quarta-feira, 7 de julho de 2010

Teologia Pluralista e Teologia da Revelação

Teologia Pluralista e Teologia da Revelação

 

Faustino Teixeira

 

1. Que avaliação você faz do desenvolvimento da teologia do pluralismo

religioso e do diálogo inter-religioso dos últimos anos? Quais os

principais avanços e limites? Qual sua contribuição para a aproximação

entre os diferentes?

 

A teologia do pluralismo religioso vem buscando responder a um dos mais importantes desafios do século XXI: como acolher com respeito a pluralidade religiosa. Aos poucos vem firmando a convicção de que o pluralismo religioso é uma realidade de princípio, não um dado contingencial, inserindo-se no misterioso desígnio de Deus para a humanidade. Temos um núcleo de teólogos que defendem com firmeza esta perspectiva, entre os quais podemos destacar o pioneirismo de Raimond Panikkar, Edward Schillebeeckx, Jacques Dupuis, Claude Geffré, Michael Amaladoss, John Hick, entre outros. É um tema que vem envolvendo também a reflexão da teologia da libertação, e o fruto mais decisivo nesse sentido é a coletânea de cinco volumes, Pelos muitos caminhos de Deus, organizada pela ASET. O fato do Congresso da SOTER organizar uma mesa sobre o tema, agora em julho, é uma expressão viva desse novo interesse. Gosto de utilizar uma metáfora de Christian Ducquoc para situar a questão: a “sinfonia adiada”. Trata-se de um recurso por ele utilizado para romper com a ingênua idéia de um plano divino magistral que estaria conduzindo as outras tradições religiosas para um único aprisco. No âmbito da teologia católica conhecemos de perto esta perspectiva de uma “teologia do acabamento”, que não consegue ver nas outras religiões senão “marcos de espera” para uma inserção “purificadora” no cristianismo. Esta “obsessão pela unidade” pode, em verdade, obstruir ou ocultar o caráter enigmático que preside a diversidade inter-religiosa. De fato, a verdade da religião não se condensa numa única tradição religiosa, mas na sinfonia que preside a sua interação. O estar sintonizado com a reflexão mística inter-religiosa tem-me ajudado muito a lidar distintamente com essa diversidade religiosa,  com abertura, acolhida e delicadeza. Sigo as pistas abertas pelo grande místico sufi andaluz, Ibn´Arabi (1165-1240), que nos adverte para o risco de nos fixarnos exclusivamente num credo particular, sem atenção devida aos sinais de Deus que acontecem por todo canto e a todo momento. A seu ver, com esse fechamento acabamos deixando escapar inúmeros bens, ou mesmo a própria “Ciência da Verdade”. Há um ponto luminoso que preside toda diversidade religiosa, e não podemos perdê-lo de vista exclusivizando nosso olhar numa única perspectiva. A questão do diálogo interreligioso está intimamente vinculada a essa questão. Defendo a idéia de que a abertura ao pluralismo de princípio é um requisito essencial ao diálogo inter-religioso. Não se pode apagar o “mistério pessoal intransponível” que habita o mundo do outro. Há algo de irredutível e irrevogável no âmbito da alteridade, e o diálogo interreligioso traduz o aprendizado ou o intercâmbio de dons que acontecem nessa “viagem fraterna” de interlocutores distintos em sua busca pelo Mistério sempre maior.

 

2. Considerando a persistência e,  as vezes, aumento dos conflitos

étnico-raciais no mundo, quais as chances de eficácia dos múltiplos

esforços pelo diálogo inter-religioso nos últimos anos?

 

Em obra recente sobre a globalização, democracia e terrorismo (2007), o historiador britânico, Eric Hobsbawm, mostrou com pertinência que o século XX foi “o mais mortífero de toda a história documentada”. Assinala que o montante de mortes causadas pelas guerras do período ou a elas associada vem estimado em 187 milhões de pessoas. Foi também um século marcado por fome, violência e devastações: uma história perturbadora de trânsito de grandes contingentes humanos fugindo da pobreza, da repressão e das guerras. Não há mudanças substantivas em nosso século XXI e agora acrescentam-se novos e complexos desafios como os relacionados à escassez da água e de alimentos e a afirmação crescente de identidades que se revelam agressivas (ou mesmo mortíferas) e impermeáveis. Nada mais atual que o princípio programático defendido por Hans Kung e levado à frente pela Fundação Ética Mundial: “Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não há paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não há diálogo entre as religiões sem uma busca dos fundamentos das religiões”. Temos hoje importantes iniciativas no campo do diálogo interreligioso (DIR). Em âmbito mais institucional temos, no lado católico, a atuação do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso (PCDI), e citaria aqui o papel do Comitê conjunto para o DIR deste Conselho com o Comitê Permanente de Al-Azhar. Da parte dos muçulmanos, menciono a importante Mensagem Interreligiosa de Aman e outras iniciativas como a carta dos 138 teólogos muçulmanos a Bento XVI e os responsáveis cristãos. Em âmbito acadêmico, podem ser lembradas as atuações da Fundação Ética Mundial e do Grupo de Pesquisa Islamo-cristão (GRIC), fundado na França em 1977. Outras iniciativas acontecem no âmbito do diálogo da experiência religiosa: o Diálogo Interreligioso Monástico, o Caminho da Paz (envolvendo Dalai Lama e Laurence Freeman), a Comunidade de Santo Egídio (Itália). No Brasil temos o singular trabalho exercido pelo CESEP, com importantes incursões no campo do DIR, e o bonito trabalho realizado pelo Programa Gestando o Diálogo Interreligioso e o Ecumenismo (GDIREC), da Unisinos. Podemos também lembrar a atuação de expoentes dialogais como Monja Coen e Marcelo Barros. Mas há ainda muito o que fazer no Brasil nessa área.

O sucesso do empreendimento dialogal vai depende do efetivo empenho dedicado a seu favor. As chances são imensas, apesar das resistências ao contrário. É sempre difícil criar uma sensibilidade dialogal em tempos de acirramento identitário. Mas pistas importantes vão sendo levantadas. O fundamento teológico do DIR está no mistério do Deus criador e de sua acolhida amorosa. Busca-se recolher “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme” do Deus da Vida, escondidos na criação e na história (DM 41 e 22). O DIR revela-se essencial para a vida cristã, e por duas razões fundamentais. É imprescindível para a paz no mundo e uma forma precisa de colocar em prática a lei mais essencial do cristianismo: amar o próximo como a si mesmo (Lc 10,27). É curioso perceber que em iniciativas recentes do DIR, como a Mensagem Interreligiosa de Aman, assinalou-se como traço comum das tradições religiosas proféticas a unidade do amor a Deus e do amor ao próximo. Em sua encíclica Deus caritas est (2005), Bento XVI enfatizou o nexo indivisível entre esses dois amores. E assinalou que “a afirmação do amor a Deus se torna uma mentira, se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive o odiar”. E há hoje que acrescentar o amor à natureza e toda a criação. Deus manifesta-se presente em “toda a vida e no inteiro universo”, é o maravilhoso dinamismo que o sustenta e movimenta a partir de dentro. Como sublinha Hans Kung, Deus é “a inapreensível ´dimensão infinita`em todas as coisas”. Somos nós, em nossa contingência, que não conseguimos captar essa presença. Há que educar o olhar para adentrar-se nesse mistério e nessa maravilha. E aqui toco num campo fundamental para o DIR que é a espiritualidade. É ela que faculta o trabalho interior de desapego e abertura, essenciais para um verdadeiro encontro inter-religioso. O diálogo deve começar no interior de cada um, criando e favorecendo espaços de hospitalidade. Como mostrou com acerto Leonardo Boff em recente artigo, a espiritualidade é gestadora de uma paz novidadeira, que vem do âmbito da profunidade. É uma paz que “irrompe de dentro, irradia em todas as direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa vontade. Essa paz é feita de referência, de respeito, de tolerância, de compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério no mundo. Ela alimenta o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido, de compreender e de ser compreendio, de perdoar e de ser perdoado”.

 

3. Que lugar as bandeiras da ética, do futuro sustentável e da paz

mundial encontram no fazer teológico latino-americano atual?

 

Penso que a reflexão teológica latino-americana deve seguir as inspiradoras pistas lançadas pela Carta da Terra. Ali se diz que “devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz”. Não há meio termo nessa luta essencial: ou formamos essa nova aliança global para cuidar de nosso planeta e lutar contra a dor dos humanos ou arriscamos nossa própria destruição. E aqui acrescento o desafio do diálogo interreligioso e do respeito à diversidade das opções espirituais, religiosas ou não. Há diversos caminhos que conduzem o ser humano ao seu destino e eles devem ser respeitados. Temos que recuperar o significado etimológico de salvação, entendida como uma dinâmica positiva de preservação da integridade do ser humano. Como nos mostra Adolphe Gesché, “salvar é levar alguém até a própria meta, é permitir que ele se realize, que atinja o seu objetivo”. E esta é uma aspiração legítima de todos e não se restringe ao campo das religiões. Trago também à baila a importante declaração em favor de uma ética mundial, lançada no Parlamento da Religiões Mundiais, em 1993 (Chicago). Falou-se ali que a humanidade precisa não apenas de reformas sociais e ecológicas, mas também de uma renovação espiritual, que possa favorecer à vida dos seres humanos uma “fidelidade de fundo” e um “horizonte de sentido”. A nossa reflexão teológica deve estar atenta a tudo isso e aperfeiçoar seu instrumental para avançar nessa direção.

 

4. Quais as suas expectativas para o 23º Congresso Anual da SOTER que

investigará o tema Religiões e Paz Mundial (que ocorrerá do dia 12 a 15

de julho de 2010 em BH/MG)?

 

Na minha avaliação, o tema desse Congresso foi muito feliz e oportuno. É um tema de grande atualidade e os teólogos não podem passar à margem de suas exigências. Estou muito motivado para participar do evento, verificar as pistas que vão se abrindo na reflexão teológica latino-americana a respeito e partilhar com os amigos as reflexões que venho fazendo nos últimos anos. Estou também animado a participar da mesa específica sobre a teologia do pluralismo religioso junto com Vigil e Queiruga. Estamos juntos nessa desafiadora tarefa de construir uma teologia do pluralismo religioso em sintonia e abertura ao caminhar da teologia da libertação. Vai ser também uma ocasião para colocar em debate os temas apresentados nos cinco volumes da série “Pelos muitos caminhos de Deus”, entre os quais: o desafio do pluralismo religioso para a teologia da libertação e o processo de afirmação de uma teologia cristã latino-americana do pluralismo religioso.

 

Publicada no IHU Notícias de 04/07/2010:

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&id=33974

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