sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A complexa questão do mal em Guimarães e Clarice

 A Complexa questão do Mal em Guimarães e Clarice


Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF / Paz e Bem / IHU


Um dos pontos culminantes de meu curso sobre O Grande Sertão Veredas foi quando abordei a questão do mal e do bem no mundo interior de cada um. Rompi com aquela ideia cristã entranhada na tradição de que no fundo somos todos bons. Isso não é verdade, pois somos todos neblina, ambiguidade, habitados pelo bem e pelo mal. O Demo nos ronda e nos atrai por todo canto. Como diz Riobaldo, "o diabo vige dentro do homem".
Antonio Candido, que considero um dos mais essenciais críticos do GSV, dizia que seu nome vem atribuído "à parte torva da alma", "os crespos do homem" (cf. O homem dos avessos, p. 136 - No livro: Tese e antítese - Companhia Editora Nacional, 1967 2 ed)
Também trata da questão outra grande especialista, Walnice Nogueira Galvão. Ela diz, no livro As formas do falso (Perspectiva, 1986 2 ed, p. 129-130):
"Deus é tudo o que existe, menos o Diabo: e este disputa a primazia daquele. O Diabo ganha pequenas paradas, rápidas e logo concluídas dentro do grande fluir de tudo o que existe e que é Deus; mas nessas pequenas paradas pode se danar o homem"
Depois de várias leituras, intensas, de GSV (Grande Sertão: Veredas. 22 ed. Companhia das Letras, 2019), fui me deparando com páginas preciosas onde pude verificar isso. Por exemplo, quando Riobaldo diz que na "matéria vertente" da vida o MAL pode surgir de repente, sem razão, contundindo a caminhada de qualquer peregrino. É o que aprendi também com a mística de Santa Teresa, que aborda o Mal de forma exemplar. Riobaldo nos diz que o mal não tem razão. Ele simplesmente surge. Daí a importância de estarmos continuamente atentos para os seus efeitos, que estão aí sempre por perto. Riobaldo nos diz, com razão, que "tudo sai mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do céu" (GSV 426). E saber escolher o cavalo que a gente monta: aquele que ruma para a ALEGRIA. E tendo a preciosa ajuda de todos os deuses, santos, energias, e a Nossa Senhora da Abadia. E pedir, aceitar, acolher as preces que vêm de todos os cantos
Principalmente, saber que Deus é "traiçoeiro" :
"O diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - da gosto! A força dele, quando quer - moço! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza" (GSV, 24)
Na vida de Riobaldo Tatarana, para ele poder captar isto e ganhar forças para lidar com o Demo, foi fundamental a presença do Compadre meu Quelemém, que foi indicado por Zé Bebelo para acalmar a dor derradeira pela morte de Diadorim. Vendo o estado do amigo, preenchido de dor, aconselha: "Riobaldo, eu sei a amizade de agora tu precisa. Vai lá, Mas, me promete: não adia, não desdenha". E rememora Riobaldo: "Tinha que ser Zé Bebelo, para isso. Só Zé Bebelo para meu destino começar a salvar" (GSV 434)
Com Compadre Quelemém, Riobaldo despertou para uma visão inter-religioso, protetora, que me faz lembrar a preciosa reflexão de Durkheim, quando fala na forma dinamogênica da religião. E a consciência viva de que quando está rezando, está fora da "sujidade do mundo, à parte de toda loucura" (GSV 432).
Riobaldo reconhece a necessidade essencial da oração, que está presente em toda a sua jornada, bem como as rezas que são devotadas em seu favor sobretudo pelas grandes mulheres do romance. A religião se carece "para desendoidecer, desdoirar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio" (GSV 199.
Clarice Lispector também enfrenta de frente o tema, com uma coragem impressionante, como em seu romance A maça no escuro, onde trata o complexo tema de um crime quase realizado contra uma mulher por Martin, o personagem do livro, que é um estatístico, homem de razão: "No final do livro Martin é preso. Já que ´ser`não é ilegal, ele é preso por um criime a que se pode dar um nome" (cf. Benjamin Moser. Clarice, São Paulo: CosacNayf, 2009 - A mais importante biografia escrita sobre Clarice, a meu ver). Clarice recorre a Spinoza para abordar a complexidade do tema.
"Os homens geralmente supõem que todas as coisas na natureza agem, como eles, com alguma meta em mente, e até mesmo sustentam a certeza que o próprio Deus conduz tudo em direção a uma certa meta... Eles acreditam que tudo foi criado tendo-os em mente e dizem que a natureza de uma coisa é boa ou ruim, saudável ou doente e corrompida, dependendo de como eles próprios são afetados por ela"
Spinoza (The Collected Works - v 1, p. 543)
Para ajudar a percorrer esse vale sombrio, terei como apoio o fundamental livro de Yudith Rosenbaum, Metamorfoses do mal, uma leitura de Clarice Lispector (Edusp/Fapesp, 1999). A autora é psicóloga e doutora em teoria literária pela USP, e se propõe a fazer um sério estudo das "modulações do mal na obra de Clarice Lispector".

Para um estudo aprofundado de Clarice, recomendo três obras fundamentais: Roberto Corrêa de Oliveira. Lendo Clarice Lispector. São Paulo: Atual Editora, 1986; Evando Nascimento. Clarice Lispector: uma literatura pensante. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012; Clarice Lispector, figuras da escrita (um livro essencial): Instituto Moreira Salles, 2011.

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