sexta-feira, 11 de maio de 2018

Ikkyû Sojun: a nuvem errante

Ikkyû Sôjun: a nuvem errante

Faustino Teixeira


Considero que um dos canais mais preciosos para acessar ao universo zen é através das narrativas que abordam a trajetória dos grandes mestres desta singular tradição. É o caso da história de Ikkyû Sôjun (1394-1481), monge japonês, reformador, animador e divulgador da prática zen no Japão. A ele estão também ligados uma série de outras iniciativas no âmbito da arte, como a caligrafia, a cerimônia do chá (cha no yu) e do incenso (Kodo), bem como do teatro nô. Não seria exagero assinalar que ele contribuiu para delinear o que se poderia chamar de “alma japonesa”[1]. Ikkyû foi sobretudo um espírito livre, vagante, que não se deixa aprisionar por nenhum enquadramento. Daí a imagem da nuvem errante e volátil, movida pela liberdade do vento. 

Sua vocação nasceu de forma inusitada. Era filho “ilegítimo” do imperador Go Komatsu e de uma dama de corte da antiga família Fujiwara. Como forma de proteção, em razão das conspirações que cercavam sua infância, foi encaminhado pela mãe a um mosteiro zen, Ankokuji, aos cinco anos de idade, e ali foi educado na arte da caligrafia, poesia e pintura. Tratava-se de um mosteiro importante da tradição Rinzai. O período não era dos mais amenos no Japão, com guerras internas e calamidades naturais. Os templos zen firmavam-se como “ilhas de paz e prosperidade”, mas não estavam livres dos influxos políticos e do ritmo da secularização.

Com a aperfeiçoada formação, aos treze anos já possuía um considerável conhecimento dos sutras budistas e da poesia chinesa, e sua veia poética criativa firmava-se pouco tempo depois. Foi igualmente importante em sua vida a presença do monge-poeta Botetsu Ryûhan, de Kenninji, com quem tomou lições de composição. O jovem Ikkyû era mesmo precoce e habilidoso. Sua permanência no templo de Anjokuji transcorreu até o ano de 1410, quando então escolhe por guia espiritual o mestre Ken´ô Sôi, que vivia sem discípulos no eremitério de Saigonji, nas imediações de Kyôto, praticando um zen austero, da linhagem Rinzai, bem afinado com o zen das origens (escola Otôkan). 

A morte de Ken´ô Sôi, em 1414, deixa o discípulo desesperado, e chega a tentar o suicídio. Em busca de um novo mestre, na linha do precedente,  Ikkyû encontra Kasô Sôdon, integrando-se na sua escola, em pequena cidade nas margens do lago Biwa, na região de Kyôto. Permanecia, assim, ligado ao zen Otôkan. Foi com este mestre que o jovem discípulo recebe o nome budista ikkyû, em 1418, cujo significado é “uma pausa”. A iluminação aconteceu dois anos depois, em 1420, de forma inesperada, quando tinha 26 anos. Numa noite de verão, enquanto meditava num pequeno barco no lago de Biwa, ouviu o grasnar de um corvo. Foi uma experiência de abalo e desarranjo interior, que acabou provando o satori, a iluminação. Em poema descreve o acontecimento: “Em vinte anos, nas mesmas paixões. Depois o corvo ri e eu surjo santo da lama do mundo”[2]. Em outro poema assinala:

                 Do mundo das formas
                  De retorno ao mundo sem forma,
                  Uma pausa.
                  Se chove, deixa que chova
                  Se sopra o vento, deixa que sopre

Ikkyû refuta o atestado de iluminação (inka) e parte em peregrinação, alternando sua itinerância entre Kyôto, Nara e Sakai. Porta em seu coração o desafio de um caminho distinto, diferenciado da dinâmica de mercantilização do espírito e da ambição de poder,  que se irradiavam nos mosteiros da época Muromachi (1338-1573). Como bagagem, o ensinamento de Linji (Lin-Chi, morto em 867), centrado no “viver simplesmente”. Percebia ali, no mestre da época Tang (618-907), o vivo pulsar do espírito zen; um ensinamento que vinha se desgastando ao longo do tempo, num progressivo processo de institucionalização e burocratização da mensagem. Com a celebração do “aqui e agora”, Ikkyû rompe com os preceitos impostos pela regra monástica da ocasião: come carne e bebe vinho, frequenta tavernas e bordéis, deixando-se transbordar pela experiência amorosa.

O monge errante não via problema em suas transgressões. Percebia que o caminho empreendido era simplesmente o da sintonia com a natureza, como no caso de sua abertura no campo da sexualidade.  Dizia num de seus poemas que o “fio do eros” corria naturalmente já a partir do nascimento da criança, sendo algo congênito ao ser humano e, portanto, bom por essência. Ao falar dos bordéis, sinaliza a doçura dos abraços e beijos, rejeitando qualquer menção negativa[3]. Não excluía do olhar do verdadeiro mestre a presença do vinho, da carne e das mulheres[4]. Deixou escrito para os seus discípulos, antes de sua morte: “Após minha partida, podereis retirar-vos nas montanhas ou num bosque para meditar, ou então frequentar bordéis e tabernas. Em ambos os casos tereis minha bênção”[5]

Ao final da vida, com setenta e seis anos de idade, encontra uma cantora cega, do templo de Yakushi, Mori, bem mais jovem, com quem vive uma intensa experiência de amor. O encontro ocorreu, possivelmente, em 1470. Muitos de seus poemas traduzem o impacto desse encontro, que deu novo sentido à sua vida. Depois de anos de busca e errância, encontra nos braços de uma jovem respostas novidadeiras, que suscitam uma renovada criatividade poética. Como costuma acontecer no zen: uma vez alcançada uma meta, percebe-se que tudo era muito simples, bem mais simples do que se imaginava. Diz num de seus poemas, recorrendo à imagem das “mãos de buda”: “Como pode, minha mão, igualar-se com as mãos de Mori, incomparável mestra de todo jogo de amor”[6].

A poesia de Ikkyû é também um grito de guerra contras as práticas devocionais, contra o mundo das formalizações. Seu testemunho subverte o olhar tradicional, causa impacto e às vezes rejeição. Sua palavra de ordem é relativizar toda certeza garantida, lançando uma dúvida essencial, capaz de despertar uma nova chispa. Daí sua predileção pela imagem do vento, que rompe com a trama das fixações, que aponta para uma espontaneidade nova, ao mesmo tempo flexível e vigorosa. Numa passagem atribuída a Ikkiû se diz:

Onde vai o senhor?
- Eu vou onde     toca o vento
E quando não há vento?
- Então eu faço o vento!

            Com base em tema de ascendência taoísta, o ideal chinês do fengliu, que evoca a imagem do pescador que se deixa transportar pelo vento, Ikkyû vai expressar sua predileção por uma “sabedoria nutrida pela espontaneidade da natureza”. O vento é um tema recorrente na poesia de Ikkyû, expressando também a leveza e a gratuidade. 

                                 Nuvem vagante, o que é este vento
                                    louco que te embala?
                                    A manhã sobre os montes,
                                    A noite na cidade.
                                    Se assim tempestivo golpeasse
                                    com o urlo ou o bastão,
                                    rasgaria também Tokusan
                                    e o mestre Rinzai[7].
                                    
            Um ponto que liga os místicos zen com os filósofos do TAO é a escassa fidelidade aos confrontos da palavra. A palavra, na verdade, com sua vocação definitória, não pode senão distanciar-se da pureza do que o zen chama “o rosto originário”. A iluminação, satori,  não é senão esta imersão na “experiência direta da realidade na sua indiferenciação primordial, uma imersão no Nada/Tudo onde os opostos ganham coincidência antes de articular-se na infinita multiplicidade das formas”[8]. Não há como negar a importância dos mestres e de suas palavras virtuosas, sobretudo como ajuda no itinerário inicial, mas o que permanece em seguida é simplesmente o “rumor de fundo”. Para além das palavras há um abismo mudo. Dizia o mestre Lin-Chi: “Os três veículos e as doze divisões dos ensinamentos são papel higiênico (legnetti grata-merda). O Buda é um corpo ilusório”[9]. Não há muito o que fazer, diz Lin-Chi, e o caminho que se abre é o da simplicidade: “vestir-se, comer e transcorrer o tempo sem fazer nada”[10].

            Ikkyû, em coerência com a concepção Rinzai, nutre certo desconforto nos confrontos de uma iluminação silenciosa, conseguida ao longo dos anos em meditação extática. Dizia, reportando-se a Bodhidharma : “Nove anos a fixar uma parede, há mérito nisto?[11]”. Ele não refuta integralmente a prática da meditação, mas a considera apenas um dos passos possíveis para o desvelar da consciência. Sua empatia mais decisiva vai ao encontro da coisas da natureza, da circulação entre os humanos, da presença viva junto ao ritmo do cotidiano. O permanecer unicamente fixado diante de um “muro” (biguan) revela-se como algo limitado ou mesmo estéril. É o mesmo Boddhidharma que serve como referência para ele, quando busca um caminho alternativo. Quando o antigo patriarca encontra-se com o imperador Wu, vem interrogado: “Construí templos e ordenei monges. Que mérito há nisto?”. Como resposta ouviu: “Não há mérito”. Com base nesta reflexão, argumenta Ikkyû: “Como não há mérito em construir templos, não há igualmente mérito em permanecer imobilizado numa meditação extática e fechada em si mesma”[12]. Num de seus poemas, Ikkyû faz menção à “Grande sabedoria”, distinta da “pequena sabedoria”. Trata-se, na visão taoísta, de uma consciência que tudo abraça. A captação da energia do universo não ocorre, simplesmente, mediante a observância da doutrina ou da literatura[13], mas mediante a atenção aos ritmos e aos movimentos da natureza fora e dentro de nós. Como ele diz num poema:

                                  Qual exercício de ciência
                                  Vale o canto do pescador?[14]

            Os limites da linguagem, e mesmo da poesia, vêm reconhecidos pelo místico itinerante:

                                  Cinquenta anos
                                    que destilo poesia pelas meninges,
                                    e sequer me avizinho
                                    ao zen do velho Sôtô[15]

                  A crítica à exclusividade da meditação extática vem acompanhada de advertência aos eremitas que se fecham no seu mundo ensimesmado. Num poema sobre o eremita da montanha, Ikkyû lança sua crítica ao caminho ascético que acaba por desprezar o mundo e a relação com suas criaturas.  Faz menção ao eremita Nanyang, que junta nos braços o máximo de folhas para se aquecer no inverno, mas permanece só, e está bem assim, mas sua sabedoria revela-se árida, deixando escapar a beleza de um justo olhar sobre o mundo[16]. O justo olhar, na ocular de Ikkyû, é aquele capaz de compreender as coisas na sua realidade.

            Segundo Lin-Chi, o Buda “não tem forma”, assim como o Dharma “não tem sinal”. O praticante verdadeiro não pode apegar-se aos vínculos, mas deixar-se mover pelo vento, pela gratuidade. O Buda, como cada um de nós, nasce e morre[17]. Assim também a lógica do pensamento de Ikkyû. Na verdade, o divino habita no íntimo de cada um, estando também disponível no aqui e agora. O que se faz necessário é apenas libertar o olhar da névoa que interdita a visão. Mesmo reconhecendo uma profunda gratidão por seu mestre, Kasô, o itinerante Ikkyû busca novos horizontes.  O satori é precisamente isto: o ponto de chegada de um processo gnosiológico que tende não apenas ao conhecimento, mas ao processo de explicitação do divino que já está latente dentro de nós. Isto requer, como mostra Dôgen, o conhecimento de si, o esquecimento de si a abertura de si para acolher o mistério do real. E esse trabalho é fruto também de esforço pessoal ou de disponibilidade/despojamento a um acolhimento:

Desde o princípio do mundo
a verdade não teve mestres,
mas se colhe por si
por um lampejo espontâneo do coração.
Saibam, ó meus noviços
que acabam de ser ordenados,
o eterno está aqui e agora
enquanto tomam forma as minhas palavras[1].


[1]Ikkyû Sôjun. Nuvole vaganti, p. 92.



[1]Ornella Civardi. Introduzione. In: Ikkyû Sôjun. Nuvole vaganti. La raccolta di um maestro zen. Roma: Ubaldini Editore, 2012, p. 8; Erik Sablé. Dizionario del buddhismo zen.Genova: Melangolo, 2013, p. 85-89.
[2]Ikkyû Sôjun. Nuvole vaganti, p. 181-182.
[3]Ibidem, p. 78-79.
[4]Ibidem, p. 77.
[5]Ibidem, p. 13.
[6]Ibidem,  p. 177.
[7]Ibidem, p. 110.
[8]Ibidem, p. 16.
[9]Tich Nhat Hanh. Nulla da cercare. Un comento alla raccolta di Linji. Roma: Astrolabio, 2007, p. 33 (ensinamento 19). 
[10]Ibidem, p. 33 (ensinamento 18).
[11]Ikkyû Sôjun. Nuvole vaganti, p. 63.
[12]Ibidem, p. 60.
[13]Ibidem, p. 192-193 (no poema “contra a literatura”)
[14]Ibidem, p. 73.
[15]Ibidem, p. 194. Trata-se de Betsugen Enshi.
[16]Ibidem, p. 84.
[17]Tich Nhat Hanh. Nulla da cercare, p. 34-35 (ensinamento 19).
[18]Ikkyû Sôjun. Nuvole vaganti, p. 92.

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