quarta-feira, 26 de maio de 2010

Christian de Chergé, mártir de Tibhirine

Christian de Chergé,  mártir de Tibhirine

 

Faustino Teixeira

 

A vida e o testemunho da comunidade dos monges trapistas de Tibhirine, do Atlas da Argélia, ganham visibilidade com a recente premiação em Cannes do filme do cineasta Xavier Beauvois, Des hommes et des Dieux (Homens e Deuses). Trata-se de uma obra prima, saudada com fortes aplausos por um público emocionado. O filme conquistou  com louvor, o Grande Prêmio do Júri, e também o prêmio do Júri Ecumênico do prestigioso Festival cinematográfico de Cannes. Em entrevista publicada no jornal francês La Croix (18/05/2010), o diretor do filme relata a sua emoção ao registrar a vida comunitária dos monges trapistas nos três anos que precederam o seqüestro e morte de sete deles, em 1996. Numa conversa com um dos sobreviventes do massacre, o irmão Jean Pierre, o cineasta desperta para a vitalidade de seu projeto. Relata que estava diante de um “homem santo” animado por um sorriso de bondade: “Contemplar seu sorriso me encorajou a entrar nessa aventura, para propagar sua mensagem”. O resultado é fascinante. Uma obra que traz à baila o “espírito de Tibhirine”, uma mensagem de amor universal ao outro, de compromisso de vida, de dom gratuito, hospitalidade e solidariedade. Envolvidos no coração da tormenta Argelina e expostos ao duro espiral de violência, os monges de Tibhirine são provocados a viver em profundidade a vocação assumida, de viver o compromisso cristão e dialogal em terras do islã.

O prior da comunidade de Tibhirine, Christian de Chergé, foi um dos mártires do massacre de 1996. Em recente livro publicado na França em 2009, Christian Salenson busca traçar o rico perfil de sua vida e de seu testemunho: Christian de Chergé. Une théologie de l´esperance. Paris: Bayard, 2009. Com base nessa obra, vamos buscar aqui destacar alguns traços fundamentais que marcaram o trajeto vital de Christian de Chergé e o trabalho exercido junto aos monges de Tibhirine.

 

O mosteiro de Tibhirine, também conhecido como Notre Dame de l´Atlas, foi fundado em 1938 e torna-se abadia em 1947. A entrada de Christian de Chergé se dá no ano de 1971. Ele tinha se ordenado padre em Paris, no ano de 1969. Entra no mosteiro com uma sólida formação teológica, adquirida no Instituto Católico de Paris (de 1956 a 1964), aperfeiçoada posteriormente no Pontifício Instituto de Estudos Árabes (PISAI) em Roma (de 1972 a 1974). A passagem por Roma foi decisiva para a afirmação de um novo olhar sobre o islã. Beneficiou-se do ensinamento de grandes mestres como Robert Caspar e Maurice Boormans.

A situação na Argélia vinha se complicando desde a década de 1970, com a emergência de núcleos islamistas radicais no campo social. Estava em curso um projeto de criação de um Estado islamista, com importantes núcleos de apoio nas mesquitas, escolas e universidades. Firma-se o Fronte Islâmico da Salvação (FIS), com a intenção de moralizar a sociedade mediante o cumprimento restrito da Lei islâmica (Chari´a). Nas eleições municipais de junho de 1991 o FIS garante a vitória no primeiro turno. O processo vem interrompido com a intervenção da armada argelina, que interrompe o processo eleitoral e acirra assim o conflito com a guerrilha islamista. Os atentados vão se multiplicar no período. Em dezembro de 1993 os grupos islamistas vão obrigar os estrangeiros a deixarem o país e muitos o fazem. Outros, porém, decidem permanecer, e as conseqüências foram drásticas. Em testemunho pessoal sobre a atuação da igreja católica na Argélia, o arcebispo local, Mgr Teissier, fala do sofrimento vivido no ocasião, em decorrência da crise islamista. Nada menos do que 10% dos padres, religiosos e religiosas da diocese da Argélia foi exterminado, num total de dezenove mortes. A violência atingiu ainda mais largamente o povo argelino, ceifando cerca de 150.000 pessoas.

 

É nessa situação de instabilidade e precariedade que se insere a comunidade de Tibhirine. Em duros anos de tormenta os monges debateram-se no difícil dilema: sair ou permanecer na Argélia. Apesar dos inúmeros conselhos dados, incluindo os do Abade Geral da ordem dos trapistas, Dom Bernardo Oliveira, e de Mgr Teissier, arcebispo da Argélia, os monges resolveram permanecer. A saída seria para eles  a ruptura de um laço de amizade com o povo argelino, construído ao longo de muitos anos de rica convivência. Em passagem de seu testamento, datada de dezembro de 1993, Christian de Chergé assinala: “Se algum dia me acontecesse – e isso poderia acontecer hoje – ser vítima do terrorismo que parece querer abarcar agora todos os estrangeiros que vivem na Argélia, eu gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja, a minha família, se lembrassem de que a minha vida estava entregue a Deus e a este país. Que eles soubessem que o Único Mestre de toda a vida não me abandonaria nesta brutal partida”. No final de 1993, doze croatas cristãos são assassinados, ali mesmo nas proximidades do mosteiro. Outras nove mortes envolvendo padres e religiosos/as acontecem nos anos de 1994 e 1995. Tudo indicava que chegaria a vez dos monges trapistas. E isto ocorre em março de 1996, quando sete membros da comunidade são seqüestrados pelo Grupo Islâmico Armado (GIA) e levados para as montanhas da redondeza. São eles os freis Christian, Bruno, Célestin, Christophe, Luc, Michel e Paul. Em maio de 1996, chega a notícia do assassinato coletivo.

 

Para entender as razões que moveram os monges trapistas a tal compromisso de radicalidade, a ponto de doarem a própria vida, é necessário tratar a questão da força da experiência espiritual que movia o grupo, e de modo muito particular o prior da comunidade, Christian de Chergé. Em suas homilias, cadernos e escritos, que vão aos poucos tornando-se acessíveis, verifica-se a afirmação de uma sólida vocação em favor do outro, em particular do irmão muçulmano. Ele relata algumas experiências fundadoras nessa sua dinâmica vocacional, como o encontro com o guarda campestre, Mohammed, durante a guerra da Argélia, com o qual estabeleceu profundos laços de solidariedade. Foi alguém que deu sua vida para proteger Christian, e isto ele jamais esqueceu. Relata o caso para mostrar os riscos sobre as generalizações superficiais feitas sobre o islã: “Eu posso dizer que um muçulmano deu sua vida por mim” e esse dom impede qualquer generalização sobre essa tradição religiosa; e mais ainda, significa um gesto que se traduz como apelo a se ligar ainda mais fortemente ao povo da Argélia. De forma semelhante à conversão de Louis Massignon, um evento específico envolvendo um irmão muçulmano, serve de base para uma engajamento positivo de amor para com o outro. Um outro acontecimento lembrado por Christian, envolve também a presença de um irmão muçulmano, com o qual estabeleceu uma experiência de oração em comum. Por fim, lembra também a importância de um encontro que teve com o emir Sayah Attiyah, em 24 de dezembro de 1993, que acabou reforçando nele e na comunidade o desafio de abrigar o dom total de si.

 

O traço peculiar da vida e ação de Christian de Chergé encontra-se no campo da espiritualidade. O seu trabalho foi marcado por uma experiência novidadeira de abertura e aprofundamento dialogal com o outro muçulmano. O toque de sua percepção do diálogo interreligioso não estava fixado no âmbito teórico ou acadêmico, mas da experiência espiritual. Na trilha aberta por Charles de Foucault e Louis Massignon, foi também alguém que se deixou habitar e transformar pelo encontro com o islã. Dentre suas iniciativas nesse campo encontra-se  a fundação do Lugar da Paz (Ribât al Salâm), um pequeno mas substantivo grupo voltado para a afirmação de uma experiência de oração e experiência comum vinculando cristãos e muçulmanos.  A idéia nasceu em 1979 e foi se firmando ao longo do tempo, e o mosteiro de Tibhirine foi o seu espaço de hospitalidade espiritual. Um dos parceiros desse empreendimento foi Mgr Claude Rault, hoje bispo de Laghouat, que relata a riqueza da experiência em seu livro Désert, ma cathédrale (Desclée de Brouwer, 2008). A seu ver, o Lugar da Paz significou “uma experiência de fraternidade espiritual vivida no seio da Igreja e no seio do islã entre parceiros cristãos e muçulmanos”. A intenção era viver a vocação religiosa como proximidade aos amigos muçulmanos, gente simples que vivia “uma grande familiaridade com Deus e um amor concreto para com o próximo”. Os primeiros companheiros muçulmanos que participaram da experiência vieram da confraria muçulmana sufi Alawiya. Já viviam a vocação específica de uma vida de oração no coração mesmo do islã, e encontraram acolhida entre os participantes do Ribât. Eles diziam que seu interesse não estava voltado para um diálogo dogmático ou teológico, travado por tantas barreiras, mas para uma experiência viva de unidade, centrada na oração: “Nós nos sentimos atraídos à unidade. Desejamos deixar Deus criar entre nós alguma coisa de novo. E isto não pode ocorrer senão na oração. Por isso quisemos partilhar esse encontro de oração com vocês”.

 

Em discurso pronunciado aos muçulmanos das Filipinas, em 1981, o papa João Paulo II insistia na experiência da fraternidade entre muçulmanos e cristãos e dizia que os cristãos necessitam do amor dos muçulmanos, e essa era uma condição importante para a realização de uma paz verdadeira. Christian de Chergé gostava de citar essa passagem, para ele inspiradora da experiência do Ribât. Trata-se de um caminho privilegiado para o diálogo interreligioso, centrado na oração e na contemplação. O objetivo era favorecer a possibilidade de um exercício maior de conhecimento e amor do outro, mediante a escuta atenta do Mistério de Deus. Para Christian, a presença dos Alawis proporcionou o exercício da humildade, peça essencial para qualquer diálogo interreligioso. O diálogo requer respeito, cortesia e delicadeza, não só em razão de sua natureza mesma, mas igualmente como expressão de possibilidade de percepção da fé do outro como um dom de Deus. E a oração em comum abre esse caminho singular. Trata-se de um “espaço privilegiado”, no qual “Deus pode inventar algo de novo”, um espaço onde o Espírito Santo “faz o seu trabalho”.

 

A rica experiência do Ribât proporcionou a seus participantes a consciência de um sentido mais elevado da oração, entendida como a “elevação do coração para a Fonte de todo bem”. Na verdade, todos sentiam-se envolvidos por um mesmo laço de fraternidade, banhados pelo amor de Deus. Todos sentiam-se como “buscadores de Deus” e solidários com os amigos. Mas essa solidariedade provocou irritação e ira, como é comum entre aqueles que amam em profundidade. Os que mais amam são aqueles que mais atraem resistência e oposição. Muitos dos membros do Ribât viveram a experiência pascal da violência mortal, como relata Mgr Claude Rault em seu livro. Christian de Chargé sublinhava que a raiz árabe da palavra mártir (shouhada) tem a ver com a profissão de fé muçulmana (shahâda).

 

Em passagem de correspondência com um amigo, ainda inédita, Christian resumiu de forma precisa o sentido de sua missão: “Parece-me que o Espírito quer a todo preço abater os muros de nossos cerceamentos fáceis e nos deixar com as mãos nuas, o coração aberto, prestes a acolher e a doar, a deixar o Cristo cumprir sua passagem, sua Páscoa (...). Disponibilidade a Deus e ao outro diferente que deixa escancarado e aberto o caminho do Amor, ou seja, do futuro comum”.

(Publicado no Portal Amai-Vos - 26 de maio de 2010)

Um comentário:

  1. Você saberia me dar informações sobre a situação do mosteiro atualmente? (2012/2013). Está fechado? Foi abandonado? Retomou suas "atividades"? se sim, quando?
    Valeu e tudo de bom.

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