Tempo de solidariedade
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
O que estamos vivendo no Brasil nesses dias e que vai se acentuar no mês de abril é um TEMOR fora do controle. Agora é que vai caindo a ficha na população, sobre a gravidade da situação. As imagens que vemos da Itália são atemorizantes e muito tristes. O número de mortos ali já passa de 4.032. Só ontem, dia 20, morreram 627. Não há quem não se comova diante daquele corteja de caminhões militares transportando os mortos... Está faltando terreno para enterrar os que faleceram. Tudo é muito triste.
Escrevia num texto recente sobre o temor da peste que sempre ameaçou a humanidade. Em tempos passados a situação foi bem difícil, como na Idade Média, com o medo das epidemias, particularmente a peste. Como dizia o historiador Georges Duby:
“É o fogo do mal dos ardentes que queima as populações do ano 1000 Uma doença desconhecida que provoca um terror imenso. Mas o pior está por vir: a peste negra devasta a Europa e ceifa um terço de sua população durante o verão de 1348”.
Em artigo no El País, de 18/03/2020, o escritor Mario Vargas Llosa falava desse temor da peste, como um dos “maiores pesadelos da humanidade”. Naquela ocasião, porém, a peste era vista como coisa do demônio, que deixava os seres humanos desarmados e afogados no caos do sem sentido. O velho terror, como diz o escritor, não desapareceu jamais. Vira e volta ele retorna com alguma epidemia universal, como é o caso hoje do Coronavírus. Assis como ocorreu com outros vírus que tomaram conta de regiões da humanidade, esse também vai passar, mas o que não passará jamais é o “medo da morte”. Esse permanece, como tão bem mostrou Ingmar Bergman no filme “O sétimo selo”. A gente pode brigar com ela, buscar razões plausíveis para esvaziar a mente de sua presença desinstaladora, mas ela retorna com vigor. É um temor que se aninha no coração. Como diz Llosa, a religião busca aplacar esse medo, e às vezes consegue, de forma impressionante. Como indica Berger, numa de suas frases mais célebres da obra “O dossel sagrado”, “a religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo”. Émile Durkheim também mostrou em sua obra sobre “As formas elementares da vida religiosa” o poder da religião, um poder de enfrentar e vencer o sofrimento, com sua força dinamogênica. Tem em verdade um “poder” especial para lidar com o “mundo em pedaços” (Geertz).
Quando dei meu curso sobre o Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, no segundo semestre de 2019, defrontamos com essa questão ao tratar o momento do livro, fortíssimo, que fala da epidemia de varíola que tomou conta de uma região do sertão. A descrição do romancista sobre o episódio é impressionante. Aquele povoado – a gente do Pubo – ficou isolado com a peste e o preconceito. As estradas que levavam à região estavam também resguardadas, como hoje... A coisa era tão grave, que eles nem estavam enterrando mais os defuntos. O que Riobaldo mais queria era sair daquele inferno, passar adiante; o “inferno feio deste mundo: que nele não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade”. Aquela “horrorosa doença” reinava “por cima da pior miséria”. É o que também poderá ocorrer aqui no Brasil em breve se não houver uma decisão política, pública, de defesa da saúde. Ainda no romance de Guimarães Rosa, o personagem Riobaldo refletia: “Eu queria poder sair depressa dali, para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em incerteza, terras que não fossem aqueles campos tristonhos”.
Para enfrentar tudo isso Riobaldo se cercou da proteção de todos os santos e rezas, e conseguir fazer a travessia. Tinha no fundo da alma uma convicção: “Deus é paciência. O contrário é o diabo”. Tinha certeza da força da religião, da “reza que sara da loucura”, e então deixou-se envolver pelo diversificado repertório delas: “Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas”. Para enfrentar a diversidade, sabia da força singular de Deus, que “faz é na lei do mansinho” e “ataca bonito, se divertindo”.
Para enfrentar essa adversidade que nos acomete hoje com o coronavírus, vale também o sábio conselho do papa Francisco, talvez uma das poucas lideranças no tempo atual que está lidando de frente com o sufoco desse vírus implacável. Sua presença e sua fala estão tendo um impacto de serenidade que é essencial para todos nós. Não se fecha no seu mundo, mas vai para rua, evidenciando sua tese de uma “igreja em saída”. E vem nos convocar para a atenção aos pequenos gestos, nesse momento duro de confinamento:
"Precisamos reencontrar a concretude das pequenas coisas, das pequenas atenções em relação aos que estão próximos, familiares, amigos. Entender que nas pequenas coisas existe o nosso tesouro. Existem gestos mínimos, que às vezes se perdem no anonimato da vida cotidiana, gestos de ternura, de afeto, de compaixão, que, no entanto, são decisivos, importantes. Por exemplo, um prato quente, um carinho, um abraço, um telefonema ... São gestos familiares de atenção aos detalhes do dia a dia que fazem a vida ter sentido e que exista comunhão e comunicação entre nós (...) Às vezes, vivemos entre nós apenas uma comunicação virtual. Em vez disso, deveríamos descobrir uma nova proximidade. Uma relação concreta feita de atenção e paciência."
Para este tempo de quaresma, de preparação para a Páscoa – festa central para os cristãos – Francisco aconselha “penitência, compaixão e esperança”. E também muita humildade. Um tempo também de oração, onde possamos viver de frente, e sem temor, nossa situação de vulnerabilidade e finitude. Não é, porém, motivo ou razão, para fechamento ou ensimesmamento, mas tempo kairológico de exercício de compaixão e solidariedade. Neste tempo propício não há separação entre crentes e não crentes, mas uma corrente igualitária de solidariedade que rompe as fronteiras de crença, raça e gênero, e nos lança ao desafio essencial de serviço ao outro. Francisco sinaliza que estamos diante de uma “emergência planetária” e ninguém pode ficar fora do compromisso comum com os mais sofridos.
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