sábado, 2 de dezembro de 2017

Misericordiar: a viagem de Francisco a Myanmar e Bangladesh

Misericordiar: a viagem de Francisco a Myanmar e Bangladesh

Faustino Teixeira

            Não há dúvida, um dos traços mais importantes do pontificado de Francisco é a prática da Misericórdia, mas também da Hospitalidade. Desde o início de sua presença apostólica ele vem marcando sua atuação pela retomada ardorosa desta convocação humanitária. Ele mesmo gosta de dizer que “o nome de Deus é Misericórdia”. Num tempo marcado pela desesperança, por dolorosos episódios de ódio entre povos, culturas e religiões, bem como  pelos acirramentos identitários, Francisco solta a voz em favor do toque da Misericórdia. E sublinha: “Só quem foi tocado, acariciado pela ternura da misericórdia, conhece verdadeiramente o Senhor”[1]. E quando fala em misericórdia indica que ela comporta obras de exercício de disponibilidade corporal, que vem prolongada em misericórdia espiritual. Francisco recorre ao grande místico espanhol, João da Cruz, para nos lembrar que “na noite da vida, seremos julgados pelo amor”[2].

            Ao lado da Misericórdia, o convite à hospitalidade. É outro traço das inúmeras mensagens e homilias de Francisco, como as que pronunciou nesta recente viagem a Myanmar e Bangladesh no final de novembro e início de dezembro de 2017. De seu coração brota o apelo mais sincero em favor do diálogo e da defesa da diferença. Um mote que vem se repetindo ao longo de sua atuação evangélica, como tão bem expresso na exortação apostólica Evangelii Gaudium: “A diversidade é bela”[3]. Na saudação proferida por Francisco no encontro com os líderes religiosos de Myanmar, no arcebispado de Rangún (28/11/2017) ele foi enfático ao sublinhar que “a paz se constrói no coro das diferenças”, e assim também a unidade. Contra uma tendência crescente na linha da uniformidade, o papa enfatiza a riqueza das diferenças, sejam étnicas, religiosas ou populares. O diálogo se firma a partir destas mesmas riquezas.[4] Volta a assinalar esse traço na viagem a Bangladesh, quando indica que a diversidade não pode ser vista como ameaça, “mas como potencial fonte de enriquecimento e crescimento”.[5]

            O testemunho que Francisco deixa nestas duas viagens é de defesa da fraternidade, harmonia e paz entre as religiões do mundo. Foi o que expressou no belo discurso no encontro com o conselho supremo shanga dos monges budistas: “Sabemos, com base nas nossas respectivas tradições espirituais, que existe realmente um caminho para avançar, há um caminho que leva à cura, à mútua compreensão e respeito; um caminho baseado na compaixão e no amor”.[6] Como horizonte almejado, a vontade de conexão, firmando as essenciais redes de relações. Na verdade, tudo está interligado, como vem afirmando Francisco desde sua carta encíclica Laudato si (2015). Aos monges budistas retoma este argumento, relacionando-o com a busca da profundidade:

“O grande desafio dos nossos dias é ajudar as pessoas a abrir-se ao transcendente; ser capazes de olhar-se dentro em profundidade, conhecendo-se de tal modo a si mesmas que sintam a sua interconexão com todas as pessoas; dar-se conta de que não podemos permanecer isolados uns dos outros”.

Trata-se de um caminho que irmana Buda e São Francisco de Assis, como convite aberto a todas as tradições religiosas.

            O espírito de abertura, lembra Francisco, desperta o “coração pulsante”, em favor de uma cultura de harmonia, paz e encontro:

“Quanto necessita o nosso mundo que este coração bata com força, para contrastar o vírus da corrupção política, as ideologias religiosas destrutivas, a tentação de fechar os olhos às necessidades dos pobres, dos refugiados, das minorias perseguidas e dos mais vulneráveis! Quanta abertura é necessária para acolher as pessoas ao nosso redor, especialmente os jovens que às vezes se sentem sozinhos e confusos na busca do sentido da vida!”[7].

            Em discurso no encontro inter-religioso de Bangladesh, Francisco sublinha que a abertura do coração é como “uma escada que alcança o Absoluto”. Num dos momentos mais sensíveis de sua viagem, acolhe com carinho os refugiados Rohingya, e pede a eles perdão pela “indiferença do mundo”. Indica que eles trazem consigo “o sal de Deus”, e que “a presença de Deus hoje, também se chama ´Rohingya`”.[8]

            Diante das circunstâncias adversas, essa foi uma viagem de extrema coragem de Francisco, quando muitos indicavam a necessidade de muita prudência e cautela. Mas o que valeu mesmo foi a tranquilidade do papa em transmitir o que pulsa firme em seu coração, em favor da misericórdia e hospitalidade. Não há resistências que possam impedir esse essencial gesto evangélico.





[1] Francesco. Il nome di Dio è misericórdia. Milano: Piemme, 2016, p. 50.
[2] Ibidem, p. 109.
[3] Francisco. Evangelii Gaudium. A alegria do evangelho. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013, n. 230.

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