sexta-feira, 23 de junho de 2017

O Demônio no Grande Sertão


Faustino Teixeira


Uma leitura fantástica: o texto de Dora Ferreira da Silva sobre “O demoníaco em Grande Sertão: Veredas” (Diálogo – Revista de Cultura, n. 8 – Novembro de 1957). Um texto gentilmente cedido pelo amigo querido, Rodrigo Petrônio. Um tema que sempre me intrigou nessa obra de Guimarães Rosa: Deus e o Diabo.

Mesmo repetindo-se várias vezes nas páginas do “Grande Sertão” que o diabo não existe, sua presença está sempre ali: como uma “conjectura obstinada”, perseguindo Riobaldo como uma “coceira do espírito”. Esta latência do demoníaco está presente e viva nessa obra de Guimarães Rosa.

As dúvidas sempre retomam na consciência de Riobaldo: “Pois, não existe! E, se não existe, como é que se pode contratar pacto com ele? E a ideia retorna”. O Demo está sempre na espreita, esse “oco de ser” que forma forma com as presenças. E há aquela misteriosa “intervenção psíquica” que marca a trajetória de Riobaldo e o investe de um novo poderio. Um pacto  com o Demo, que outros, como Hermógenes, fizeram consagrando uma investidura singular que amplia o poderio.

Um sentimento singular investe Riobaldo, e vem percebido por Diadorim que reconhece esse estranhamento: “você está diferente de toda pessoa”. Um “estado secreto” investe a alma de Riobaldo, revelando uma “duplicidade” em sua alma. Vagava assim entre duas alternativas... Aliás, como ocorre entre todos os seres humanos. Ele, Riobaldo, “não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo”.

Como sublinha com acerto Dora Ferreira, “a parte do  demônio não prepondera em seu espírito e, como diz ele numa bela imagem: ´o demônio não consegue espaço de entrar, em meus belos palácios`. De certo modo, o que sustentava Riobaldo em suas lutas e dúvidas era toda uma assistência de fervor espiritual, as orações de Otacília, o bem-querer de Diadorim, as rezas encomendadas, que davam força à vozinha fraca nos miúdos remansos onde o diabo não podia entrar.

Gravitava sobre ele o amparo do amor feminino que ascendia até a figura protetora da Virgem: ´Agarrei tudo em escuros – mas sabendo de minha Nossa Senhora! O perfume do nome da Virgem perdura muito; às vezes dá saldos para uma vida inteira`”.

Na verdade, esse grande livro de Guimarães, como também já lembrou Antônio Cândido, traz em seu bojo uma metafísica profunda: é um livro que aborda a questão da “travessia do humano”. E nessa travessia, os riscos que desfiguram a luz, provenientes dos mais sombrios porões do ser. A travessia da existência não é algo fácil, todos sabemos. Há os momentos de luz, suaves e diurnos, expressos nos caminhos ensolarados do sertão;  mas também os momentos noturnos, de catábase, de descida aos infernos, de encontro com o Mal...

Como indica Dora, “o roteiro existencial de Riobaldo espelha justamente essa tensão entre dois polos contrastantes, essa oscilação entre o lado diurno e noturno do seu ser, que se resolve no trajeto de uma vida rica e profunda, vasada no modelo e na protoforma desse mito. O herói deve conhecer todas as dificuldades e asperezas do caminho que o levará a si mesmo, à clara formulação do seu destino. Assim é que a linha de desenvolvimento de Grande Sertão: Veredas parece montada sobre esse tema universal e imemorial, representando uma variação desse conteúdo: travessia humana, travessia astral”.


(abril de 2014 – Facebook)

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