quarta-feira, 8 de junho de 2016

Claude Geffré: crer e interpretar

Claude Geffré: crer e interpretar

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

No contexto atual da reflexão teológica sobre o pluralismo religioso, o teólogo dominicano Claude Geffré destaca-se como um dos mais originais e instigantes pensadores católicos.  Nascido em Niort (França) em 1926, dedicou boa parte da vida ao ensinamento teológico, começando o seu trabalho nas Faculdades Dominicanas de Saulchoir (1957-1968) e posteriormente no Instituto Católico de Paris (1967-1996). Teve também uma passagem na Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, onde atuou como diretor de 1996 a 1999. Ao lado de sua atuação acadêmica tem marcado presença na revista internacional de teologia, Concilium, enquanto membro fundador e permanente colaborador, bem como na direção da prestigiosa coleção teológica “Cogitatio Fidei”, das Edições du Cerf (Paris). Uma de suas maiores contribuições tem sido no campo da hermenêutica  teológica, onde vem se destacando como pioneiro e qualificado representante  deste tipo de abordagem na França. O desdobramento de sua reflexão para a temática da teologia das religiões ocorreu sobretudo a partir da década de 80, quando então desenvolveu proposições particularmente originais no campo da relação do cristianismo com as outras grandes religiões.

            A presente obra saiu originalmente publicada na França, no ano de 2001.[1] Neste trabalho, Geffré busca responder ao fundamental desafio de uma teologia hermenêutica capaz de correspender à experiência histórica contemporânea, em particular o desafio imprescindível do pluralismo religioso. O título do livro já sugere a retomada de seu projeto  anterior  de trabalhar o tema do cristianismo sob o “risco da interpretação”, agora sob novo ângulo: Crer e interpretar.  A reviravolta hermenêutica da teologia.  De forma bem organizada, o livro vem dividido em 7 breves capítulos, abordando os seguintes temas: A teologia como hermenêutica (1), Para uma hermenêutica conciliar (2), O neo-fundamentalismo na igreja (3), O pluralismo religioso como paradígma teológico (4), A salvação de Jesus Cristo e a missão da igreja (5), A reinterpretação  teológica do judaísmo (6), A filiação divina de Jesus e o monoteísmo muçulmano (7).

            O autor justifica no prólogo do livro a intenção de retomar o seu programa de teologia hermenêutica, desenvolvido no livro O cristianismo sob o risco da interpretação.[2]  Na ocasião havia afirmado que “a fé só é fiel ao seu impulso e ao que lhe é dado crer se levar a uma interpretação criativa do cristianismo”. Assume desde então, como convícção  íntima, a perspectiva de que uma teologia de orientação hermenêutica não significa uma entre outras correntes da teologia, mas “o destino mesmo da razão teológica no contexto do que se pode pensar contemporaneamente”. Indica que um dos mais decisivos desafios para a teologia neste início de milênio relaciona-se ao pluralismo religioso, entendido como traço quase insuperável.  Não hesita em afirmar que este pluralismo assume hoje o papel de um “novo paradigma teológico” que confirma a dimensão hermenêutica da teologia. Em linha de superação da tradicional teologia da salvação dos infiéis, afirma-se agora uma teologia inter-religiosa,  mais sensível e aberta aos desafios do tempo e voltada para a compreensão do significado do pluralismo religioso no desígnio unitário de Deus. No concerto polifônico das religiões mundiais, o cristianismo não perde sua singularidade, mas vem provocado a redesenhar sua identidade. Mas esta singularidade não pode em hipótese alguma apagar ou restringir o que há de único e de irredutível  em cada religião. Este dado da irredutibilidade das outras tradições  revela o mistério que habita as religiões, que jamais pode ser completado por outra. Um enígma  que convoca a reinterpretação da singularidade mesma do cristianismo. Estas são interrogações que acompanharão o autor ao longo de todo o livro.

            No primeiro capítulo aborda o tema da teologia como hermenêutica. Para o autor, a hermenêutica não significa uma corrente teológica entre outras, mas uma “dimensão interior da razão teológica ou ainda um novo paradigma, um novo modelo, uma nova maneira de fazer teologia”. A hermenêutica provoca assim uma reviravolta na teologia, intimamente associada à reviravolta linguística. Geffré estabelece uma distinção entre hermenêutica enquanto interpretação dos textos fundadores do cristianismo e a hermenêutica enquanto interpretação das fórmulas dogmáticas. Esta última tarefa hermenêutica não traduz para o autor uma relativização dos dogmas, mas um exercício de re-situar tais fórmulas dogmáticas na organicidade da fé. Marcando continuidade com seus escritos anteriores, Geffré busca distinguir o modelo dogmático que marcou a teologia católica após o concílio de Trento, do atual modelo hermenêutico. No primeiro modelo, a teologia é muito mais reflexo do que fonte. Sua tarefa fundamental é a de explicar o ensinamento oficial. A Escritura e a tradição entram apenas para comprovar o ensinamento dominante. Por sua vez, o modelo hermenêutico  tem como ponto de partida o texto,  privilegiando a sua compreensão e sua inscrição numa dada tradição. Para Geffré, não pode haver pensamento fora da linguagem e da tradição de linguagem onde alguém se inscreve. É no contexto de um lugar determinado, com seus recursos próprios, que são disponibilizados os esquemas interpretativos a partir dos quais faculta-se a apreensão da realidade e a eventual elaboração de novos conceitos. No caso da interpretação cristã, o teólogo irá se utilizar da longa tradição textual do cristianismo para poder aceder à experiência fundamental da salvação oferecida por Deus em Jesus Cristo. Sua singular tarefa hermenêutica será restituir esta experiência fundamental, dissociando-a de suas representações e interpretações, pertencentes a um mundo de experiência atualmente transformado. Não se pode prescindir nem do olhar do passado nem da prospectiva com respeito ao futuro. Para aquele que busca captar teologicamente o acontecimento de Jesus, há que reconhecer  que ele vem recoberto pelo evento da palavra e pelo evento da escritura. Tal acontecimento  é o ponto de partida de uma experiência de fé que se faz  mensagem. A boa interpretação  não é necessariamente a mais fielmente rigorosa, mas aquela que suscita as melhores potencialidades da obra. A hermenêutica envolve uma dinâmica de conversação entre o leitor e o texto, mas ambos falam e colocam questões. O modelo hermenêutico em teologia traz consequências bem precisas, como uma nova aproximação da Escritura e abertura às suas potencialidades desconhecidas; o reconhecimento de uma pluralidade de testemunhos que buscam traduzir o acontecimento fundador, rompendo-se com a obsessão fundamentalista em favor de uma palavra pura e original; a releitura da tradição, que busca discernir a experiência histórica subjacente às formulações dogmáticas.  Há que acrescentar ainda a atenção concedida à dimensão prática, aos sujeitos concretos da história. A hermenêutica do sentido conduz à uma determinada prática social, não produz apenas novas interpretações mas motiva igualmente um novo fazer.

            No segundo capítulo, Geffré propõe uma hermenêutica conciliar. Da mesma forma como os textos da revelação podem ser objeto de uma interpretação, o autor sugere que semelhante procedimento seja também aplicado com liberdade aos textos da tradição dogmática. O autor não nega a importância essencial da fidelidade ao passado, mas acrescenta que esta fidelidade deve ser criadora. Isto é verdadeiro para toda tradição, mas em particular para o cristianismo, na medida em que o que é transmitido não é apenas um texto do passado, ou um acontecimento do passado, mas uma realidade sempre atual: o acontecimento da ressurreição de Jesus Cristo. Estar em presença da tradição cristã é participar  de um acontecimento dinâmico, inserido no coração da história. Há um elemento que é doado, que é precedente, mas que reeditado historicamente ganha uma interpretação criadora. Assim ocorre também com as definições dogmáticas, mediante as quais a tradição cria suas confissões de fé. Tais definições não se reduzem a atos de jurisprudência, mas traduzem também atos de interpretação. Buscam responder uma situação de crise, onde um dado elemento de fé pode estar sendo contestado, mas não podem expressar  a totalidade da fé cristã, pois determinadas mudanças na situação eclesial tendem a exigir um novo sentido com respeito àquele original. A dinâmica da recepção pela igreja do ensinamento do magistério, não pode ser fechada, mas deve estar sempre aberta e disponível para a retomada criadora tendo em vista as novas experiências históricas e eclesiais.

            O terceiro capítulo aborda o tema do neo fundamentalismo na igreja. Ao analisar esta complexa questão, Geffré reconhece a diversidade de sentidos que recobrem hoje a questão do fundamentalismo. O termo vem aplicado, nem sempre de forma rigorosa, a várias experiências religiosas, provocando assim equívocos e incompreensões. A “nebulosa fundamentalista” ganha, na visão do autor, duas possibilidades  de expressão: o fundamentalismo escriturístico e o fundamentalismo doutrinal.  A reflexão de Geffré estará sobretudo concentrada  na primeira forma de expressão. Concentrando-se no caso particular do cristianismo, Geffré indica que a ação dos fundamentalistas atua sobretudo contra  a plausibilidade  do conjunto de recursos de ordem científica e histórica  colocados à disposição da comunidade eclesial. Em nome da fé provoca-se o “suicídio da inteligência”. Para os fundamentalistas cristãos, não há outra história senão aquela que resulta da relação direta com os fatos e gestos de Jesus apresentados no Novo Testamento. Os textos evangélicos são entendidos como estenografia das palavras de Jesus. Não se admite em hipótese alguma a presença e o valor da dinâmica interpretativa e de reconstrução de um acontecimento histórico. O que na verdade ocorre, acompanhando a tentação fundamentalista, é o desconhecimento não só da dinâmica histórica, mas também da ação do Espirito no mundo e na igreja.

            Um dos eixos mais importantes do livro de Geffré vem apresentado no quarto capítulo, que trata do pluralismo religioso como paradigma teológico. Na visão do autor, o pluralismo religioso  constitui o “horizonte da teologia no XXIº século”. O pluralismo religioso é um dado essencial da experiência histórica deste tempo contemporâneo, que nenhuma teologia que se pretenda hermenêutica pode prescindir. É a partir de sua percepção, não apenas como fato mas também como valor, que se coloca hoje em dia o desafio de reinterpretação das verdades fundamentais do cristianismo.  Os teólogos são hoje convocados  a reconhecer para além de um pluralismo de fato, a presença de um pluralismo de princípio que corresponde a um misterioso desígnio divino. Esta é, para Geffré, a nova questão teológica  que se apresenta para a teologia hermenêutica e para a teologia moderna das religiões no momento atual. O pluralismo religioso  vem reconhecido como um “destino histórico autorizado por Deus, cuja significação última nos escapa”. Trata-se de um reconhecimento essencial para qualquer diálogo  inter-religioso:  a consciência precisa da presença de um enigma da pluralidade das religiões em sua diferença irredutível  e irrevogável. Contrariamente à idéia de que representa um mal, ou dado conjuntural momentâneo,  a diversidade religiosa  constitui expressão das riquezas espirituais  dispensadas  por Deus às nações (AG 11). O pluralismo de direito provoca o reconhecimento da cidadania das religiões, bem como o estatuto de suas verdades diferentes e a caminho. Nenhuma religião pode esgotar o sentido da verdade. Cada religião traduz um vínculo particular  e contingencial, que ao mesmo tempo possibilita  e interdita a aproximação ao mistério das riquezas de Deus. Ao final do capítulo, Geffré aponta para a possibilidade  de um ecumenismo planetário, que traduza simultaneamente a afirmação autêntica do humano e o descentramento de si em direção ao mistério da alteridade transformante do Deus sempre maior.

            No quinto capítulo vem abordado o tema da salvação em Jesus Cristo e a missão da igreja. Na visão de Geffré, a teologia católico-romana tem buscado nos últimos anos superar um eclesiocentrismo estreito em favor de uma unicidade de inclusão. Torna-se mais difícil encontrar aqueles que defendem peremptoriamente o cristianismo como única religião autêntica e verdadeira. Há em curso uma nova sensibilidade a respeito. Na linha aberta pelo Vaticano II, Geffré busca defender que as religiões constituem mediações derivadas de salvação e objetivações da vontade salvífica universal de Deus. Ao destacar o lugar das religiões no plano da salvação, o autor indica a idéia de mediações derivadas, pois a mediação essencial cabe para ele a Jesus Cristo. Nem mesmo a igreja é vista como mediação exclusiva da salvação, pois Deus está para além das mediações eclesiais, como a palavra, os sacramentos e os ministérios. Todas as religiões estão marcadas por ambiguidades. Geffré reconhece a presença de valores crísticos  nas diversas religiões, que possibilitam inclusive a melhor explicitação  de certas virtualidades  do mistério cristão não visualizados  no próprio cristianismo. Estes valores podem ser da ordem do conhecimento, do culto e da exigência ética.  Para Geffré, a história humana está recoberta por uma “cristianidade”, que traduz por toda a parte a superabundante presença do mistério de Cristo. O recurso à noção de “cristianidade”é visto pelo autor como uma possibilidade real de ampliar a visão inclusivista, que atribuía “valores implicitamente cristãos” às outras tradições religiosas. O reconhecimento da presença de “valores crísticos”, melhor do que “cristãos”, seria para ele mais conveniente para resguardar a dignidade e o enígma do pluralismo religioso.

No quadro geral da teologia das religiões, Geffré encontra sua melhor identificação no âmbito do inclusivismo.[3]  Para a especificação de sua posição, joga um importante papel a idéia do mistério de Cristo como universal concreto. Em posição equidistante tanto do exclusivismo como do pluralismo mais radical, o autor prefere o caminho do aprofundamento do mistério da encarnação: “Em lugar de recorrer a um teocentrismo  geral,  creio que é o aprofundamento do mistério da encarnação que nos deve permitir compreender como manter a singularidade do mistério de Cristo, sua unicidade, sem que tal unicidade resulte numa espécie de imperialismo, de hegemonia do cristianismo com respeito às outras religiões”. Segundo Geffré, não é descartando mas aprofundando o mistério da encarnação que se pode chegar a uma perspectiva dialogal. O aprofundamento deste mistério possibilita  reconhecer inclusive os limites presentes no cristianismo e na própria humanidade de Jesus, enquanto limitada e aberta às riquezas do Verbo de Deus. Para Geffré, Jesus é ícone  e não ídolo de Deus. Com base na reflexão dos padres da igreja, ele insere “a economia do Verbo encarnado como o sacramento de uma economia mais vasta, aquela do Verbo eterno de Deus, que coincide com a história religiosa da humanidade”. O aprofundamento do mistério da encarnação revela a dimensão kenótica inerente ao cristianismo e de sua intrínseca dimensão dialogal, que convoca ao outro e ao diferente; bem como o valor simbólico da cruz, que traduz uma universalidade ligada ao sacrifício da particularidade. Segundo Geffré, é no interior da lógica inclusivista, depurada de uma visão limitada da singularidade  cristã, que se deve buscar o caminho dialogal. Para tanto deve-se evitar confundir “a universalidade de direito do Cristo como Verbo encarnado e a universalidade  do cristianismo como religião histórica”.

O autor defende uma unicidade do cristianismo relativa e não de excelência e integração, sem que venha comprometida a singularidade  cristã. Trata-se de uma unicidade animada pela abertura e pelo devenir. Daí ser equivocado dizer que o cristianismo complementa todas as religiões.  A correta relação do cristianismo para com as demais religiões deve estar precedida pela clara consciência da irredutibilidade  de cada tradição religiosa, de forma a honrar dignamente a sua alteridade. Esta nova perspectiva teológica recoloca sob novas bases a missão da igreja e redefine sua urgência. Segundo Geffré, não é a igreja que define a missão, mas é a missão que delineia o rosto de uma igreja que busca ser na história o sinal do Reino de Deus. Em sua visão, “a vocação histórica da igreja não se traduz pela extensão quantitativa dos cristãos mas em favorecer, no diálogo  com todos os homens e mulheres de boa vontade que podem pertencer ou não a outras religiões, o testemunho do Reino de Deus que vem”.  A missão de testemunhar os valores do Reino na história não pode ser automaticamente motivada pelo desejo  de conversão  do outro à lógica particular da tradição específica. O objetivo  não deve ser o da mudança de religião, mas de mudança na forma de exercício da religião, uma metanoia que produza a transformação recíproca de cada um.

            O capítulo sexto trata a questão da reinterpretação da teologia do judaísmo. O autor busca  abordar a questão de um patrimônio comum entre judaísmo e cristianismo. Seu objetivo é mostrar as mudanças ocorridas no campo católico-romano na linha de superação de uma mentalidade cristã anti-judaica.  Assinala a importância da declaração conciliar  Nostra aetate no reposicionamento da questão, ao sinalizar a singularidade e permanência de Israel com respeito à igreja católica. Mas esta abertura nem sempre encontrou continuidade em documentos eclesiais subsequentes, que demonstram a permanência ainda que velada de uma tradicional teologia da substituição, ou de transferência de alianças. Para Geffré, o tema da relação do cristianismo com o judaísmo ganha hoje grande atualidade pois revela-se paradigmático não só para o ecumenismo confessional mas também para o diálogo inter-religioso. Com ele emerge a essencial questão da irredutibilidade das tradições religiosas. O autor sublinha a importância do histórico discurso do papa João Paulo II na sinagoga de Roma, em abril de 1986. Em seu discurso aos representantes da comunidade judaica de Roma, o papa identifica os judeus como “irmãos prediletos” e afirma a “vocação irrevogável” do povo de Israel. Com seu discurso, o papa indica que a religião judaica não é extrínseca, mas intrínseca à religião cristã. Afirma-se, assim, a presença viva de um “patrimônio comum” entre as duas grandes tradições religiosas e a perenidade de Israel.

            O último capítulo do livro aborda o tema da filiação divina de Jesus e o monoteísmo muçulmano. O autor busca neste momento estabelecer pistas para um diálogo entre o islã e o cristianismo. A grande dificuldade para este diálogo relaciona-se à compreensão do monoteísmo, ou seja, a distinta inteligência na captação do mesmo mistério de Deus. Para Geffré, encontra-se aberto o diálogo entre o monoteísmo muçulmano e o monoteísmo cristão, pois as críticas tecidas pelo primeiro à questão da trindade e da filiação divina de Jesus não tensionam com a verdadeira compreensão cristã destes mistérios, uma vez bem compreendidos. O autor encontra uma pista para o diálogo fecundo com o islã na cristologia narrativa de Jesus Servidor de Deus. Seja para os cristãos, como para os muçulmanos, é o Deus de Jesus que é absolutamente único, o Deus confessado na experiência judaica de Jesus. A unidade e a unicidade de Deus vêm confirmadas seja na fé cristã como na muçulmana. Com base nos testemunhos da tradição neotestamentária, Geffré sublinha que a filiação divina de Jesus diz respeito não ao mistério da encarnação, mas ao mistério da páscoa, ressurreição e exaltação de Jesus como Cristo. O autor vale-se do conceito de “entronização”, tomado das mais antigas confissões de fé, para justificar sua tese. A filiação divina de Jesus, segundo o Novo Testamento, não é necessariamente de ordem de uma geração física ou metafísica, recusadas pelo islã, mas de ordem de uma entronização e enaltecimento de Jesus por Deus. É o que traduz São Paulo na carta aos Romanos, quando assinala que Jesus foi “estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos” (Rm 1, 4), e os Atos dos Apóstolos: “Tu és o meu filho, eu hoje de gerei” (At 13, 33). O caminho proposto por Geffré, na linha de uma cristologia narrativa do Jesus Servidor de Deus, traduz uma tendência da moderna exegese neo-testamentária. Uma tal cristologia distancia-se da tradicional cristologia descendente e permite um diálogo mais fecundo com o islã. Neste diálogo há uma mútua interpelação. De um lado, uma advertência do islã para os cristãos, no sentido de evitar uma confissão da divindade de Jesus que atenue os direitos absolutos de Deus; por outro, do cristianismo para o islã, no sentido de uma convocação de abertura a uma maior dinamização da unicidade de Deus, rompendo com o risco de uma compreensão da divindade como perfeição auto-suficiente e impermeável à diferença do Deus de Abraão, Isaac e Jacó.

            O livro em análise é claro e sintético, profundo e abrangente. A questão abordada é complexa e arriscada. Claude Geffré aceita o corajoso desafio de assumir esta espinhosa tarefa de clarear os rumos da compreensão da singularidade cristã nestes tempos de pluralismo religioso. O livro supera as expectativas e apresenta, dentro dos marcos do inclusivismo, hipóteses inovadoras. A presente tradução vem responder a uma lacuna ainda existente no Brasil a propósito da teologia do pluralismo religioso. Trata-se de uma iniciativa que vem favorecer o acesso à reflexão mais atual de Geffré, cujos trabalhos mais recentes, infelizmente, não se encontram disponíveis  na lingua portuguesa.

(Apresentação do livro de Claude GEFFRÉ. Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 9-22)




[1] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter. Le tournant herméneutique de la théologie. Paris: Cerf, 2001. Em precedência, havia publicado o interessante livro de entrevista: Profession théologien. Quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle. Paris: Albin Michel, 1999 (Entretiens avec Gwendoline Jarczyk).
[2] Id. Le christianisme au risque de l´interprétation. Paris: Cerf, 1983 (Cogitatio Fidei nº 120). Sua tradução brasileira saiu com o título: Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989.
[3] A posição inclusivista tem como traço de singularidade a atribuição de um valor positivo para as outras religiões e o seu reconhecimento como mediações salvíficas para seus membros. As religiões do mundo são reconhecidas como caminhos de salvção, mas enquanto implicam a salvação de Jesus Cristo.

Claude Geffré - Desafios teológicos para o século XXI

Claude Geffré – Desafios teológicos para o século XXI

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
           

O teólogo dominicano Claude Geffré, nascido em Niort (França) em 1926, constitui um dos grandes nomes da teologia contemporânea. Ao termo de seu mandato na direção da Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, Geffré apresenta neste livro um rico e significativo depoimento sobre a sua vida e seu trabalho teológico à filósofa Gwendoline Jarczyk. No processo de comunicação instaurado entre estes dois pensadores, somos convidados a acompanhar a riqueza do panorama teológico atual: seus desafios, esperanças e impasses.
            A obra vem dividida em quatro partes. Na primeira parte (p. 9-56), Geffré relata seu trabalho em Jerusalém como diretor da Escola Bíblica e Arqueológica Francesa, após 28 anos de ensino no Instituto Católico de Paris. Traduz sua experiência como um “exílio no coração da pátria”. Eleito por unanimidade pelo corpo de professores da Escola Bíblica de Jerusalém em maio de 1996, Claude Geffré só veio assumir a tarefa ao final do ano, após negociações da Ordem dos Pregadores com a Congregação para a Educação Católica, presidida pelo cardeal Laghi, que encontrava dificuldades para confirmar o seu nome em razão das perplexidades que sua concepção de teologia como hermenêutica provocava em Roma.
            A experiência em Jerusalém favoreceu a Geffré o aprofundamento de sua compreensão do enigma das religiões e do mistério da gratuidade de Deus. Como teólogo e cristão não permaneceu indiferente diante dos desafios que acompanham esta cidade símbolo, expressão ou caricatura do rompimento da própria cristandade; uma cidade que revela complexidade singular e expressa de forma viva as ambigüidades da história religiosa da humanidade. Se, por um lado, os confrontos étnico-político-religiosos – presentes em Jerusalém – manifestam certa vinculação do sagrado com a violência, isto não significa, por outro, a impossibilidade de uma convivência possível e harmônica. Face ao instinto poderoso da violência, antepõe-se a “convivialidade”, como dinamismo profundo dos seres humanos. Estes não se definem exclusivamente pelo instinto de sobrevivência, pautado pela lógica da auto-violência destrutiva, mas encontram-se, sobretudo, animados pelo desejo de se comunicar, de festejar, de rezar, adorar e contemplar o mundo.
A virulência das intolerâncias étnico-religiosas presentes em Israel reforçou em Geffré sua convicção profunda do “irredutível” que acompanha cada tradição religiosa. Há um enígma das religiões que não pode em hipótese alguma ser decifrado ou complementado em nossa história. Isto nos leva a afirmar uma singularidade das diversas tradições religiosas e a legitimidade de suas reivindicações com respeito ao Absoluto. Respeitar o enigma das religiões é corresponder ao mistério da “transcendência de amor” do Deus sempre maior, que se define essencialmente como doação. Para Geffré, a concepção trinitária de Deus revela um princípio de diferenciação que celebra a alteridade. Não se trata de uma transcendência de ser sob o signo de uma identidade isolada, mas de uma transcendência de amor, sinalizada pela “vulnerabilidade” e pela “humildade”, expressões de um profundo respeito para com a criatura livre criada à sua imagem.
A experiência de Deus subsiste apesar dos sinais de incredulidade e indiferença religiosa presentes em nosso tempo. Há sempre um “rumor de anjos” ou “vestígios” deste Deus amoroso acompanhando as experiências do ser humano, tanto nos momentos de sofrimento e angústia, como nos momentos de gratuidade. O Deus que se manifesta quando rompemos com a trama de repetição do cotidiano, quando nos emocionamos diante do sublime e da beleza. Nestes momentos que ultrapassam a “ordem do descritivo” o “ausente” se revela como o que há de mais íntimo e fundamental do ser humano.
            Na segunda parte     do livro (p. 59-134), Geffré aborda o seu itinerário teológico. Inicialmente, desenvolve a dinâmica de gestação de sua vocação dominicana, e os primeiros contatos com o convento de Saulchoir, onde atuará por 17 anos, como estudante, mestre e regente de estudos e, posteriormente, reitor das Faculdades. Momento importante na vida de Geffré, ocorreu por volta de 1968, quando assume a tarefa de professor no Instituto Católico de Paris, a convite de Danièlou. Foi o primeiro teólogo dominicano a ensinar teologia neste célebre Instituto, até então sob a tutela dos jesuítas. Durante um bom período respondeu pela docência de teologia fundamental. Esta cadeira favorecia o aprofundamento de questões de fronteira que animavam o cenário teológico do período, em particular a problemática da incredulidade e da indiferença religiosa.
            Em 1988 surge a oportunidade de ampliação de horizontes, quando Geffré vem nomeado professor de hermenêutica teológica e teologia das religiões, passando a lecionar no segundo ciclo. Novos caminhos se abrem no seu itinerário intelectual. Com o tempo pôde perceber que a entrada neste novo campo não representava ruptura mas continuidade com respeito à reflexão anterior sobre a credibilidade do cristianismo diante da incredulidade. As duas tarefas provocavam a reflexão hermenêutica. Assim como a questão da incredulidade convocava a uma interpretação das grandes afirmações da fé cristã, também a questão das outras religiões suscitava semelhante reinterpretação do cristianismo. Sua proposta era a de elaborar uma teologia feita em situação, sempre atenta e aberta aos desafios da cultura; uma teologia voltada para uma nova inteligência da mensagem cristã e, para tanto, disposta a “relativizar as expressões históricas da fé e buscar propor, não uma nova fé, mas uma nova expressão da fé” em sintonia com o espírito e as condições do tempo atual.
            A grande originalidade da reflexão de Claude Geffré situa-se no campo da hermenêutica teológica. Tem exercido neste domínio um papel pioneiro e inovador, apontando a necessidade na teologia de um esforço permanente em traduzir as verdades antigas numa linguagem acessível. O exercício criador no ato mesmo da interpretação é o grande desafio da hermenêutica. A verdade não existe deslocada de uma linguagem, não sendo portanto acessível senão no processo de uma interpretação infinita.
Um olhar atento sobre o cristianismo nos faculta perceber que o dado da interpretação acompanha toda a sua trajetória desde o início. Não temos acesso à palavra viva de Jesus senão mediante os Evangelhos, que constituem narrações teológicas plurais, destinadas a interpretar uma tradição oral. Estamos diante de três acontecimentos: o acontecimento original em sua facticidade, o acontecimento da palavra (tradição oral) e o acontecimento da escritura (tradição escrita). Nenhum destes dois últimos acontecimentos pretendem apresentar uma estenografia da palavra mesma de Jesus. Para Geffré, deveríamos mesmo abandonar qualquer nostalgia de alcançar a fonte mesma desta palavra inicial. Estamos sempre, e desde o início, diante do “risco da interpretação”, mas de uma interpretação assistida pelo Espírito. A pluralidade de testemunhos, que corresponde a uma pluralidade de gêneros literários, faculta à Escritura seguro mecanismo de proteção contra a “esclerose de uma letra que poderia se apresentar como monolítica”.
Em nome da singularidade da hermenêutica, Geffré defende a liberdade da razão teológica proceder de forma livre em suas interpretações da mensagem cristã. Esta mensagem não permite uma única e exclusiva interpretação, o que seria na prática uma perspectiva uniformizadora e monolitista, mas abre horizontes múltiplos e diferenciados. Ao defender esta posição, Geffré não exclui o papel de regulação social da mensagem cristã exercido pelo magistério da Igreja católica para o conjunto do corpo dos fiéis, mas se recusa a aceitar a idéia de uma teologia confinada à confirmação de um ensinamento oficial. Para Geffré, o teólogo é alguém que não apenas reinterpreta o ensinamento da Igreja, mas que “igualmente interpela o magistério em nome da fé presente no espírito moderno.” Deve estar, simultaneamente, em comunhão com a Igreja e o pensamento contemporâneo.
Uma teologia que assuma de fato a tarefa hermenêutica deve sintonizar-se com os desafios que as outras grandes civilizações e tradições religiosas apresentam para o cristianismo. Como bem assinala Geffre, nestes vinte séculos de cristianismo pudemos conhecer unicamente uma figura histórica do cristianismo, colorido pela civilização mediterrânea. Com a dinâmica da globalização e da inculturação novas possibilidades se apresentam. Estamos já assistindo o início de uma nova “conversação”, de um “encontro criador” entre tradições religiosas e culturais diferentes. Os resultados deste processo são imprevisíveis, mas certamente um rosto novo do cristianismo poderá emergir e deverá ser respeitado. À luz da nova reflexão teológica, nos damos conta que as outras grandes culturas não constituem “lugares passivos de recepção: elas guardam consigo um potencial propriamente revelacional com respeito à interpretação e à nova inteligência das virtualidades do cristianismo.”
Em seu exercício hermenêutico, o teólogo deverá estar atento a fazer um discernimento importante entre o que constitui afirmação fundamental da fé e o que constitui sua representação relativa ligada a determinado momento histórico. Abre-se aqui a desafiante questão da interpretação dos dogmas e sua recepção mais “serena”, tendo em vista o lugar de seu nascimento e sua relação com as outras verdades de fé. Abre-se igualmente um novo campo para a compreensão da revelação. Em perspectiva hermenêutica, a revelação envolve um ato de interpretação. Antes de ser uma palavra vinda de Deus e expressa em palavras humanas, vem agora percebida como uma “história interpretada pelos profetas que explicitam o seu sentido sob a ótica de Deus”. Não se pode desconhecer – nos lembra Geffré – que a Palavra de Deus é sempre uma palavra que acontece em palavras humanas e através destas mesmas palavras; ela se torna palavra de Deus para nós “a partir do momento em que vem mediatizada pela palavra profética.”
Na terceira parte do livro (p. 135-237), Geffré desenvolve de forma precisa a obra de seu pensamento, em particular suas investigações sobre o tema do pluralismo religioso, o diálogo inter-religioso e a missão da  Igreja católica. O livro alcança aqui o seu momento de maior densidade, ao sinalizar o campo atual de concentração das pesquisas do autor, sobretudo sua proposta de uma verdadeira  teologia inter religiosa.
Inicialmente, Geffré sublinha a importância de uma nova perspectiva de compreensão do pluralismo religioso. Para além de um simples fenômeno histórico, ou expressão da cegueira culpável dos homens, este pluralismo corresponderia ao desígnio misterioso de Deus. Trata-se de um pluralismo de princípio e não apenas de fato, como algo inevitável. Ao contrário do que poderia parecer, este pluralismo de princípio não entra em contradição com a pretensão de unicidade própria ao cristianismo, na medida em que a economia cristã do Verbo encarnado insere-se como sacramento de uma economia mais vasta que envolve toda a história da humanidade. Para Geffré, a humanidade inteira vive sob o signo do Espírito de Deus, estando marcada pela presença latente do mistério de Cristo. Desde que existe, a humanidade jamais esteve abandonada a si mesma, mas sempre sob a solicitação da graça. Esta “cristianidade” constitui um fenômeno universal e susceptível de ser partilhado por todos os seres humanos. Só nesse sentido é que se pode falar de universalidade do cristianismo.
Em razão desta presença latente do mistério de Cristo, desta “cristianidade” da história, podemos reconhecer nas várias tradições religiosas potencialidades na ordem da salvação. Enquanto religião necessariamente ligada a uma cultura, o cristianismo não consegue totalizar todas as riquezas presentes na relação do ser humano com o mistério da transcendência. As diversas tradições religiosas estão animadas por virtualidades inéditas com respeito ao cristianismo. Neste sentido, a revelação encontra-se em processo de continuidade, na medida em que novas virtualidades revelatórias advindas da conversação inter-religiosa estão em processo de manifestação. Como salienta Geffré, neste tempo da história deverá sempre ocorrer uma coexistência de riquezas do religioso, das quais o cristianismo constitui testemunho privilegiado mas não exclusivo.
Mediante a conversação inter-religiosa processa-se um mútuo enriquecimento e uma fecundação recíproca das tradições disponibilizadas ao diálogo. Nesta dinâmica, a tradução atual da revelação cristã vem enriquecida pelas “experiências reveladoras suscitadas pela práxis e pelas atitudes religiosas fundamentais que encontramos nas outras tradições religiosas.” Estamos aqui diante de uma reflexão de longe alcance, exigindo grande humildade para a sua verdadeira captação. Reconhecer as virtualidades revelatórias do outro não significa negar o dado de incondicionalidade que deve animar a nossa relação com o mistério absoluto. Toda fé verdadeira não só implica mas exige um engajamento absoluto com respeito a uma verdade. O diálogo inter-religioso acontece com interlocutores animados por esta relação absoluta à verdade. Esta relação incondicional a uma verdade singular não a torna por si absoluta.
Para Geffré, o diálogo inter-religioso favorece uma partilha da verdade. Na dinâmica de humildade e despojamento que o diálogo implica, somos convidados a “ultrapassar” nossa limitada e insuficiente concepção de verdade e celebrar uma verdade mais alta. Só no diálogo percebemos o mistério desta verdade que ultrapassa as experiências singulares. De certa forma, a relação com a verdade dos outros favorece uma melhor compreensão da verdade que professamos. Para Geffré, há mais riquezas de ordem religiosa no concerto polifônico das diversas tradições religiosas que exclusivamente no cristianismo histórico considerado em sua singularidade.
Ao refletir sobre a questão desta partilha da verdade, Geffré aponta para o grande desafio da inculturação, que não pode ser simplemente entendida como uma mera tradução da mensagem cristã na cultura do outro. Se admitimos a presença de virtualidades crísticas inéditas presentes no humano autêntico e em suas tradições religiosas diversificadas, devemos reconhecer que tais virtualidades constituem fatores necessários para manifestar todas as riquezas do mistério de Cristo. Este mistério encontra-se não apenas “escondido” mas também em processo no patrimônio espiritual das outras tradições religiosas. A inculturação envolve tanto um processo de interrogação profética do interlocutor com respeito à sua verdade, mas também o despertar de novas nuances e virtualidades que só ganham clareza no processo dialogal. Este processo, apenas iniciado, proporcionará, certamente, a ocasião para a emergência de novas figuras históricas do cristianismo, até então desconhecidas.
Para Geffré, esta nova percepção dialogal não esvazia o sentido da missão da Igreja católica. Esta missão envolve, certamente, o anúncio e proclamação de Jesus Cristo e a realidade do seu Reino; mas verifica-se igualmente nas ações práticas em favor do outro em nome do Evangelho. Como já dizia Chenu, evangelizar é encarnar o Evangelho no tempo, na história. Tudo o que fazemos para evitar que o ser humano seja desfigurado em sua dignidade de imagem e semelhança de Deus toca o cerne do projeto evangelizador. O grande e fundamental desafio da missão consiste em manifestar o amor de Deus para todos os seres humanos, favorecendo a irrupção do Reino de Deus não apenas em seus corações mas também nos caminhos da história. Nesta nobre tarefa é que a Igreja católica realiza a sua condição de sacramento de unidade, de “parábola de uma unidade”. Deve, portanto, dispor – juntamente com as outras tradições religiosas – de seus fundamentais recursos espirituais para favorecer a convivialidade entre os seres humanos e a afirmação de um espírito de paz.
No contexto do pluralismo atual, o diálogo inter-religioso envolve não somente o trabalho comum em favor da afirmação do humano, mas suscita um diálogo também a nível teológico. O grande desafio para o teólogo das religiões hoje em dia, como sublinha Geffré, consiste em tomar a sério “a infinita diversidade do fenômeno religioso através da história e do tempo” e confrontá-la com a sua convicção da unicidade do desígnio de Deus e da economia da salvação tal qual se concretiza no acontecimento de Jesus Cristo. Trata-se de uma tarefa extremamente importante, mas também delicada. Nos últimos anos temos acompanhado momentos de tensão entre o magistério da Igreja católica e os teólogos comprometidos nesta reflexão. Pudemos acompanhar recentemente o caso do teólogo jesuita Jacques Dupuis, que publicou um dos livros mais importantes sobre o tema nos últimos anos: Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso (1997). Para Geffré, trata-se de uma obra de valor exemplar: “marca uma etapa na história da teologia cristã, um verdadeiro momento epocal, no sentido de traduzir uma mudança de paradigma na maneira de fazer teologia”. Ao final da terceira parte de seu livro, Geffré aborda os pontos de relação e diferença entre a sua reflexão e a elaborada por Dupuis. Em linhas gerais, partilha amplamente as diversas opções assumidas por Dupuis com respeito ao tema da teologia das religiões, discordando da decisão assumida pela Congregação para a Doutrina da Fé com respeito à obra em questão. Como bom teólogo e hermeneuta, Geffré sinaliza a improcedência de certas atitudes disciplinares fechadas a propósito de um campo de reflexão em processo de continuidade: “com respeito à teologia das religiões, estamos num terreno novo, um canteiro ainda aberto, e o mais importante é deixar o debate teológico se instaurar antes de o fechar.”
Um aspecto importante da reflexão de Geffré, que o distingue de Dupuis, diz respeito à problemática de uma possível ou não complementaridade das diversas tradições religiosas. Para Geffré, não é possível falar em complementaridade ou síntese entre as diversas tradições religiosas no plano da história. Se concorda, por um lado, na presença universal de uma “cristianidade” que envolve todo ser humano, e que transborda o próprio cristianismo histórico, discorda quanto à possibilidade de uma complementaridade harmoniosa das riquezas múltiplas testemunhadas pelas diversas tradições religiosas. Há que resguardar a “alteridade irredutível” presente em cada religião singular e o enigma do pluralismo religioso. Enquanto houver história haverá também uma situação de “constestação recíproca” salutar. Em síntese, ninguém pode antecipar a forma como se dará, no eschaton esta convergência e complementaridade. O cristianismo deve, neste tempo da história, viver a permanente “exigência de ultrapassagem”, sempre aberto às inéditas solicitações do Espírito.
Na Quarta parte de seu trabalho (p. 239-299), Geffré desenvolve o tema da utopia criadora presente no diálogo inter-religioso.  O evento inter-religioso ocorrido na cidade de Assis (Itália) em 1986 vem considerado como exemplar enquanto manifestação de experiência espiritual polifônica. A partir da singularidade de recursos espirituais diversos verificou-se uma comunhão com a Realidade Última e a solidariedade mútua com o valor transcendente da paz.
A Igreja católica não se encontra sozinha nesta caminhada em favor de uma unidade polifônica, nem pode pretender ser o único agente  de uma humanidade reconciliada. Para além da ação da Igreja “é necessário reconhecer e confiar nas potencialidades mesmas da humanidade”, nas outras esferas e mediações da vida humana. Embora portadora qualifificada dos meios de salvação, a Igreja católica deve estar sempre aberta para perceber e receber aspectos e traços da verdade que escapam de sua possibilidade de compreensão e de sua “credibilidade disponível”. O anseio por unidade que anima a Igreja católica em sua vocação ecumênica deve ser temperado pela consciência de que a plenitude da verdade transborda a consciência possível do cristianismo em sua atual figura histórica. Mais do que uma realidade assegurada, a unidade é algo que está sempre adiante. A verdadeira união das Igrejas, visada pelo ecumenismo, deve ser compreendida não como um retorno das outras Igrejas à união já alcançada pela Igreja católica, mas resultado de uma “unidade ainda inédita”, expressão de uma caminhada comum. Nos espaços abertos por esta sensibilidade ecumênica é que se afirmou em nosso tempo o desafio de um ecumenismo planetário ou inter-religioso.
Esta vocação para a alteridade presente no projeto do diálogo inter-religioso não significa em hipótese alguma uma ruptura ou descrédito do valor da identidade. Como sinaliza muito bem Geffré, na medida em que aprofundamos nossa identidade estamos melhor orientados para a experiência da alteridade, e vice-versa. A abertura ao outro não ocorre abdicando-se das convicções profundas de uma identidade. É necessário passar pelo “desvio” do outro para se poder encontrar a verdadeira identidade. Assim sendo, o pluralismo religioso constitui uma chance e um caminho para se avançar ainda mais radicalmente no sentido da singularidade cristã. Não há possibilidade de viver a fundo o cristianismo sem o “consentimento ao outro”, este outro que desenha em minha identidade uma dimensão de imprevisibilidade.
Uma teologia inter-religiosa vai bem além de uma teologia comparada das religiões. Trata-se de um desafio fundamental de afirmação do humano autêntico onde quer que ele se apresente, e ao mesmo tempo uma busca articulada de respeito à identidade singular com a sensibilidade à originalidade do outro. Em síntese, encontrar um “para além do diálogo” que possa favorecer uma transformação real na própria inteligência do cristianismo.
Finalizando, a apresentação deste livro-entrevista de Geffré serve apenas de breve aperitivo e convite para o aprofundamento de sua reflexão. Há elementos preciosos ao longo de toda a obra e intuições altamente sugestivas para o nosso atual momento teológico. Uma obra ao mesmo tempo corajosa e profunda, que revela a “serenidade tomista” de um de nossos melhores teólogos. Seria inclusive muito oportuno que alguma de nossas editoras no Brasil se interessassem por sua breve tradução.

Da obra: Profession  Théologien; quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle, por Claude Geffré (entrevistas com Gwendoline Jarczyk). Albin Michel, Paris, 1999, 1 vol. br. 145 x 225, 317 p.

(Resenha publicada na REB, v. 60, n. 238, 2000, p. 443-449)