quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Muçulmanos no Brasil

Muçulmanos no Brasil

Faustino Teixeira
(agosto de 2017)


1. A chegada de imigrantes/refugiados de países islâmicos terá impacto no número de praticantes dessa religião no Brasil?

Que haverá um impacto, não há dúvida. O que é motivo de preocupação é a forma como tais imigrantes serão acolhidos em nosso país. Já percebemos aqui ou ali reações de resistência ou oposição a esta presença, reproduzindo uma tendência que é comum nos países da Europa, onde o xenofobismo e o etnocentrismo firmam-se com muita virulência. Como mostram os estudiosos de islã no Brasil, como Sílvia Maria Montenegro, a comunidade muçulmana aqui no Brasil tem características bem peculiares. Vivem no país em clima de paz e tolerância. Não vivemos numa “zona de guerra”, onde a comunidade muçulmana vem perseguida, expulsa ou segregada. Tensões ou conflitos demarcados ocorreram depois de setembro de 2011, mas localizados. Na nova conjuntura internacional, com os conflitos na Síria, em países africanos e em outras regiões com forte presença muçulmana, o risco de reações etnocêntricas tende a crescer, com consequências nefastas, também aqui em nosso país.

2. Existe um número realista do total de muçulmanos no Brasil, e qual foi o crescimento em relação a alguns anos atrás?

Peter Berger, em livro recentemente publicado no Brasil – Os múltiplos altares da modernidade (Vozes, 2017) -, sublinha que o islã e o pentecostalismo constituem os “dois fenômenos mais dinâmicos do cenário religioso global”. O Crescimento do islã, em âmbito mundial, é mesmo impressionante. É uma tradição religiosa que já ultrapassou o catolicismo em número de adeptos, e se aproxima do cristianismo como um todo. São quase 2 bilhões de adeptos do mundo. No Brasil sua presença ainda é pequena, como indica o último Censo Demográfico, de 2010. O Censo registrou a presença de 35.167 muçulmanos no Brasil. Em comparação ao Censo de 2000 houve um crescimento de 29,10%, já que naquela ocasião o registro era de 27.239 muçulmanos. Os dados do Censo são contestados pelas instituições islâmicas do país, que acreditam que esse número seja bem maior, indicando uma presença superior a 1 milhão de adeptos.


3. Como tem sido o diálogo das religiões majoritárias do país com as lideranças muçulmanas? 

Como mencionei anteriormente, os muçulmanos no Brasil adaptaram-se bem ao clima de abertura e sincretização que marca o campo religioso brasileiro. Não pontuam a sua presença com os toques de conflitualidade, mas com o ritmo da tolerância. Com respeito às religiões majoritárias, em particular o catolicismo, o modo de abordagem e relação com os muçulmanos é também tecido por abertura e tolerância. Pode-se observar a presença comum de cristãos e muçulmanos nos grandes eventos inter-religiosos, num clima de harmonia e paz. É verdade que crescem também no país determinadas formas de presença neopentecostal, ou mesmo de catolicismo carismático, com indícios de oposição e mesmo beligerância contra as outras tradições religiosas. Isso é motivo de preocupação. Mas, simultaneamente, emergem igualmente os movimentos que rebatem tal posicionamento de intolerância, em favor de uma convivência mais harmônica, defendendo a riqueza da pluralidade inter-religiosa.

4. Existem estratégias definidas e já em pratica dos líderes religiosos islâmicos para promover a religião no Brasil? Se houver, poderia mencionar algumas?

Os estudiosos do islã no Brasil falam do grande crescimento de instituições islâmicas no Brasil, com uma concentração mais precisa na área urbana, sobretudo no Sudeste e no Sul. Quanto ao número de adeptos, sua maior presença é em São Paulo, com cerca de 23% da população muçulmana, vindo Foz de Iguaçu em segundo lugar, com cerca de 15,9% dos muçulmanos. É grande a presença dos imigrantes ou de seus familiares, mas ocorre progressivamente o fenômeno da conversão de brasileiros, e isto se dá por vários motivos: através do caminho intelectual, da admiração pela cultura islâmica ou da busca mística (a sedução do sufismo). As instituições islâmicas que atuam no país servem-se de várias estratégias para promover a religião no Brasil. Mas há divergências, ou mesmo tensões envolvendo as comunidades muçulmanas em seu processo de integração no país, como no dilema de se firmarem como arabistas ou não.

5. Uma parte dos evangélicos (em geral pastores) temem pelo crescimento da religião islâmica como uma ameaça à "paz" no Brasil, no sentido de atrair extremistas e terroristas. Esse temor tem algum fundamento? Existe algum fato que possa corroborar com essa ideia?

O fenômeno do fundamentalismo, e mesmo do fanatismo religioso, não é uma prerrogativa da tradição muçulmana. Trata-se de um fenômeno que ocorre em todas as tradições religiosas. Num mundo que se firma cada vez mais como plural, as reações fundamentalistas se irradiam, indicando um “esforço para restaurar a certeza ameaçada” (P.Berger). O medo maior é o da “contaminação cognitiva”, daí a resistência a qualquer conversação ou abertura dialogal. No caso do islã, verifica-se a presença desviante dos movimentos islamistas, mas que não traduzem a riqueza do patrimônio religioso da tradição muçulmana. Vale a preciosa advertência lançada pelo príncipe real da Jordânia, El Hassan bin Talal, no seu livro, Ser muçulmano (2001): “O Ocidente deve tratar com o devido respeito a um mundo religioso que conta entre os seus seguidores uma pessoa em cada cindo”. O desafio fundamental no tempo atual não é o do rechaço, mas da acolhida essencial. Como disse com razão o papa Francisco em sua exortação apostólica, A alegria do evangelho (2013): “A diversidade é bela”.

6. Como tem se dado a ação social de ONGs ligadas a igrejas (católicas e protestantes) no acolhimento aos refugiados em geral e aos muçulmanos em particular?

No âmbito católico a conjuntura é bem favorável, sobretudo com a nova sensibilidade eclesial levada a efeito por papa Francisco. A palavra chave é Misericórdia e Acolhida. Tanto a Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB) como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) buscam incentivar as distintas ONGs nesse importante trabalho de hospitalidade. Sinais importantes já começam a se verificar em nosso país nesse sentido de abertura.

7. Em sua visão, quais as maiores dificuldades que os muçulmanos que chegam ao Brasil enfrentam?

O problema mais grave relaciona-se aos ecos de intolerância que vêm de fora, com a ideia nociva e preconceituosa de que os muçulmanos, em geral, são portadores de ódio e violência. Trata-se de uma visão que acaba contagiando núcleos de brasileiros. São ideias que se apoiam em visões problemáticas, como as defendidas por Samuel Huntington, que fala em “choque de civilizações”, com base numa visão violenta do islã. Cria-se, assim, um circuito que incrementa paixões nacionalistas com repercussões mortíferas. Os meios de comunicação social acabam também se envolvendo nessa toada de intolerância, acirrando os ódios e divulgando uma visão nefasta sobre uma tradição que é bem mais complexa e rica. Vivemos, infelizmente, num ambiente cultural de rechaço à hospitalidade e de acirramentos identitários. É neste contexto que encontramos visões que mutilam o islã, vindas de toda parte, que acabam por reduzir a ordem islâmica “a um código penal, despojada de seu humanismo, estética, buscas intelectuais e devoção espiritual”.

8. Como os líderes evangélicos poderiam trabalhar para ajudar, de maneira cristã, aqueles que estão chegando, fugindo de guerras?

É, sem dúvida, um desafio que envolve os católicos, mas também os protestantes e pentecostais, que são os núcleos religiosos de importante presença hoje no Brasil, junto com os que se definem como “sem religião”. Há que vencer muitas barreiras, de preconceitos e intolerâncias, e romper com o “desgaste de compaixão” e a indiferença que marcam o nosso tempo. Por sorte, um dos traços mais característicos da religiosidade no Brasil é o da complementaridade. A palavra que aqui soa mais forte não é a da rejeição, mas da inclusão e da inter-relação. A esperança é que essa nota permaneça como a mais substantiva.



(Entrevista concedida a Marilia Camargo Cesar, jornalista e escritora – agosto de 2017)

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