sexta-feira, 18 de outubro de 2024

É porque nãos podeis escutar minha palavra

 “É porque não podeis escutar  minha palavra” (Jo, 8,44):

a voz profética de Francisco contra o massacre em Gaza

 

Faustino Teixeira

 

Ao abrir hoje, sexta feira – 18/10/2024 – o jornal Estadão, deparei-me com uma imagem em destaque de um grupo feliz de judeus do Kibutz de Erez, a dois quilômetros da fronteira de Gaza. Eles dançavam em razão do sucesso das armas de Israel ao eliminar o terrorista Yaha Sinwar. Imagino que essa alegria deve ter sido compartilhada em várias partes do mundo, reforçando ainda mais o apoio ao necrófilo Netanyahu e seus capangas. Eu interpretei a cena como uma “dança macabra”, marcada pelo esquecimento brutal do que vem ocorrendo ali perto, a dois quilômetros de distância...

 

A recente e urgente carta do papa Francisco aos católicos do Médio Oriente fala, com razão da “vergonhosa incapacidade da comunidade internacional e dos países mais poderosos de fazer silenciar as armas e pôr fim à tragédia da guerra”. O que vemos, para minha dor pessoal, é o total “desgaste da compaixão” frente à destruição de um povo, um silêncio sepulcral que descortina um tempo difícil, onde o que se vê é a incapacidade quase geral de uma humanidade que se omite em gritar contra os crimes que estão sendo cometidos a cada dia em nome da guerra contra o terrorismo.

 

Francisco reage de forma profética aos atos cometidos por segmentos de um povo que habita “nos lugares de que mais falam as Escrituras”. O papa enfatiza que nós cristãos não podemos deixar de lançar o nosso grito radical contra o que vem acontecendo em terra sagrada, e manter aceso e vivo o nosso testemunho “da força de uma paz desarmada”.

 

Apesar de recorrer a uma passagem bíblica controvertida, de João 8,44, entendo que o papa está coberto de razão ao atribuir determinados atos em curso pelo exército de Israel como sendo uma coisa do “diabo”, do “espírito do mal que fomenta a guerra”. É o grito de um papa-profeta que se adolora diante de um povo indefeso, que está ferido e exausto com a impiedosa máquina da guerra. Com razão, sublinha que esse povo está presente em seus pensamentos e orações todos os dias. É também o meu caso.

 

Num artigo publicado em 18 de outubro no IHU-Notícias, o professor de teologia, Philip A. Cunningham, faz uma advertência ao papa Francisco por ter recorrido à passagem polêmica do evangelho de João. E argumenta que retomar a passagem em documento pontifício é salvaguardar um “hábito” problemático que a igreja católica vem “tentando desaprender” há quase dois milênios. Faz ainda menção  à Declaração sobre a relação da igreja com as religiões não-cristãs (Nostra Aetate), que, em. nome do diálogo, repudio qualquer entendimento hostil com respeito ao povo judeu.

 

Concordo plenamente que nós, em nome do diálogo, temos que angariar todos os esforços para construir pontes e não muros na relação de amizade com o povo judeu e sua aliança, “jamais revogada”. Em minha jornada dialogal sempre busquei ressaltar a singularidade e irrevogabilidade da primeira aliança, delineada no Primeiro Testamento.

 

Em razão, porém, do que vem acontecendo e horrorizando muitos de nós, por parte de um segmento de Israel, e não de todo o povo, recorrer a João para sinalizar a presença do diabo na atuação de Netaniahu e seus sequazes, é um direito que Francisco tem, e que eu reconheço como teologicamente plausível. Não há como deixar de reagir a uma tal necrofilia.

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