terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A arte de Heraldo do Monte

 A arte de Heraldo do Monte

 

Faustino Teixeira

 

"Estudei música por puro amor, 

acho que ela é uma espécie de deusa 

que escolhe pessoas e as escraviza com sua beleza"

 

Heraldo do Monte

 

Fiz a leitura atenta e cuidadosa do livro de Heraldo do Monte: Brasil de dentro - as cordas livres de Heraldo do monte. O texto do livro está primoroso, depois seguem as partituras. Baseio-me aqui na linda e singular introdução ao livro, escrita por Budi Garcia, intitulada: Dedilhando as cordas.

 

É impressionante ler sobre esse músico, dos mais finos instrumentistas que o Brasil já conheceu. Ele estudou 10 anos de clarinete. Sozinho estudou também violão, cavaquinho e bandolim. Vai se lançar depois como um dos maiores intérpretes na viola. O que mais se destaca nele é a capacidade incrível de improviso. 

 

Um músico "que pensa fora da caixa", se comparado a outros guitarristas. Como diz Airto Moreira, "ele tocava jazz muito bem, tinha aquele som aveludado e ele tocava música brasileira também... qualquer tipo de música (...). O Heraldo, além de tocar guitarra e violão, tocava também viola caipira, de dez cordas". Para Hermeto Paschoal, "Heraldo é um dos músicos mais completos do mundo".

 

Seu encontro com Geraldo Vandré foi decisivo. Foi contratado por ele para acompanhá-lo junto com outros dois grandes músicos: Airto Moreira (percussão) e Theo de Barros (violão). Era o "Trio Novo". Eles saíram juntos em viagens para um trabalho com a Rhodia. Foi mais ou menos nessa ocasião que saiu o clássico disco de Vandré, Cinco anos de canção (Som Maior). 

 

Com a integração de Hermeto Paschoal, formou-se o "Quarteto Novo", um dos mais espetaculares, criativos e geniais conjuntos músicas que o Brasil conheceu. O grupo vai trabalhar com Geraldo Vandré, que sempre percebeu o enorme talento do conjunto. O Quarteto foi muito ajudado e incentivado por Vandré.


A princípio, Heraldo não queria tocar viola, algo que nunca lhe passou pela cabeça. Era preconceito mesmo de um músico urbano como ele. Atuaram com Vandré no programa Disparada, na TV Record até julho de 1967, quando a programação se encerrou.

 

O Quarteto Novo, incentivado por Vandré, lançou um dos discos mais preciosos da música instrumental brasileira, lançado em novembro de 1967, depois III Festival da Música Popular, exibido pela TV Record, que teve como vitoriosa a canção Ponteio, com a presença do Quarteto acompanhando Maria Medalha.

 

A presença do Quarteto Novo nos Festivais de Música foi marcante, no acompanhamento de Vandré (Disparada e Ventania); Edu Lobo (Ponteio). E depois ainda, a canção O violeiro (de Homero Moutinho Filho), defendida por Jair Rodrigues no I Festival de Música Popular Brasileira. Na canção Ponteio, Heraldo tem uma participação singular, colaborando para a grande performance do refrão: "Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar". E a viola de Heraldo cantou vibrante. De repente, ele passou a ser reconhecido como grande violeiro. E teve o papel fundamental de quebrar um bloqueio da presença da viola na música instrumental:

 

"A ´intelligentzia` (como diz Heraldo, com certa ironia) agora teria que aceitar que a viola é capaz de estar nos melhores palcos da nossa música instrumental, de tocar coisas antes impensadas ao instrumento".

 

Tinha a viola de Heraldo e também a maravilhoso queixada de burro do Airto Moreira, um verdadeiro achado; bem como a maravilhosa flauta de Hermeto Paschoal, que começou a usar esse instrumento na ocasião da formação do quarteto.

 

Como assinala Budi Garcia, na introdução do livro, 

 

"o projeto do Quarteto Novo concentrava-se mais na criação de uma linguagem de improvisação brasileira, em oposição às improvisações características dos conjuntos de Bossa Nova, nas quais se notava uma tendência ao emprego sistemático daquilo que Heraldo se refere como Bebop”.

 

O único disco do Quarteto Novo tem como marca singular a potencialidade da improvisação. É o marco do disco. Um caráter mesmo inovador, com a presença da "improvisação brasileira com elementos nordestinos". 

 

O autor da introdução lembra a presença do "Ahhh!" de Vandré, ao fundo, durante a faixa "O ovo". No disco comparecem músicas de Vandré: "Fica mal com Deus", "Canto Geral" e "Canta Maria". Também de Vandré no disco, a parceria com Airto Moreira em "Misturada". Uma das músicas presentes no disco, Vandré também já tinha gravado em seu primeiro disco, em 1963: Vim de santana (Theo de Barros).

 

Sem dúvida "o disco é uma obra prima". E realça Budi Garcia: 

 

"Todos ali estão radiando. Hermeto está inacreditavelmente fluente à flauta, instumento que ele vinha tocando há pouco tempo na ocasião daquele disco. Prova de sua enorme capacidade. Ele não só faz o uso convencional do instrumento - que já tem aquele timbre tradicional mágico, podendo ser delicado ou selvagem - como lança mão de recursos de expansão desse som clássico, com o uso de técnicas labiais alternativas e a própria voz emitida em conjunto com o som da flauta".

 

Os outros também brilharam, desde Theo de Barros, com seu violão harmonioso, também convincente ao contrabaixo a Airto Moreira, num equilibrado uso da bateria e da percussão, que depois ganhará um reconhecimento internacional e Heraldo do Monte, "reinventando a viola, dando forma a uma guitarra brasileira, iluminando o som do grupo com os raios ensolarados de seu nordeste".

 

E Heraldo sinaliza que algo que o fascina na música do Nordeste, e em especial em Pernambuco, é a influência moura: "essa influência está presente no canto, na emissão de voz, dos repentistas e nos apoios".

 

Na visão de Budi Garcia, "além do brilho individual dos músico, há toda uma trama de sons, ritmos e texturas que fazem do trabalho uma notável realização". O disco deu "uma chacoalhada no cenário da MPB e ecoou além mar". 

 

Era uma música 

 

"que ia ao encontro dos anseios mais profundos de transformação que o espírito da época pedia, em relação à cultura brasileira, mas numa direção bem diferente daquela tomada pela Tropicália empreendida por Caetano Veloso e Gilberto Gil". O Quarteto buscava o ritmo brasileiro mais profundo, despindo-se de toda roupagem jazz, "para atingir os rincões da expressão mais radicalmente nossa que podia haver naquele momento".

 

Como bem definiu Budi Garcia, o Quarteto Novo, com seu disco, "tornou-se uma espécie de ´chancela` da sonoridade de um Brasil ´de dentro`, que veio inspirar a quem dela quisesse fazer uso, na época e mesmo depois".

 

Ficou conhecida a viagem que o Quarteto Novo fez na França, em 1967, junto com Edu Lobo e Nara Leão. O nome do espetáculo já dizia tudo: Uma noite no Rio. A repercussão foi singular, tendo no público figuras públicas como Brigitte Bardot, Sacha Distel, e Bob Timons. 

 

O grupo depois se dissolve. Em 1968, no disco de Geraldo Vandré, Canto Geral, já não constava a presença do Quarteto Novo. Conforme indica Budi Garcia, Vandré "pode ter se chateado um bocado com os últimos acontecimentos: o grupo acompanhar Edu Lobo no Festival e este vencer, de fazerem com ele o show na França, êxitos esses que o próprio Vandré bem quisesse ter alcançado em companhia do Quarteto".

 

Airto Moreira seguirá carreira nos Estados Unidos, seguido depois por Hermeto Paschoal. Heraldo do Monte ficou no Brasil, tendo recusado diversos convites para trabalhar no exterior; também ficou Theo de Barros. Cada um, porém, seguiu o seu caminho particular.

 

Heraldo do Monte se firmou na carreira solo, com vários discos importantes, entre os quais: O violão de Heraldo do Monte (1970); Heraldo do Monte (1980); Cordas Vivas (1983); Cordas Mágicas (1986); Viola Nordestina (2000); Guitarra Brasileira (2004); Heraldo do Monte (2016 - pela Biscoito Fino). 

 

Vale citar aqui o belo disco infantil de Heraldo do Monte: MPBaby - Moda de viola, com lindas interpretações, voltadas para as crianças, de "Meu limão, meu limoeiro", "Viola enluarada" e "Trenzinho caipira". Na gravação, ele utiliza sua viola de 12 cordas, presenteada por Ivan Vilela.

 

Merecem destaque sua participação com o Zimbo Trio, em particular no disco Tudo Bem; sua presença nos festivais de jazz em São Paulo (quando então firma sua amizade com o guitarrista Joe Pass); suas gravações na Eldorado, sua colaboração no espetáculo Consertão, que depois se transformou em disco (com Elomar e Arthur Moreira Lima). E ainda a colaboração bonita com Dominguinhos, sobretudo depois de 1990, "nos quais gravaram discos juntos, foram premiados, viajaram muito o Brasil e aproximaram-se ainda mais como músicos amigos que foram".

 

Heraldo do Monte firma-se então como músico consagrado no Brasil. Diz que desde o Quarteto Novo "nunca mudou de direção", entranhando-se na nervura da Música Popular Brasileira. Ele é não só músico, mas tem um "lado caboclo", e igualmente um "lado inquieto, elétrico", fruto de sua paixão pela guitarra, seu principal instrumento. Foi "das cordas de sua guitarra que tirou o sustento da família, mas também o seu maior patrimônio. Em verdade todas as tantas cordas que toca, cordas vivas, mágicas, livres".

 

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