sexta-feira, 19 de junho de 2015

Névoa e Assobio

Névoa e Assobio 

Existirmos, a que será que se destina

Caetano Veloso



Faustino Teixeira



Uma das grandes alegrias que tive nessas semanas foi o convite maravilhoso de Bia Dias para fazer a apresentação de seu livro. Que desafio! Acabo de ler o texto completo, que vem contemplado com um título maravilhoso: Névoa e Assobio (Relicário Edições, com desenhos de Julia Panadés). 

Nesses dias venho ruminando cada passagem, cada postagem, e tudo traz recordação, mas também a força e a garra de uma mulher que veio reencantada por uma criança que viveu apenas cinco dias, mas cinco dias que preencheram de luz tantas vidas, não só a da Bia ou de Maurício. Também a minha. 

Lendo toda essa memória sinto que saio reencantado. Retomo aqui uma passagem linda da escrita de Bia, datada de 26 de agosto de 2014. Ela passava por momentos muito difíceis, acompanhando aquela criança frágil na UTI Neonatal. De repente, a enfermeira responsável pelo aleitamento materno guia Bia com seus braços firmes para as máquinas que iriam extrair o seu leite e animar Caetano. A enfermeira olha para Bia e diz: "Você já parou para pensar na beleza que há nesse seu esforço insistente de querer passar 1 ml de leite pela sonda para seu filho?" Diante daquela acolhida, Bia responde com o silêncio, mas também com o encantamento de uma presença que fala. E Bia assinala refletindo sobre aquele gesto: "Eu não tinha nenhuma garantia, mas ainda assim, fazia aquilo com uma força impressionante. Talvez o sentido da vida seja esse esforço insistente de acreditar na potência do mínimo, na força do gesto, no amor levado ao último extremo dessa perspectiva poética e mística: uma gota de leite que se torna oceânica". 

Refleti muito com Bia sobre tudo o que ela passou, e mencionei sempre a presença de uma força mística que a fortalecia para lidar com essa experiência abissal. Ela mesma se deu conta, em diálogo comigo no Face, que vivenciou uma experiência mística. Reconheceu que "Caetano nasceu de uma série de experiências místicas desde o início", desde a "gota improvável". E ele, Caetano, pôde acompanha-la "numa solidão linda, que não fazia laço", num silêncio partilhado, interrompido pelo intenso e impressionante esforço da pequena carícia, pontuada pelo enlaçar dos dedinhos. Como tão bem sublinhou Bia, Caetano veio, ainda que por pouco tempo, para "inundar os dias com outra dimensão da existência". Veio como um "enigma", como um "clarão" fugaz, mas que iluminou o universo inteiro. Foi um milagre ter sobrevivido ao parto, mas nasceu e deixou raízes vivas. 

Linda a forma como Bia descreveu o seu nascimento, embalado antes pelo mantra poderoso: "nasce filho, nasce filho". E recorda: "E ele nasceu em mim naqueles cinco dias, nascia todo dia mais e mais". E depois partiu, deixando o rastro de uma dor aguda e lancinante, que jamais se apagou. Mas também o alívio de ter propiciado o dom da vida em alguém: ele se fez carne em Bia, para sempre. E o relato continua: "Dizem que quem está perto da morte sabe o essencial: pois ele segurou minha mão naquele esforço absurdo e me acariciou, depois tentou enlaçar os dedos. Deixou esse nó na carne em mim, um laço que não me larga. Aquele momento posso chamar de o momento onde reinventei o ´espiritual`". 

E agora a canção de Caetano vem retomada de forma linda, num livro tecido com ternura e vigor. Como diz Bia, "Meu filho está aí, entre as coisas, nas minhas escolhas, na minha escrita, no meu sorriso". Sem dúvida, uma história sublime, de espanto e alegria, de névoa e assobio.

(postado no Face em 16/06/2015)

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