quarta-feira, 7 de julho de 2010

O Jesus de Pagola

O Jesus de Pagola

 

Faustino Teixeira

 

(a) A quem se destina esse Jesus de Pagola?

 

Na apresentação desta nona edição de seu livro, Pagola já manifesta o seu fascínio por Jesus. Sublinha que ele “é o melhor que a humanidade produziu. O potencial mais admirável de luz e de esperança com que nós seres humanos podemos contar”. Argumenta que recuperar essa memória de Jesus é fortalecer o horizonte da história, que ficaria muito empobrecido com o seu esquecimento. O que o autor intenta fazer nesta excelente obra é buscar uma aproximação histórica com base no “Jesus recordado”, ou seja, na lembrança que ele deixou no núcleo de seus seguidores. Sua intenção com a obra é colocar Jesus à disposição de todos, pois sua vida, atuação e mensagem não são propriedade exclusiva dos cristãos, mas constituem um “patrimônio da humanidade”. É uma obra que tem, portanto, uma tripla destinação. É dirigida aos cristãos e cristãs que perderam o contato com a mensagem viva de Jesus, aos que muito ignoram a seu respeito e aos que se decepcionaram com o cristianismo real e buscam outros caminhos de afirmação de sentido. Pagola assinala que sua opção em favor de uma perspectiva narrativa da vida de Jesus intenciona “aproximar o leitor de hoje, crente ou não, à experiência vivida pelos que se encontraram com Jesus, e ajudá-lo a sintonizar com a Boa Notícia que descobriram nele”. E não há como aproximar-se desse “poeta da compaixão” sem sentir-se profundamente atraído por ele e convocado ao seu seguimento.

 

(b) Jesus aparece na obra de Pagola como o “poeta da compaixão”, o “curador da vida” e o “defensor dos últimos”. É possível verificar aí o segredo de seu fascínio?

 

Não há dúvida alguma sobre isso. O autor consegue apresentar com imensa felicidade essa faceta extraordinária de Jesus como um buscador singular de Deus, mas de um Deus que tem entranhas de compaixão e misericórdia. Isso me faz lembrar uma reflexão de Roger Haight, em seu livro Jesus símbolo de Deus (1999). Dizia ali que Jesus era teocêntrico, mas que ironicamente o que ele apresentava ao mundo era um Deus antropocêntrico, ou seja, um Deus “intrinsecamente interessado e preocupado com o bem-estar de suas criaturas”. Pagola sublinha em seu livro que a melhor metáfora para expressar a idéia de Deus é a do “Deus compassivo”. A profunda paixão de Jesus pelo reino de Deus, que é o centro referencial de sua vida, faz com que ele traduza na história, em gestos efetivos, a Boa Notícia que ele recebeu de seu Pai. Animado pela experiência do Deus da vida, Jesus anuncia a todos uma notícia que traduz mudança de perspectiva: a de que “Deus já está aqui buscando uma vida mais ditosa para todos”. Tudo isso foi motivo de impacto e sedução em seu tempo. A maneira peculiar com que falava aos outros sobre Deus e seu projeto de vida provocava entusiasmo e paixão nos setores mais simples da Galileia. Era mesmo o que precisavam ouvir: a notícia de que “Deus se preocupa com eles”. Jesus não era somente o “poeta da compaixão”, mas também “curador da vida”. Trata-se de um curador singular, pois despertava nos outros a vontade de viver com dignidade e sinalizava uma relação distinta com o mistério do Deus que abre novos caminhos. Na verdade, como bem expressa Pagola, Jesus contagia saúde, vida e alegria: “Seu amor apaixonado à vida, sua acolhida afetuosa a cada enfermo ou enferma, sua força para regenerar a pessoa a partir de suas raízes, sua capacidade de transmitir sua fé na bondade de Deus. Seu poder de despertar energias desconhecidas no ser humano criava as condições que tornavam possível a recuperação da saúde”. Outro importante traço de Jesus é a sua acolhida aos pobres. Identifica-se como “defensor dos últimos”. Na perspectiva de sua peculiar atuação, sinaliza que o caminho que leva a Deus “não passa necessariamente pela religião, pelo culto ou pela confissão de fé, mas pela compaixão para com os ´irmãos pequenos`”. Trata-se da “grande revolução religiosa” provocada por Jesus, que abre uma via nova de acesso a Deus, que passa pela acolhida e compromisso com o outro necessitado, sobretudo o mais pobre. E levar a cabo o seguimento de Jesus, como lembra Pagola, é também “pôr no centro de nosso olhar e de nosso coração os pobres. Situar-nos na perspectiva dos que sofrem. Fazer nossos seus sofrimentos e aspirações. Assumir sua defesa”.

 

(c) Um dos traços novidadeiros do Jesus de Pagola é a forma como trabalha o tema de Jesus e as mulheres, inclusive sublinhando o papel protagônico das mesmas no seu discipulado. Há nesse âmbito um campo rico para o trabalho de reflexão, não é verdade?

 

De fato, Pagola reserva um lugar de grande destaque às mulheres no discipulado de Jesus. A viva imagem que passa em sua obra é a de Jesus como amigo das mulheres, e num tempo em que elas viviam uma precária situação, de rejeição e exclusão. Jesus lança um olhar diferente sobre elas, tornando-as visíveis e presentes. A palavra chave aqui é a acolhida. Pagola mostra como as mulheres fizeram parte do grupo dos discípulos desde o início, permanecendo todo o tempo fiéis a Jesus e à sua causa. O autor sugere que elas estiveram também presentes na última ceia e assumiram um papel protagônico na origem da fé pascal. Muito rica também a reflexão do autor sobre Maria Madalena (Maria de Mágdala), a melhor amiga de Jesus. Ele desfaz preconceitos a respeito e resgata a imagem de Madalena como “seguidora fiel de Jesus e testemunha eminente do Senhor ressuscitado”, tão viva na Igreja do Oriente.

 

(d) Em artigo publicado em 1993, Jon Sobrino afirmara que o maior receio do terceiro mundo é um “Cristo sem Reino”, ou seja, uma concentração no mediador que relega a segundo plano as exigências da mediação do Reino. Em semelhante linha de reflexão, Pagola assinala que na vida de Jesus o lugar central foi ocupado não por Deus simplesmente, mas “Deus com seu projeto do reino de Deus”. Como explicitar melhor essa questão?

 

Com base nos recursos da investigação moderna e contemporânea, e o apoio interdisciplinar, Pagola busca aproximar-se historicamente da figura de Jesus. O seu objetivo é facultar o “contato vivo com sua pessoa”, sem cair em abstrações metafísicas, ainda que sublimes, sobre o seu ser. Assinala sua dificuldade em crer “num Cristo sem carne”, ou acessar a Jesus como mistério que dá vida só mediante a doutrina. Adverte sobre o risco de converter Jesus Cristo, de forma exclusiva, a um “objeto de culto”, enquanto “ícone venerável”, mas destacado de sua condição de profeta do reino de Deus. Esse é o risco de um Jesus sem reino, de que fala também Jon Sobrino. Não há como acessar ao verdadeiro significado de Jesus destacando-o de sua relação com o reino de Deus. Como indica Pagola, “o que ocupa o lugar central na vida de Jesus não é Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a história humana”.

 

(e) É plausível fazer uma aproximação do livro de Pagola com as obras inaugurais da teologia da libertação no âmbito da cristologia?

 

Essa comparação surge de forma imediata. Todos os que fomos formados na perspectiva da teologia da libertação sentimos grande familiaridade com a reflexão apresentada por Pagola. Os temas e o enfoque são muito comuns. Não há como deixar de recordar as clássicas passagens de Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff ou de Jesus na América Latina, de Jon Sobrino. A leitura do livro de Pagola traz novamente à baila reflexões que marcaram decisivamente a formação de inúmeros teólogos e teólogas latino-americanos e nos provoca a todos para um exercício teológico mais ousado e corajoso nesse tempo de encurtamento eclesial.

 

(f) Em sua obra, Pagola busca distinguir a ação de Jesus com respeito à missão de João Batista. Como sinalizar essa diferença?

 

Essa foi uma dentre outras questões que provocaram a reação ao livro de Pagola. Sabemos das resistências impostas ao livro pela Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé da Conferencia Episcopal Espanhola. Em nota a respeito, publicada em junho de 2008, essa comissão apontou algumas dificuldades percebidas pelos bispos, uma das quais tocava a questão do “obscurecimento da realidade do pecado e do sentido do perdão”. Para os bispos da Comissão, a contraposição estabelecida por Pagola entre a missão de João Batista e Jesus acabou silenciando sobre a realidade do pecado. Mas não é assim que Pagola percebe as coisas. Há que entender esta distinção com base no âmbito geral da obra e de seu objetivo. De fato, Pagola estabelece uma diferença entre as duas atuações. Assim como o profeta João Batista, que o precede, Jesus busca captar a vontade de Deus, mas num horizonte distinto. Seu estivo de vida é festivo, marcado pelo tônus da alegria. Vai dedicar-se “a algo que João nunca fez: curar os enfermos que ninguém curava, aliviar a dor de pessoas abandonadas, tocar leprosos que ninguém tocava, abençoar e abraçar crianças”. As palavras de Jesus não  traduzem a “dura linguagem do deserto”, mas é envolvida de esperança e poesia. O que busca trazer é uma Boa Notícia, de uma alegria que será para todos. Enquanto a missão do Batista estava vinculada à questão do pecado, o projeto de Jesus tinha como objetivo algo mais amplo e universal: aplacar o sofrimento dos mais excluídos e necessitados, anunciando-lhes uma Boa Notícia. Isso é o que era mais determinante para ele. Isso não significa, como admite Pagola, que o pecado não o preocupasse, mas para ele o pecado mais grave e de maior resistência ao anúncio do reino “consiste precisamente em causar sofrimento ou tolerá-lo com indiferença”.

 

(g) Como podemos responder hoje à  pergunta: quem foi Jesus?

 

Acho que as respostas anteriores contemplam a essa importante questão. Jesus foi alguém apaixonado pelo reino de Deus e que viveu em profundidade a dinâmica de acolhida, hospitalidade e compaixão pelos outros. Foi alguém que trouxe à tona a possibilidade da alegria e da esperança em tempos propícios à apatia e exclusão. Sua mensagem ou Boa Nova colocou no centro do cenário a bem aventurança dos pobres e a exigência de partilha de sua causa. Concordo literalmente com Pagola quando afirma que não há como aproximar-se dele sem sentir-se atraído e fascinado por sua pessoa, pelo carinho, delicadeza e ternura com que trata os outros, independente de seu gênero, etnia ou religião. O que fala mais alto em Jesus é o seu testemunho de vida, e é este que devemos buscar seguir em nossa trajetória existencial. É importante sublinhar também que o segredo desta atuação profética está na forma singular de sua relação amorosa com Deus. É Deus mesmo, com seu projeto, que está no centro de sua vida, como Presença que o transforma interiormente e faculta a tonalidade de sua vida de abertura, acolhida e compromisso gratuito com os outros. E Jesus apresenta-nos um Deus profundamente interessado pelos humanos, um Deus de entranhas de compaixão, um Deus que não é propriedade de religião alguma pois é Pai de todos, um Deus que é movimento e transformação. Todos podem invocá-lo como Pai, assim como o fez Jesus. Está acessível a qualquer um, manifestando-se abertamente a partir do segredo do coração.

 

Publicada no dia 06/07/2010 no IHU Online – Ano X, n. 336, pp. 7-9:

http://www.ihuonline.unisinos.br//index.php?id_edicao=364

 

 

 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário