domingo, 6 de maio de 2018

A abertura necessária: novos desafios para a cristologia

A abertura necessária: novos desafios para a cristologia

Faustino Teixeira

            Desde a publicação da Declaração Dominus Iesus (DI) da Congregação para a Doutrina da Fé (CdF), em agosto de 2000, o tema da unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo ficou pontuado numa perspectiva bem determinada, com a ênfase na definitividade e completude da revelação de Jesus Cristo (DI 5)[1]. O debate teológico permaneceu balizado, em certo sentido, por tal horizonte. E agora, mais recentemente, o tema volta à baila com a carta Placuit Deo(PD), da mesma CdF. No cerne da reflexão, a indicação precisa de que “a Boa Nova da salvação tem um nome e um rosto: Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador”. O caminho da salvação, precisa o documento, “consiste em incorporar-se nesta vida de Cristo” (PD 11)[2].

            Este tema veio muito debatido na teologia cristã do pluralismo religioso, com nuances diversificadas. Alguns teólogos, a meu ver, conseguiram colocar a questão em parâmetros mais plausíveis e singulares, tendo em vista a atual situação do pluralismo religioso. É o caso, por exemplo de Jacques Dupuis. Ao abordar o tema da revelação em Jesus Cristo, mostrou com pertinência que tal revelação não pode ser vista como absoluta. Ela é, sim, decisiva para os cristãos, mas mesmo para eles não pode ser vista como definitiva, pois o mistério da revelação de Deus envolve também outras palavras. Como indicou Dupuis, 

“as sagradas escrituras das nações representam, juntamente com o Antigo e Novo Testamentos, várias maneiras e formas com as quais Deus se dirige aos seres humanos no processo contínuo da auto-revelação divina a eles endereçada”[3].

            Nesta linha reflexiva, não se poderia chamar de “absoluta” esta revelação de Deus em Jesus Cristo, sobretudo em razão de seu traço limitado. Retomando Dupuis, ele diz: 

“Vamos evitar a todo custo falar de ´absoluto` quer referindo-se a Jesus Cristo que, a fortiori, referindo-se ao cristianismo. A razão é que o ´absoluto` é um atributo da Realidade última ou Ser Infinito, que não deve ser atribuído a nenhuma realidade finita, até mesmo à existência humana do Filho-de-Deus-feito-homem”[4]

A revelação de Deus em Jesus Cristo é, portanto, limitada sobretudo em razão da consciência humana de Jesus[5]. O campo revelador não se fecha, assim, com Jesus, mas permanece aberto para muitos outros elementos que envolvem o plano divino de salvação para a humanidade. É o que também mostrou com afinco Christian Duquoc: 

“Revelando-se em Jesus, Deus não absolutizou uma particularidade; ao contrário, nenhuma particularidade histórica é absoluta, e que em virtude desta relatividade, Deus pode ser alcançado na nossa história real”[6]

Sem dúvida, a manifestação de Deus em Jesus não encerra a história da religião; esta permanece aberta aos sinais reveladores do Mistério. Tudo vem inserido numa maravilhosa sinfonia inter-religiosa, onde os aspectos bons, belos e verdadeiros presentes nas distintas manifestações religiosas das nações somam-se para configurar a verdade religiosa[7].

            Nada disto tira a pertinência e o significado do caminho específico trilhado e abraçado pelos cristãos e sua referência a Jesus Cristo. Permanece válida a afirmação de que para os cristãos Jesus continua sendo o “testemunho normativo central da realidade de Deus”[8].  É algo que se vivencia e confessa no âmbito interno da fé cristã, mas que não pode ser ampliado como perspectiva universal e válida para todos. Como pontua Roger Haight, 

“os cristãos hoje podem relacionar-se com Jesus como normativo da verdade religiosa acerca de Deus, do mundo e da existência humana, convictos, ao mesmo tempo, de que também existem outras mediações religiosas que são verdadeiras e, portanto, normativas”[9]

Isso significa que perde plausibilidade histórica a afirmação que estabelece um nexo causal entre Jesus e a salvação de todos. Trata-se de uma posição que foi “minada por simples internalização da consciência histórica”[10].

            Um olhar atento aos evangelhos nos possibilita ver que Jesus foi, em realidade, teocêntrico. Sua mensagem é teocêntrica, pois aponta para além dele mesmo, em direção ao Mistério maior. A mediação de Jesus como profeta, ou mesmo o seu papel de Cristo, indicam, em verdade, uma perspectiva descentradora. Ele, Jesus, nunca ocupa o lugar central. É alguém que orienta “para Outrem, cujo nome é indizível”[11].

            Num precioso artigo sobre o tema do cristianismo e as outras religiões, o teólogo belga Adolphe Gesché lança uma interessante chave para relativizar a ideia de que o cristianismo é a única religião verdadeira. Ele busca traçar, a partir do próprio cristianismo, os elementos imanentes que indicam o caminho para uma abertura. Entre os pontos de imanência abordados por ele, está o que chamou de luta contra a idolatria. Sublinha que haverá sempre, para a glória de Deus e a nossa, uma “distância” entre o Mistério maior e nós. E Cristo mesmo nos coloca em guarda contra o abafamento desta distância (Jo, 14,28). E argumenta:

“Assim, inclusive na religião da encarnação de Deus, Jesus não cessa, no Evangelho, de nos lembrar que devemos dirigir-nos ao Pai e não a ele. Em nossa teologia pode haver, como lembrou com frequência Congar, um cristocentrismo que não é cristão. Talvez seja também um dos sentidos do segredo messiânico. Qualquer cristianismo que absolutize o cristianismo (Cristo inclusive) e sua revelação seria idolatria”[12].

            Também reage sobre isto o teólogo evangélico, Pierre Gisel, em artigo sobre a tentação da absolutidade. Trata-se da tentação de isolar a figura de Jesus, de concentrar-se unicamente nela como porta para o Absoluto. Uma perspectiva que segundo o autor sombreia a ideia da mediação de Jesus:

“Positivamente: a figura de Jesus Cristo deve permanecer comandada pelas únicas questões teológicas legítimas na matéria: a de Deus (sua identidade e sua verdade), a do humano (sua identidade e sua verdade). Sem isto Cristo se faz substituto de Deus (transforma-se em ídolo) e/ou super-homem (modelo fantasmático). Longe de levar a Deus (ao supremo que ele é, em toda realidade e verdade) ou de ser o ´caminho` para Deus, ele obstrui o espaço – humano! – de questionamento e de experiência”[13].

            Numa sólida perspectiva evangélica, não há como isolar Jesus do projeto maior do Pai, de Jesus do Reino anunciado por ele[14]. Nada mais problemático do que um Jesus sem Reino. Na medida em que se amplia este quadro, abre-se um caminho novo para o diálogo entre as religiões. Se o chamado de Deus pode ser percebido e captado pelas outras tradições através do exercício agápico que ocorre no seio delas mesmas, isto significa que elas passam também a ocupar um lugar importante como testemunhas do Reino[15]. O cristianismo não detém o monopólio da revelação de Deus, mas é uma tradição que se coloca também sob a escuta permanente de seus enigmas. Os cristãos também ganham no diálogo quando se exercitam neste trabalho da escuta: 

“Pela experiência e testemunho alheio, serão capazes de descobrir com maior profundidade certos aspectos, certas dimensões do mistério divino, que haviam percebido com menor clareza e que foram comunicados com menos clareza pela tradição cristã”[16].



[1]Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Iesus. Sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2000.
[3]Jacques Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 348.
[4]Ibidem, p. 390.
[5]Jacques Dupuis. Perché non sono eretico. Teologia del pluralismo religioso: le acuse, la mia difesa. Bologna: EMI, 2014, p. 136-137.
[6]Christian Duquoc. Un dio diverso. 2 ed.  Brescia: Queriniana, 1985, p. 137.
[7]Edward Schillebeeckx. História humana revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, p. 214-215.
[8]Roger Haight. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 413.
[9]Ibidem, p. 464
[10]Ibidem, p. 466.
[11]Christian Duquoc. O único Cristo. A sinfonia adiada. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 92-93; Edward Schillebeeckx, História humana revelação de Deus, p. 214; Roger Haight. Jesus, símbolo de Deus, p. 466.
[12]Adolphe Gesché. O cristianismo e as outras religiões. In: Faustino Teixeira (Org). Diálogo de pássaros. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 56-57.
[13]Pierre Gisel. Os limites da cristologia ou a tentação da absolutidade. Concilium, n. 269/1, 1997, p. 96.
[15]Jacques Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 472.
[16]Ibidem, p. 521.

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