terça-feira, 29 de julho de 2014

Pluralismo religioso e ecumenismo na América Latina

Pluralismo religioso e ecumenismo na América Latina

Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF

            É uma alegria poder estar hoje aqui na Pontifícia Universidade Urbaniana, a convite de Gemma Debono. O meu sincero agradecimento às autoridades da Universidade pela generosa acolhida, em particular ao Magnífico Reitor, Alberto Trevisiol. O tema de minha comunicação é ao mesmo tempo convidativo e complexo. O que farei aqui, dentro do limite de tempo que  me foi concedido, é avançar algumas hipóteses e reiterar desafios que considero fundamentais envolvendo esta questão. Embora a solicitação envolvesse o campo religioso mais amplo da América Latina, vou concentrar-me no Brasil, onde posso acompanhar mais de perto os desdobramentos da discussão sobre essa presença religiosa.

Em tempos de pluralização religiosa

            Os resultados do Censo Demográfico sobre as Religiões no Brasil foram publicados no final de junho de 2012, num amplo trabalho coordenado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). São dados que se referem ao ano de 2010. Não houve mudanças tão substantivas com respeito ao censo anterior, realizado em 2000. Os novos dados confirmam as tendências já apontadas anteriormente, ou seja, a queda do catolicismo e o crescimento dos evangélicos e dos sem-religião. O catolicismo romano é ainda preponderante, mas perde a cada década sua centralidade, passando a se firmar como a “religião da maioria dos brasileiros”, mas não mais a “religião dos brasileiros”. Numa população de quase 191 milhões de habitantes, os católicos somam hoje no Brasil 123 milhões de adeptos. Mas seu decréscimo tem sido constante nas últimas décadas: 89,2% em 1980; 83,3% em 1991; 73,6% em 2000 e 64,6% em 2010. Com respeito aos evangélicos, os dados do IBGE apontam um crescimento, que vem se acentuando a cada década. Mas sobretudo a partir da década de 1980, essa presença ganha ainda maior visibilidade: 6,6% em 1980; 9% em 1991; 15,4% em 2000 e 22,2% em 2010 (42,2 milhões de adeptos). Esse singular crescimento deve-se sobretudo à afirmação dos evangélicos pentecostais, que respondem por quase 60% do total dos evangélicos declarados, ou seja 13,3% do índice geral de 22,2% de todo o grupo evangélico. Nada menos que 25,3 milhões de fiéis. A terceira força apontada pelo Censo de 2010 são os sem-religião, que somam hoje no Brasil 15,3 milhões de pessoas, ou seja 8% da população brasileira.

            Os dados apresentados indicam que o Brasil continua um país de forte presença cristã, com cerca de 86,8% de pessoas envolvidas nesse circuito. Se a esta porcentagem soma-se a presença dos sem religião, chegamos a 94,8%. O restante da diversidade religiosa fica restrita a 5,2% dos declarantes. Nesse quadro inserem-se os espíritas (2%) e as religiões afro-brasileiras (0,3%), além de todas as outras demais tradições religiosas. Tudo isso significa que a diversidade religiosa aparece ainda como um desafio em aberto no Brasil, embora seus traços já se façam perceber.

Tendo em vista esse quadro geral, podemos destacar a presença de um progressivo processo de pluralização religiosa, que vai aos poucos quebrando a forte hegemonia cristã que ainda predomina no país. E também a dinâmica de uma crescente desinstitucionalização religiosa, com o enfraquecimento das filiações tradicionais. Ao lado da multiplicação  e diversificação das instituições portadores de sentido, uma “menor fidelidade a elas”. Pesquisadores brasileiros chamam a atenção para as mudanças que ocorrem hoje na relação identitária que vincula os fiéis às suas instituições religiosas. Isto não se dá mais de forma rígida e engessada, mas de maneira fluida, criativa e novidadeira. Os conteúdos e significados da identidade religiosa tendem a ser menos totalizantes e abertos a modalizações diversificadas. Como indicou o antropólogo Pierre Sanchis, há que complexificar hoje “o sentido das declarações de pertença religiosa”[1].

Uma dinâmica de complementaridade religiosa

Há, porém, um traço que marca a religiosidade brasileira que deve ser sublinhado com ênfase. Um modo de lidar com a religião que é muito distinto do que ocorre em outros países ou continentes. O que para alguns poderia indicar superstição ou problemático amálgama, para o brasileiro é um modo de ampliar as possibilidades de proteção. Um dos retratos mais criativos e fiéis desta religiosidade brasileira veio apresentado por João Guimarães Rosa em sua obra Grande Sertão: Veredas, cuja primeira edição saiu em 1956. É um livro que nos coloca diante desta genuinidade brasileira, deste traço peculiar de compor vivências e assumir identidades múltiplas. O personagem Riobaldo traduz de forma esplêndida essa situação:

“Por isso é que se carece principalmente de religião: para desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura (...). Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”[2].

            O religioso está sempre presente, banhando os caminhos desse povo singular. Sobretudo no domínio popular não há possibilidade de ateísmo ou agnosticismo. É uma possibilidade inexistente. Como diz o mesmo personagem de Guimarães Rosa: “Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve”[3]. Faz parte do repertório religioso brasileiro essa dança interreligiosa. Em clássico texto sobre os caminhos que levam a Deus no Brasil, o antropólogo Roberto da Matta resgata esse fabuloso perfil, como um patrimônio positivo: “toda essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar e conciliar, criando com isso zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança”. E isso num mundo que se desencanta cada vez mais, afundando-se num individualismo apático e problemático.

É bonito ver essa presença de um mundo religioso multifacetado: na força do catolicismo popular – de santos e rezas; na vitalidade espiritual do pentecostalismo, na dança dos deuses que anima os rituais afro e na espiritualidade terrenal indígena. São traços de um lindo patrimônio espiritual que escapa ao olhar superficial dos censos. Escapa, por exemplo, ao censo a força de fenômenos religiosos recorrentes na sociedade brasileira, como o transe, a possessão e a mediunidade. São dezenas de milhões de brasileiros que lidam com este “outro mundo” povoado pela mais variada gama de espíritos. Autores chegam a afirmar que cerca da metade da população brasileira “participa diretamente de sistemas religiosos em que a crença em espíritos e na sua periódica manifestação através dos indivíduos é característica fundamental. Esse tipo de dado aparece muito precariamente em estatísticas e censos”[4]. E nessas práticas religiosas, envolvidas pela presença do “outro mundo” são tecidos laços de confiança e solidariedade entre os fiéis,  geração de auto-estima e afirmação de importantes benefícios espirituais e afetivos, com ações solidárias de ajuda mútua.

Ao descrever o belo ritual de filhos e filhas de santo no candomblé da Bahia, Roger Bastida fala desta experiência de intensificação na qualidade de sujeitos:

“Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria (...). Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão”[5].

Um catolicismo de malhas largas

            Retomando a questão do catolicismo no Brasil, há que sublinhar que esta tradição religiosa apresenta-se no Brasil de forma bem diversificada, com malhas bem distintas: temos um catolicismo santorial, um catolicismo de reafiliação, um catolicismo institucional e um catolicismo midiático. É um catolicismo que se veste de forma muito plural, que envolve dentro de si “muitas religiões” e que apresenta caminhos diversificados. São várias as formas ou alternativas de viver a fé e a crença católica no Brasil. Como sublinha Carlos Rodrigues Brandão, o catolicismo brasileiro, assim como vem experimentado na vida cotidiana, é uma religião que congrega padres e prostitutas, policiais e bandidos, fieis da renovação carismática e das comunidades de base. É “uma rara religião que, em suas muitas faces, permite que você tenha uma forma de presença nela, mesmo quando você acha que já não é mais dela”[6].

            Em recente artigo sobre o traço místico e religioso do povo brasileiro, Leonardo Boff dizia que esta “visão encantada do mundo” talvez seja uma das mais ricas e novidadeiras contribuições que os brasileiros podem oferecer à cultura mundial emergente, uma “cultura tão pouco mágica e tão pouco sensível ao jogo, ao humor e à convivência dos contrários”[7].

O desafio ecumênico e dialogal

            Toda essa riqueza interreligiosa que povoa o cenário brasileiro vem sendo nos últimos tempos embaçada por práticas localizadas de intolerância religiosa, o que é uma pena. Trata-se de uma intolerância que não combina com esse país do “sincretismo religioso”, entendido aqui no seu sentido mais positivo de intercâmbio, troca e aprendizado, ou seja, de fenômeno rico que acompanha a dinâmica universal de grupos humanos que entram em contato: “a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar o seu próprio universo”[8]. É uma triste tendência que se vê por toda parte, de acirramento dos fundamentalismos, e de perspectivas religiosas que se fixam na “rigidez de um pensamento único”. Em belo texto de Bergoglio publicado aqui na Itália no jornal La Repubblica, em 13 de março de 2014, ele falava desse risco dos fundamentalismos e do substantivo desafio do diálogo. Dizia que é o diálogo que “desvela a verdade” e a “verdade que se nutre do diálogo”. Daí a necessidade da “escuta atenta, do silêncio respeitoso, da empatia sincera, o autêntico colocar-se em disposição face ao estrangeiro e ao outro”, enquanto virtudes essenciais a serem cultivadas e irradiadas no mundo de hoje[9].

            O ecumenismo e o diálogo interreligioso são empenhos que se somam e se complementam na essencial tarefa de uma ecumene planetária. Foi, aliás, o diálogo ecumênico que rompeu determinado modelo de absolutismo católico e favoreceu o diálogo com as grandes religiões do mundo. Mediante o impulso ecumênico buscou-se “corrigir dogmatismos e fanatismos que conduziram (e, em algumas situações, ainda conduzem) a enfrentamentos árduos e a inimizades, e, por outro lado (...) plasmar relações diferentes entre os que são conscientes de suas identidades particulares e desejam viver em paz”[10]. O evento de Assis, em 1986, apontou o horizonte irreversível dessa abertura: “Ou aprendemos a caminhar juntos e em paz e em harmonia, ou nos desconhecemos mutuamente e nos destruímos a nós mesmos e aos outros”[11].

            O crescente pluralismo religioso na América Latina e  no Caribe tem desafiado as igrejas cristãs. De modo particular, o assombroso crescimento pentecostal, mas também a retomada de expressões religiosas dos povos originários e de matriz africana. É o que se vem verificando entre os mayas na Guatemala, entre os povos indígenas de Chiapas, ou quéchuas, aymaras e mestiços na região andina, bem como entre os negros no Brasil e em Cuba. O esforço de compreensão adequada destes fenômenos tem sido “uma das tarefas ecumênicas mais urgentes e decisivas”[12], num caminho que possibilita captar esta irradiação como dinâmica de afirmação comunitária de povos que foram em geral excluídos da participação e cidadania social. E esse desafio ecumênico não se restringe às igrejas cristãs, envolvendo também uma dimensão macro na luta comum em favor da afirmação da vida e de sua dignidade.

Conclusão

            Em sua última obra publicada, o teólogo Jacques Dupuis falava em três atitudes essenciais para um exercício novo no campo teológico em torno da abertura interreligiosa, todas elas envolvendo um trabalho de purificação: da memória, da linguagem teológica e da inteligência teológica.  No horizonte de sua reflexão, o fundamental desafio da acolhida do pluralismo religioso, entendido como um pluralismo de princípio: que revela não só a generosidade singular de Deus em suas manifestações, como também todas as riquezas de sua “sabedoria infinita e multiforme”. Lançava Dupuis com ousadia uma provocação teológica inaugural em favor de uma “compreensão renovada no modo de pensar os ´outros` e o seu patrimônio cultural e religioso”[13].

            No clássico manifesto aprovado no I Encontro da Assembleia do Povo de Deus em Quito (Equador), no ano de 1992, firmou-se a ideia de que “o povo de Deus são muitos povos”[14]. Era a porta de entrada para uma nova perspectiva dialogal, macroecumênica, que inseria as diversas tradições religiosas do continente no mesmo sonho fraterno do Deus sempre maior. O que existe, em verdade, é uma extraordinária diversidade das tradições religiosas, vivas e pujantes em sua ação no tempo, presentes para serem reconhecidas na sua dignidade sagrada. A grande sinfonia da unidade não está ainda dada, mas encontra-se em processo, sempre adiada, sendo tecida pelos singulares fragmentos, que são as religiões, mas também as espiritualidades que animam o nosso tempo. Numa bela imagem cunhada pelo papa João Paulo II, o diálogo é uma “viagem fraterna” onde uns acompanham os outros, tendo sempre como meta transcendente o horizonte destinado por Deus. E nesta viagem estamos sempre sendo surpreendidos pelos enigmas de Deus.

Referências Bibliográficas

ASSEBURG, Benno & ZWETSCH, Roberto (orgs.). Desafios e propostas missionárias na realidade brasileira : reflexões a partir da Consulta sobre Missão realizada pelo CMI/Unidade II e o CECA, em São Leopoldo, RS, nos dias 08-11 de setembro de 1996. São Leopoldo : CECA, 1997.
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001
BINGEMER, Maria Clara L. (Org). O impacto da modernidade sobre a religião.  São Paulo: Loyola, 1992
BRANDÃO, Carlos Rodrigues.  Revisitando o catolicismo popular. IHU-Online, ano 4, n. 169, p. 73-78, 19 de dezembro de 2005.
DUPUIS, Jacques. Il cristianesimo e le religioni. Dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001.
GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
PONTIFICIO  Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso nell´insegnamento ufficiale della Chiesa Cattolica (1963-2013). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2013.
RAMALHO, José Ricardo (Org). Uma presença no tempo. A vida de Jether Ramalho. São Leopoldo: Oikos, 2010
SANCHIS, Pierre. Pra não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações do Iser, ano 13, n. 45, p. 4-11, 1994.
TEIXEIRA, Faustino. O diálogo interreligioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997.
TEIXEIRA, Faustino & MENEZES, Renata (Orgs). Religiões em movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

(Texto apresentado no Congresso Internacional, “In ascolto dell´America: encontro fra popoli, culture, religioni – Strade per il futuro”, ocorrido na Pontificia Università Urbaniana (Roma), em abril de 2004)
           
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[1] Pierre SANCHIS. Prefácio. In: Faustino TEIXEIRA e Renata MENEZES (Orgs). Religiões em movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 14.
[2] João GUIMARÃES ROSA. Grande sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 15.
[3] Ibidem, p. 48.
[4] Gilberto VELHO. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 54. Ver também: José Jorge de CARVALHO. Características do fenômeno religioso na sociedade contemporânea. In: Maria Clara L. BINGEMER (Org). O impacto da modernidade sobre a religião.  São Paulo: Loyola, 1992, p. 144-147.
[5] Roger BASTIDE. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 39.
[6] Carlos Rodrigues BRANDÃO. Revisitando o catolicismo popular. IHU-Online, ano 4, n. 169, 19 de dezembro de 2005, p. 74.
[8] Pierre SANCHIS. Pra não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações do Iser, ano 13, n. 45, 1994, p. 7.
[10] Julio de SANTA ANA. Mestre em rigor e lealdade. In: José Ricardo RAMALHO (Org). Uma presença no tempo. A vida de Jether Ramalho. São Leopoldo: Oikos, 2010, p. 80.
[11] PONTIFICIO  Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso nell´insegnamento ufficiale della Chiesa Cattolica (1963-2013). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2013, p. 491.
[12] Walter ALTMANN. O pluralismo religioso como desafio ao ecumenismo e à missão na América Latina. In: Benno, ASSEBURG & Roberto ZWETSCH (orgs.). Desafios e propostas missionárias na realidade brasileira : reflexões a partir da Consulta sobre Missão realizada pelo CMI/Unidade II e o CECA, em São Leopoldo, RS, nos dias 08-11 de setembro de 1996. São Leopoldo : CECA, 1997. p. 61-72.
[13] Jacques DUPUIS. Il cristianesimo e le religioni. Dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001, p. 474.
[14] Apud Faustino TEIXEIRA. O diálogo interreligioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 149.

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