Bergman e seus demônios
Faustino Teixeira
Bergman viveu seus últimos anos na ilha de Farô, que conheceu e se afeiçoou a ela. Durante as filmagens de Persona, apaixonou-se por Liv Ulmann e pensaram e em construir a casa na ilha, entre os anos de 1966-1967. Viveram juntos durante alguns anos, e os dois lutaram ali contra seus demônios, depois que a relação se deteriorou.
Bergman foi sempre uma pessoa sombria. Durante várias vezes na sua vida pensou na possibilidade do suicídio, embora na prática nunca concretizou tal “fantasia”. Dizia que a curiosidade que sentia pela vida era demasiado forte, e sua vontade de viver demasiado robusta. Mas também o medo da morte “demasiado infantil de tão intenso”[1].
A decisão de Bergman de deixar as filmagens não foi dramática, e ocorreu durante a rodagem de Fanny E Alexandre. Na ocasião, Bergman já padecia fortes cãibras e perda de equilíbrio. Vinha também acometido há mais de vinte anos por insônias crônicas, padecendo com a vulnerabilidade da noite. Dizia que cinco horas de sono eram suficientes para ele:
“Amiúde durante a noite, vêm-me fazer companhia bandos de aves negras: a angústia, a fúria, a vergonha, o arrependimento, a neura. E até para as insônias existem rituais: mudar de cama, acender a luz, ler um livro, ouvir música, comer bolachas, beber chocolate ou água mineral”
Sua decisão foi igualmente tomada em razão de sua velhice. Trata-se de uma realidade que não lamenta nem produz alívio. Ocorre que com ela “a solução de problemas é mais lenta, as concepções cênicas causam preocupações maiores, as decisões requerem mais tempo”[2]. Isto colidia um pouco com a marca decisiva de sua atuação, que era a "sede de perfeição"[3].
Diz ele em certo trecho:
"Filme como sonho, filme como música. Nenhuma outra forma de expressão artística é capaz, como o cinema, de vir ao encontro dos nossos sentimentos, penetrar nos recantos mais obscuros da nossa alma (...). Quando me sento à mesa das montagem e passo a fita, imagem após imagem, ainda sinto a sensação arrepiante, de magia, dos meus tempos de criança"[4].
Vale registrar sua relação de proximidade com o excelente diretor de fotografia, Sven Nykvist, que atuou junto com Bergman por muito tempo. Era um mestre da imagem. Para Bergman, era um fotógrafo cuja suprema qualidade era “sua indizível intuição, a qual fez dele um dos maiores diretores de fotografia do mundo”. É alguém extremamente perfeccionista. Busca recomeçar sempre, “se por qualquer motivo se sente incomodado, se for obrigado a trabalhar às pressas ou se estiver de mau humor”[5]. Bergman e ele eram fascinados pela “problemática da luz, seja ela branda, perigosa, onírica, viva, morta, clara, turva, quente, violenta, gélida, repentina, sombria, primaveril, interior, exterior, direta, oblíqua, sensual, submetedora, limitativa, venenosa, tranquilizante”[6].
No filme A flauta mágica, filmada num pequeno teatro de madeira, numa atmosfera íntima e com acústica excelente. O filme trazia um tema muito caro a Bergman. Essa peça de Mozart foi feita quando ele já estava doente, “pressentindo o bafo da morte”[7]. Em certo momento da peça, algo ocorre que expressava o sentimento do compositor:
“O noite sombria, quando porás fim às tuas trevas? Quando verei luz nesta escuridão”; o coro dá a resposta: “Breve, breve ou nunca mais”[8]
Os demônios sempre atormentaram Bergman, e ele expressa claramente isto no filme: A ilha de Bergman: um filme de Marye Nyrerôd (2006). Ali há a clássica passagem do diálogo de Anna e Tio Jacob a respeito da crença ou não em Deus.[9]A tensa relação entre a independente burguesa Anna e o candidato a pastor Henrik, foi objeto do filme “As melhores intenções”. No livro, “Confissões” há uma linda passagem que relata o diálogo de Anna com o velho pastor luterano, Tio Jacob, seu aconselhado, como dizem os luteranos. Ele diz a ela que não era pertinente que falasse em Deus mas na santidade que habita o ser humano. E Bergman no filme “A ilha de Bergman” sublinha ao final que esse era também o seu pensamento[10].
Ao final do filme de Marie Nyeröd, Bergman fala sobre os demônios, que sempre o atormentaram. Ele cita cinco:
. O demônio dos desastres (quanto todos os sonhos se desmontam)
. O demônio do medo (que sempre o acompanhou)
. O demônio da raiva (que herdou do pai)
. O demônio do rancor (que faz com que se lembre de fatos de 40 a 50 anos)
Felizmente, o ultimo demônio citado, nunca o dominou, que é o demônio do nada, que significa a perda da imaginação e da criatividade: estar totalmente envolvido no vazio. Ele se sente agradecido por não ter sido envolvido por esse nada.
Em entrevista a José Geraldo Couto na FSP, em 08/11/1996, Liv Ullmann comenta um pouco sobre o seu filme “Confissões íntimas” (roteiro de Bergman), baseado no livro Confissões, de Bergman. Trata-se de uma “história muito intensa, ambientada em 1935”.
Ao final da entrevista, Couto pergunta a ela “em que aspectos do trabalho de Bergman você tem de esquecer para filmar?” Ela responde:
“Acho que eu nunca faria filmes com seus temas, porque são temas depressivos, cheios de culpa e pecado. Acho que devemos fazer filmes com esperança”[11]
Nós, os apaixonados por cinema, curtíamos – e quanto – as crônicas do crítico José Carlos Avellar no Jornal do Brasil. Clássica sua crônica no JB sobre o filme “Gritos e Sussurros” em 02 de novembro de 1974. Esse filme foi produzido em 1972, a cores, com as presenças de Liv Ullmann, Ingrid Thulin, Harriet Anderson e Kari Sylwan. A fotografia, premiada no Oscar em 1974, é de Sven Nykvist. O filme foi rodado numa “mansão muito danificada”, nas imediações de Mariefred (a sudoeste de Estocolmo). Assim o queria Bergman, pois mostrava o abandono que visava. Ele pode transformar o cenário do jeito que queria. O momento da produção do filme coincidiu com o período de casamento de Bergman com Ingrid von Rosen, sua última esposa, com quem viveu muitos anos.
Os temas que envolvem a filmografia de Bergman são pesados, trazendo à tona questões perturbadoras como a morte, a dor, a solidão e o sofrimento. Como diz o cavaleiro Antonius Blok, no “Setimo selo”, referindo-se à “indesejada das gentes” (morte), “um dia, quando nos encontramos diante do último momento da vida, temos de ficar de pé e olhar para esta escuridão”.
Na visão de José Carlos Avellar, “não é de todo má ideia assustar alguém de quando em quando. Assustadas as pessoas pensam. E quando pensam ficam um pouco mais assustadas”. É forte e potente a oração do pastor em cena de “Gritos e Sussurros”.
No mencionado filme, as três irmãs estão voltadas para seus mundos pessoais, interiores, e a irmã moribunda não consegue receber a acolhida que precisa, a não ser da empregada religiosa, Anna. O cenário do filme é impressionante, com o tom forte e agressivo do vermelho, que “afoga cada personagem nessa imensidão íntima, partindo de um close para uma explosão carmim nos rostos meio-escurecidos, toda vez que uma mudança de ato acontece”.
Porém, o mais interessante na técnica de Bergman é deixar transparecer em seus filmes “instantes de felicidade”. Em meio ao ritmo da melancolia e da inevitabilidade da morte, como em “Sétimo Selo” e “Gritos e Sussurros”, há momentos preciosos onde ocorrem “área de escape frente à brutal insensatez da vida”. São momentos de “suspensão” da asfixia em que tais filmes nos envolvem. Como diz o crítica Marcelo Müller, crítico de cinema, “é como se Bergman, exatamente nessas passagens, afirmasse que, a despeito de tudo que nos incomoda, a vida merecesse ser vivida, mesmo que reduzida a um breve instante”. São “pontos de júbilo” nos filmes, como a linda cena em “Sétimo Selo”, entendida como “paragem segura de alegria”, o cavaleiro relaxa junto com o casal de artistas e seu filhinho, numa “celebração” com morangos silvestres e leite fresco. Todos ali, deitados e alegres sobre a relva: “A simplicidade do gesto de seus anfitriões, a conversa que se desloca da praga e recai sobre sentimentos singelos, a ternura prevalente como que criando uma redoma a protege-los de tudo e de todos por alguns minutos”. A maravilhosa cena nos indica que nem tudo são “nuvens carregadas” ou sufocantes inquietudes.
De forma semelhante, em “Gritos e Sussurros”, o instante de felicidade ou êxtase ocorre na lembrança de Agnes que capta um fragmento de felicidade transbordante: “Ela se recorda da vem em que, ao lado das irmãs e da empregada/amiga que lhe era tão cara, caminhou numa tarde de verão, despreocupadamente, pelos jardins da propriedade, nesse pequeno intervalo se esquecendo das dores impingidas pela doença fatal que lhe corroía a carne, o humor e a personalidade”. Tudo isso são “pontos de júbilo” que temperam a dor das cenas, nesse cineasta marcado pela paixão do instante.
Como mostra José Carlos Avellar, quanto “maior o desespero, maior se torna a intensidade do pequeno instante de satisfação que nada pode quebrar ou impedir. Por mais insensata que seja a existência um só instante em que a vida se libera sem impedimentos é maior que todo o sofrimento”. Bergman quer nos dizer com esses pequenos detalhes que “a vida vale ser vivida, mesmo que restrita a pontos de fuga que nos tornam felizes”.
[1]BERGMAN, Ingmar. Lanterna mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988, p. 94.
[2]Ibidem, p. 67.
[3]Ibidem, p. 65.
[4]Ibidem, p. 78.
[5]Ibidem, p. 69.
[6]Ibidem, p. 231.
[7]Ibidem, p. 219.
[8]Ibidem, p. 219.
[9]Esse diálogo está descrito no livro de Ingmar Bergman, Confissões (1996), na p. 38-39 (tradução brasileira pela editora Nórdica)
[10]BERGMAN, Ingmar. Confissões. Rio de Janeiro: Nórdica, 1996, p. 38-39.
[11]COUTO, José Geraldo. Liv Ullmann conta sua história de amor. Folha de São Paulo, 08 de novembro de 1996:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/11/08/ilustrada/35.html. Acesso em: 10 de junho de 2021.
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