno.

            Esta foi a minha experiência, exigente mas enriquecedora. Foi a ocasião propícia para poder colocar em prática o que havia aprendido teoricamente sobre o Zazen. Tudo tão significativo: a postura das mãos, a posição da coluna, as costas eretas, a percepção da respiração. E sobretudo o profundo silêncio, num clima de presença viva comunitária, intensificada pela presença singular de Tokuda. Como sublinhou Raquel Bouso em seu livro sobre o Zen[2], o sentar-se em silêncio como ocorre no Zazen, pode não parecer tão difícil para o praticante habitual, mas certamente o é para nós ocidentais, sobretudo nas experiências iniciais, sempre dolorosas. Alguns dos participantes mais experientes, que estavam na prática de Ouro Preto, diziam-me que o corpo só se normaliza após o terceiro dia de Sesshin. 

            Há três textos importantes sobre o Zazen, escritos pelo Mestre Dôgen (1200-1253), que foi o grande mestre da Escola Soto no Japão. Os textos são: Zazengi (a prática do Zazen); Fukan Zazengi (princípios do Zazen aconselhados a todos); Zazenshin (o aguilhão do Zazen)[3]. São textos breves mas bem significativos e ricos para adentrar-se na compreensão da experiência. Como indica Dôgen, no início do Zazengi, “a prática do Zen é o Zazen”. E para viver com riqueza a experiência há que romper, ou pelo menos buscar romper, com todos os vínculos, apegos, deixando-os à parte. A finalidade, só alcançada pelos grandes mestres, é mesmo “deixar cair corpo e mente” (Shinjin Datsuraku), aquietando o mundo interior. O Zazen é chave para esta viagem ao mundo interior, de forma a captar a luz de prajna, que é a sabedoria. Esta dinâmica vem acentuada por Dôgen no Fukan Zazengi: a rota para o mundo interior. E reitera ainda, como dinâmica implícita no Zazen, o trabalho de busca contínua, de rompimento dos apegos, sem que haja qualquer intenção no praticante de tornar-se um Buda. Daí a importância de não se apegar nem mesmo ao Zazen. O objetivo do Zazen, diz Dôgen, não é o aprendizado de uma técnica, mas simplesmente buscar o “Dharma da paz”, ou então, alcançar o não-pensamento.

             


[2]Raquel Bouso. Zen. Barcelona: Fragmenta Editorial, 2012, p. 19.
[3]Aldo Tollini. Pratica e illuminazione nello Shôbôgenzô. Testi scelti di Eihei Dôgen Zengi. Roma: Ubaldini Editore, 2001.

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