Prefácio
Maria Amada: Uma monja que irradia fé, acolhida e alegria
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF/ Paz e Bem/ IHU
Ao pensar em escrever esse prefácio ao livro das delicadezas veio-me logo a identificação de Maria Amada como uma monja zen. Tudo que vou aprendendo com os grandes mestres desta tradição budista vejo refletido com profundidade na experiência de Maria Amada. Vejo em particular a retomada da experiência de um grande patriarca Zen que morreu no século IX (Lin Chi), em 867. Para ele, o grande mote de sua prática era: “viver simplesmente”. O caminho espiritual é o caminho da vida, desvestida de todos os penduricalhos. Para ele, não existia nada de muito especial para alcançar a iluminação, senão viver a vida com toda a simplicidade, bebendo chá e comendo arroz, sem nenhum objetivo extraordinário.
Maria Amada foi uma monja-camponesa que “largou” sua vida aos cuidados de Deus, de forma magnífica e exemplar. Lendo as singelas histórias que estão no “Livro das Delicadezas”, recolhidas por frei Alano Menezes, nos deparamos com o cerne da simplicidade, com o despojamento mais transparente, com a disponibilidade de servir que irradia e encanta a todos os que tiveram, como eu, o privilégio de uma proximidade maior com ela. Mas também a todos que, agora, encontram a oportunidade de ler com atenção suas singelas histórias.
Em página preciosa de apresentação do livro, frei Vital, então bispo de Itaguaí (RJ), sublinha que Maria Amada cultivou até o fim de sua vida vida, a capacidade de maravilhar-se. Sua experiência espiritual não era etérea, mas nascia “no chão da vida”. Como na canção de Gil sobre o baião: O que nasce “do barro do chão” vem habitado por um “sopro divino”, um sopro “que sobe pelos pés da gente e de repente se lança pela sanfona afora até o coração do menino”. E foi do “barro do chão” que veio a energia espiritual de Maria Amada, que emocionou a todos que viveram com ela de mais perto, recebendo o dom de seu sorriso e de sua acolhida. Como diz dom Vital, a verdade que animava Maria Amada era o dom da vida: “Bastava-lhe viver. Uma verdade simples como um pedaço de pão que é visto e tocado, partido e partilhado, que se molha no café com leite”. E assim, de forma simples e evangélica, fazia acontecer com sua simplicidade a substância e melodia das coisas.
As histórias de Maria Amada trazem a “gostosura” do ritmo mais cotidiano da vida simples, que vem do interior de Minas. Cito aqui duas que estão no livro. A primeira fala de seu nascimento:
“Deus primeiro criou o sol, a lua, as estrelas, as árvores, as aves, os animais, os peixes, tudo, tudo, tudo...
Quando ele terminou e viu que tudo era muito bonito, pensou: - Agora vou criar uma criaturinha feliz!
- E criou ´eu`!”
A segunda história relata sua “primeira confissão”, quando tinha por volta de 3 a 4 anos:
“Mamãe me levou para a Igreja, em Nova Serrana, onde ia se realizar o casamento. Eu estava pertinho dela. Olhei para o lado e era aquela fila de mulheres confessando. Quando uma saiu do confessionário, eu desgarrei da mamãe sem ela ver, e corri para o padre.
- Que, que você quer, filhinha? me perguntou ele.
- Confessar, respondi.
- Mas você tem pecado?
- Já tenho dois.
Nisto ele me pegou e me assentou no colo dele. Eu aproveitei a oportunidade para balançar as perninhas a fim de que ele visse o meu sapatinho novo. Eu tinha também duas tranças no cabelo. O padre, brincando com minhas tranças, perguntou:
- Mas quais são estes seus dois pecadinhos?
- Meu primeiro pecado, respondi, é porque eu tiro a nata do leite do vovô.
- Você acha que isto é pecado
- Sim, a vovó disse para não fazer, porque isso até é pecado!
- É, filhinha, você não vai mais tirar a nata do leito do vovô não, não é? Coitado; ele fica tomando aquele leite aguado, sem gosto ... Bom, e qual é o outro pecadinho?
Eu aproveitava a conversa e não cansava de mostrar o meu sapatinho.
- O outro pecado é que eu tenho um gatinho e gosto muito de ver a língua dele; então eu aperto assim o pescocinho dele (e apertava a mão do padre) para ele mostrar a língua.
- Mas assim, disse o padre, ele morre.
- Não; ele não morre não; depois eu passo a mão nele, assim, e ele fica bom de novo”.
Maria Amada foi uma camponesa dos sertões de Pitangui e Dores do Indaiá. Uma camponesa que depois se tornou costureira e, aos sessenta anos de idade, recebeu a tão desejada acolhida entre as carmelitas descalças. Buscou recolher, com fé e gratidão, as “migalhas” que lhe foram oferecidas (Jo 6,12). As vozes críticas à sua entrada no carmelo argumentavam três traços que eram duros: não podia ser aceita por ser velha, pobre e analfabeta. Isso não a desanimou, até que recebeu o convite para ser porteira no carmelo de Petrópolis. Ali tinha uma vida simples, como desejava: “Atender à portaria , ao telefone, transmitir para dentro da clausura, para a irmã porteira interna ou a priora, através da ´roda, os recados, receber ordens e encomendas e executá-las”. Nos momentos livres, dedicava-se ao que lhe dava mais prazer: as orações na capela, onde diariamente se reabastecia. Dizia que ali na portaria os dias passavam rápido e reconhecia no lugar um “ermo de felicidade”, gozando o tempo em silêncio, recolhimento e oração. Dizia que ali, diante “do Sagrado Coração de Jesus” buscava a “febre alta de quarenta e um graus de amor”. Pedia à sua Mãezinha para preparar seu coração para ser aquele jardim de delícias. Via na oração a ponte lançada entre a terra e o céu para a visita ansiada da divindade.
Depois de 10 anos da portaria do mosteiro em Petrópolis, Maria Amada veio convidado por Madre Tereza, que ocupava a função de roupeira, para fazer parte de uma nova fundação em Juiz de Fora (MG). Diante da resistência de algumas em aceitar o ingresso de Maria Amada, irmã Tereza assinalou que mesmo que ela tivesse setenta anos, a levaria com ela para a nova missão. A entrada ocorreu em 27 de julho de 1957. Junto com a nova superiora, Madre Tereza vieram outras irmãs: irmã Rosa Branca, irmã Maria de Lourdes, Irmã Ana Lúcia (noviça). Maria Amada ficou ainda um tempo em Petrópolis, como noviça, antes de vir para Juiz de Fora.
A vida de Maria Amada em Juiz de Fora foi uma vida de acolhida e oração. Dizia que “se as pessoas soubessem o valor da Ave Maria, subiam para o céu como um foguete”. O mais lindo de tudo, em sua vida de religiosa, era a comunhão com o todo. A natureza e os pássaros faziam parte intrínseca de sua devoção a Deus: seu amor às borboletas, aos papagaios, abelhas, cigarras e beija-flores adornam maravilhosamente suas histórias ao longo do livro. Para ela, “o mundo era a fazenda do Pai”.
Gostava também, imensamente, da música. Dizia numa de suas histórias que nasceu com a música. De fato, no dia de seu nascimento, em 18 de abril de 1987, foi recebida pela festiva música de uma banda: “Agora podem tocar, porque já tenho mais uma netinha na fazenda”, comemorou o seu avô. Lembro-me do período em que tocava violão e cantava nas celebrações do carmelo em Juiz de Fora, nos anos 70, e isto era motivo de entusiasmo para Maria Amada. Nos recebia ao final da celebração em sua cela, e logo dava as mãos e voltava seu rosto sorridente para todos nós. Era a verdadeira santidade das carícias, cercada pelos gestos de carinho e acolhida.
O que ocorreu depois, na história do carmelo da cidade de Juiz de Fora, é muito triste. As irmãs acabaram tendo que sair da cidade por desavença com o então bispo Dom Juvenal Roriz. Um dos motivos era sua resistência à experiência de abertura das irmãs conventuais, que colocavam em prática as reformas do Concílio Vaticano II (1962-1965). Acabaram saindo de Juiz de Fora, em 1984, sendo acolhidas por Dom Vital em Itaguaí. Ali Maria Amada passou o último período de sua vida. Em seguida foram para a Paraíba, na cidade de Bananeiras, onde estão até hoje.
O sonho de um carmelo leve, delicado, profético e acolhedor segue hoje com dificuldade mas muita disposição em terras da Paraíba, sob o carisma inspirador de nossa querida irmã Terezinha. Como diz Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas, a gente cai, mas a gente levanta, com coragem, fé e esperança. Temos que saber montar em cavalo que nos leva para o rumo da alegria. Como diz papa Francisco em sua última encíclica, FratelliTutti, ninguém se salva sozinho, mas só comunitariamente. Essa é a esperança que nos move e aquece o nosso coração em favor de um novo rosto de igreja, em conformidade com o sonho fraterno de Jesus.
A primeira edição do “Livro das Delicadezas” saiu em dezembro de 1979, e seu grande incentivador foi Frei Alano de Menezes (OP), que teve o delicado trabalho de ouvir com atenção e compilar as histórias. Depois disso foram várias as edições mais caseiras, sempre com muito sucesso. As ilustrações da capa e ao longo do livro, adornando as histórias, são de autoria do artista plástico de Juiz de Fora, Paulo Couto Teixeira (o Pulika). A nova edição da Vozes procura ser fiel ao máximo à primeira edição. No projeto recente, estavam previstos uma série de testemunhos de amigos que sairiam à parte num anexo. A ideia foi transformada, e os testemunhos vão sair aos poucos publicados no Instituto Humanitas da Hunisinos (IHU-Notícias).
Queria ainda agradecer aos amigos de toda parte do Brasil que acolheram a campanha em favor da publicação do livro, com donativos espontâneos. A resposta à demanda foi bem mais auspiciosa do que eu imaginava, e conseguimos angariar cerca de R$ 11.000,00, que serão encaminhadas para a Editora Vozes para a nova edição do livro. Todos os recursos com a vendagem da obra serão revestidos para a ajuda ao Mosteiro de Bananeiras. Agradecemos, portanto, à generosidade de todos que contribuíram, tanto na doação de recursos como nos testemunhos escritos, e em particular com madre Terezinha, que leva com coragem, animação e esperança o carisma do carmelo nas terras nordestinas.
(A ser publicado em: Frei Alano Porto de Menezes (Org). O livro das delicadezas. Petrópolis: Vozes – No prelo)
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