sexta-feira, 29 de maio de 2020

A felicidade no coração das bem-aventuranças

A felicidade no coração das bem-aventuranças – Posfácio

Faustino Teixeira


            É motivo de grande alegria posfaciar o livro de Xabier Pikaza, que abordou uma temática essencialmente importante para o nosso tempo sombrio. Conjugar os temas das bem-aventuranças com a felicidade é algo urgente para o momento atual, que busca retomar o cerne da mensagem de Jesus, que colocou as bem-aventuranças no eixo mais nobre de sua pregação.

            Já indicava Francesco Strazzari, no prefácio da obra, que a felicidade não é assim algo simples, mas uma “arte” e um “programa” que vem carregado de dificuldades e desafios. A felicidade, assinala, é “uma arte e uma maneira de vida”. A felicidade é um projeto que se dá no caminho. O que vemos ao nosso redor é algo muito diferente, sobretudo entre os mais desvalidos. Vemos um circuito de dor, de  opacidade, de muita luta para viver, de exclusão e violência. Apesar de tudo, vigora uma esperança novidadeira, uma esperança no mundo, e isto em razão da certeza da presença amiga de um Mistério que é maior e nos acolhe, mesmo nos momentos mais difíceis. O Mistério maior, sem nome, nos favorece vivenciar, apesar de, o “sabor e gosto da vida”. Esta é a razão nodal para a manutenção da esperança e do sonho de felicidade. Como diz o filósofo brasileiro, Luiz Felipe Ponde, em livro sobre os dez mandamentos, que só o Eterno é “capaz de aliviar as agonias da criatura”. O Mistério nos envolve com uma alegria pascal, porque nascida no solo da dor, mas movida pela certeza da resiliência e vontade de superação. Não há porque deixar-se tomar pela tristeza, em razão da dor, pois a tristeza deforma a visão. O pessimista, como diz o escritor Nabokov, é alguém “ridiculamente pouco observador”. Só a alegria é capaz de facultar a percepção do visível com nitidez, instrumentando o humano a captar a luz que emerge nas frestas e interstícios. O outro mundo está aí, e nos rodeia, com sua “textura cintilante”. Há que suscitar no coração o valor e o significado da caudalosa existência que nos mantém em pé e com esperança. 

            Pikaza nos confirma que a felicidade é processual e vai sendo firmada no caminho. Num dos mais clássicos romances brasileiros, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, publicado em 1956, o personagem central do livro, Riobaldo Tatarana é portador desse dom da alegria, isso também em razão da presença das “rezas fortes” em sua vida. Ele diz em certo momento da narração:  O que a vida “quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza”. Não há caminho que não seja resvaloso. É verdade, no meio das dificuldades, a gente cai, mas também se levanta e retorna ao rumo da história. 

            Em sua obra, Pikaza capta isto de forma singular, percebendo que a razão mais forte que nos move para a alegria é um elã vital cultivado e cuidado no mundo interior. A paz interior revela-se fundamental para enfrentar as agruras da vida. É o que foi ensinado com grandeza pelas religiões orientais, mas que está também enraizado no cristianismo. O amor interior tem densidade suficiente para enfrentar com precisão os conflitos que vão aparecendo no caminho. A mística holandesa, Etty Hillesum, que morreu em Auschwitz, foi um exemplo vivo desse mundo interior trabalhado e revigorado pela presença do Mistério. Nesse sentido, como indica Pikaza, o ser humano é capaz de enfrentar os mais duros combates ou dificuldades quando vem penetrado pelo amor interior. 

            As bem-aventuranças nos apontam o caminho e o ideal da felicidade. Todas as grandes tradições religiosas perceberam isso com clareza. Algumas reforçando mais o caminho da interioridade e outras do exercício prático da caridade, sem que haja conflito entre as diferentes buscas. Nós cristãos percebemos no caminho de Jesus a realização precisa do ideal das bem-aventuranças. Ele mesmo foi um “bem-aventurado”, vivendo e realizando no seu itinerário o ideal de uma vida nobre e honrada. Seu projeto maior, o Reino, e sua proposta de felicidade, estão para além do ritmo confessional. O caminho que nos apresenta é radicalmente antropológico, de bem-querença humana. Também o Deus que nos apresenta é “um Deus intrinsecamente preocupado com a totalidade dos seres humanos”. Jesus era teocêntrico, é o que nos dizem hoje  com clareza os grandes exegetas, mas apresenta ao mundo um “Deus antropocêntrico” (Roger Haight). 

            Como indicou com precisão Pikaza, as ações de Jesus transbordam no caminho da felicidade. Era um “um homem do povo, um leigo de Deus”, e sua ação não vem colorida em sentido estrito pelo traço religioso. O seu projeto é humano por excelência. Diante da pergunta de João Batista, se ele de fato seria o messias esperado, Jesus responde com convicção de terrenalidade: “Os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (Mt 2, 4-5).

            No coração das suas bem-aventuranças está o carinho especial com os mais pobres. Eles são os portadores da bem querença de Deus. São privilegiados, mas não porque são mais piedosos, mas em razão mesmo de sua “infeliz situação”. Deus se volta com carinho e gratuitamente, com devoção particular, aos esquecidos da história, em razão de sua dor, de sua aflição, de sua fome e exclusão (J.Dupont). Como mostra Gustavo Gutiérrez, a razão da predileção pelos pobres é teológica: “Os pobres são bem aventurados não pelo simples fato de serem pobres, mas porque o Reino de Deus se expressa na manifestação de sua justiça e de seu amor em favor deles”. São amados por Deus, e isso basta! Essa ideia repercutiu de forma esplêndida no Documento de Puebla, dos bispos da América Latina: “Os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual for a situação moral ou pessoal em que se encontrem. Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os ama” (Puebla, 1142). 

            Em profunda sintonia com a teologia da libertação, Pikaza filia-se a essa perspectiva da bem-aventurança dos pobres, de puro traço evangélico. Sublinha que “a felicidade de Jesus é uma boa notícia de vida para os pobres”. Sua mensagem é de alegria para eles, e para todos, no sentido de que o caminho que se abre, apesar de duro, é o da radical dignidade e cidadania dos últimos, de honradez e respeito pela sua singularidade. As bem aventuranças, indica Pikaza, traçam um horizonte de felicidade e de alegria, indicando que o “dom e a tarefa principal da vida é a de ser feliz”. Como diz a canção brasileira de Aldir Blanc: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz”. Não há como compreender o ensinamento original de Jesus excluindo ou desconsiderando esse traço fundamental da opção pelos pobres. No horizonte está essa alegria inédita, que possibilita aos que têm fome e choram acreditar e gozar essa dimensão mais secreta e mais bonita da vida, de que foram excluídos e rechaçados, e que agora redescobrem vivamente nesse projeto de Deus.

            O papa Francisco na Laudato si, sua encíclica sobre o cuidado da casa comum, lança o desafio de uma “espiritualidade ecológica” (LS, 216), que envolve radical conversão na relação com o ambiente e as espécies companheiras. O modelo vem inspirado em Francisco de Assis. É uma espiritualidade que convoca a uma nova qualidade de vida, simples e sóbria, de “regresso à simplicidade, capaz de “saborear as pequenas coisas e alegrar-se com pouco. Trata-se de uma espiritualidade de gratuidade, disponível ao agradecimento permanente dos dons e “possibilidades que a vida oferece” (LS, 222). Essa espiritualidade tem como eixo o cuidado, a delicadeza e a atenção com todas as criaturas. Ela vem favorecida pela “paz interior”. Francisco salienta a importância de reservar um tempo especial “para recuperar a harmonia com a natureza” (LS, 225). Essa dinâmica de cuidado e atenção revela-se nos “simples gestos cotidianos” (LS, 230). O livro de Pikaza captou muito bem isso, e fala em “bem-aventurança ecológica”, inspirado em Francisco. É uma bem-aventurança animada por experiência forte, social e ecológica. Uma bem-aventurança que convoca a uma nova atitude diante da Terra, não mais de domínio e exclusão, mas de sintonia e solidariedade. Na raiz da crítica de Pikaza está a prepotência do “homem-humano”, conquistador e violento, incapaz de captar o grito da Terra. Quanto mais se dá o domínio e prepotência, mais a presença da ruína e da destruição, que certamente provoca um troco violento. A Terra não é somente mãe, mas também “intrusa”, que reage de forma imprevisível com suas garras de auto-preservação. 

            Uma das novidades apresentadas por Pikaza em seu livro é relacionar a preservação da Terra com uma das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a Terra”. Como mostra Pikaza, “só os humildes poderão herdar e condividir a Terra viva da Felicidade, irmã e mãe dos homens”. Na trilha de Jesus, humilde e pobre, somos convocados ao exercício de desapego, de superação da hybristotalitária é entrar na linda teia de comunhão, onde o que existe é inter-relação de escuta, acolhida e aprendizado. É o desafio radical de “viver e amar com suavidade”, não para conseguir o céu, mas para “herdar a terra e partilhá-la” com os iguais. Somos desafiados a fazer como a mãe de Krishna, Devaki, que ao olhar com vivacidade a boca aberta de sua criança, percebeu e se deu conta de toda a beleza e imensidão do mundo, que nos abarca e abraça.

            

            

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