quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Querida Amazônia uma primeira leitura

Querida Amazônia: uma primeira leitura

Faustino Teixeira
Considerações iniciais

Terminei uma primeira leitura da Exortação Apostólica Pós-Sinodal, “Querida Amazônia”, publicada hoje, 12/02/2020. Partilho com os amigos uma reação inicial, sujeito a novos aperfeiçoamentos com uma leitura ainda mais atenta do texto.

A impressão que o documento deixa para mim é significativa. Penso que Francisco passa uma mensagem essencial: a urgência da defesa da Amazônia, de seus povos, de suas culturas. Esse é um traço profético fundamental do documento pós-sinodal. A avaliação da conjuntura é boa, bem como a defesa intransigente da causa amazônica. A parte eclesial é mais modesta, ainda que provoque reflexões que são importantes, sobretudo no âmbito da inculturação. Francisco preferiu não apoiar explicitamente a ordenação de leigos, mesmo tendo em conta as dificuldades precisas na Amazônia de acesso à eucaristia. Francisco preferiu a cautela e não a ousadia nessa área. Já imaginava que isso iria ocorrer.

Passo alguns destaques que percebi nessa primeira leitura:

Capítulo I: Um sonho social

. A necessidade de um “grito profético” de todos em favor da Amazônia, bem como de um “árduo empenho” em favor dos mais pobres (n. 8)
. Francisco sinaliza que sonha “com uma Amazônia que lute pelo direito dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos” (n. 7)
. Francisco denuncia algo que é muito grave no momento atual: a expulsão dos indígenas e reibeirinhos para a periferia das grandes cidades. Encontram agora “as piores formas de escravidão, sujeição e miséria” (n. 10)
. Faz uma crítica à construção das hidrelétricas e o projeto de hidrovias, e os impactos provocados nos rios e territórios (n. 11)
. Denuncia a falsa “mística amazônica”, que entende o território amazônico como um “enorme vazio que deve ser preenchido”; de uma “vastidão selvagem que precisa ser domada”. Essa é a visão desenvolvimentista que predomina em muitas autoridade... Trata-se de uma perspectiva que não reconhece “os direitos dos povos nativos ou simplesmente os ignora como se não existissem e como se as terras onde habitam não lhes pertencessem (n. 12)
. Como em outros documentos, Francisco denuncia essa globalização excludente, como um “novo tipo de colonialismo” (n. 14)
. Francisco propõe algo bem diverso: a “globalização da solidariedade” (n. 17)
. O papa faz uma auto-crítica da igreja, que muitas vezes se deixou enredar em “redes de corrupção, por vezes chegando ao ponto de aceitar manter silêncio em troca de ajudas econômicas para as obras eclesiais” (n. 25)
. Francisco insiste em dizer que o diálogo deve “começar pelos últimos”; o diálogo deve reconhecer os marginalizados e excluídos como “protagonistas) (n. 26 e 27)

Capítulo II: Um sonho cultural

. Francisco faz recurso a uma imagem que lhe é cara: do poliedro amazônico. Sublinha que na Amazônia, onde vivem “Muitos povos e nacionalidades”, a situação é precária. Ali estão povos que são “últimos depositários dum tesouro destinado a desparecer”. Sublinha a importância de se evitar considerá-los “selvagens não civilizados”. Eles “simplesmente criaram culturas diferentes” (n. 29)
. Com a crescente desertificação, os antigos habitantes daquela região são obrigados a novos deslocamentos, ocupando “as periferias ou calçadas das cidades por vezes numa situação de miséria extrema, mas também de dilaceração interior devido à perda de valores que os sustentavam” (n. 30)
. Francisco faz menção à riqueza da cultura oral, dos mitos, lendas e narrações dos povos originários. Menciona Mario Vargas Llosa que trata dos contadores de história que iam de aldeia em aldeia mantendo viva a cadeia de transmissão da memória (n. 34)
. Aliás, é interessante perceber o lugar concedido à poesia por Francisco: ele cita poetas e romancistas ao longo de seu texto: Vargas Llosa, Neruda, Thiago de Mello, Pedro Casaldáliga e Vinícius de Morais.

Capítulo III – Um sonho ecológico

. O início do capítulo tem um toque poético: “Numa realidade cultural como a Amazônia, onde existe uma relação tão estreita do ser humano com a natureza, a vida diária é sempre cósmica” (n. 41)
. A floresta é lugar de inter-relação. No número 23, já falava Francisco disso, lembrando a Laudato si. A floresta, diz Francisco, não é “um recurso para explorar” mas “um ser ou vários seres com os quais relacionar-se” (42).
. E os indígenas são aqueles que, quando permanecem em seus territórios, são os que “melhor cuidam” da natureza (n. 42)
. A rainha da Amazônia é a água, e os rios e córregos são as “veias”. E dali que brotam todas as formas de vida (n. 43)
. O papa cita um poema de Neruda que indica que o Amazonas “é a capital das sílabas d´água” (n. 44)
. Nessa parte do documento, revela-se o tonus poético de Francisco: ela enaltece os “poetas populares, enamorados”, e canta com Vinícius de Morais, que só a poesia pode salvar (n. 46)
. A poesia entra como recurso fundamental nesses tempos difíceis: “ajuda a expressar uma dolorosa sensação que muitos compartilham hoje: esse modo judiado de tratar a Amazônia. Recorre a Juan Carlos Galeano: “O rio é uma corda onde se agarram os animais e as árvores / Se o puxarem demais, o rio poderia rebentar / Poderia explodir e lavar-nos a cara com a água e com o sangue” (n. 47)
. A todo tempo Francisco chama a atenção para o risco da desertificação da Amazônia, quando se eliminam as florestas, e o ambiente se transforma num “território desértico ou pobre em vegetação” (n. 48)
. Francisco lança-se em defesa do ecossistema amazônico, em que cada parte é fundamental para a preservação do todo (n. 48)
. E nesse ecossistema, a importância nodal dos fungos, algas, vermes, pequenos insetos, répteis e os inumeráveis micro-organismos. Todos exercendo um fundamental papel do equilíbrio do lugar (n. 49)
. Dirá um pouco depois que “cada uma das diferentes espécies tem valor em si mesma” (n. 54)
. Questiona com ênfase os que defendem uma “internacionalização da Amazônia” (n. 50)
. Para a defesa da Amazônia, e isso é importante, deve-se “conjugar a sabedoria ancestral com os conhecimentos técnicos contemporâneos, mas procurando sempre intervir no território de forma sustentável preservando ao mesmo tempo o estilo de vida e os sistemas de valores dos habitantes” (n. 51)
. Francisco toma a defesa da “profecia da contemplação”: a contemplação de cada uma das espécies. Num aprendizado com os povos nativos, a capacidade de “contemplar a Amazônia e não apenas analisa-la” (n. 55)
. Trata-se do despertar para o “sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nos e que, às vezes, deixamos atrofiar” (n. 56)
. Fala também em “educação e hábitos ecológicos” (n. 58)

Capítulo IV – Um sonho eclesial

. Aqui entra o repertório mais tradicional, típico do caminho realizados pelos documentos das Conferências Episcopais das últimas décadas. Nesse campo eclesial, é mais difícil verificar ousadias. Algumas brechas, porém, podem ser encontradas, mas sempre muito cautelosas.
. Para não perder o toque tradicional, a ênfase “anúncio indispensável na Amazônia”: “Como cristãos, não renunciamos à proposta de fé que recebemos do evangelho” (n. 62)
. Os povos da Amazônia “têm direito ao anúncio do Evangelho” (n. 64)
. O grande polo da reflexão aqui relaciona-se com a inculturação: “Quando uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora do evangelho” (n. 68)
. Pontuo aqui um eixo de abertura, quando Francisco valoriza o traço da “recepção”: quando a igreja deixa-se fecundar com aquilo que o Espírito semeia nas culturas (n. 68)
. O Espírito, assim, “embeleza a igreja, mostrando-lhe novos aspectos da revelaçãoo e presenteando-a com um novo rosto” (n. 68)
. Francisco enfatiza aqui a necessidade da igreja deixar-se tocar “corajosamente pela novidade do Espírito” (n. 69)
. Na Amazônia, os povos indígenas podem nos ajudar a “descobrir o que é uma sobriedade feliz e, nesta linha, têm muito para nos ensinar (n. 71)
. Somos todos, diz Francisco, convidados a sermos “seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicr através deles” (n. 72)
. E então cita Casaldáliga no n. 73
. Depois de falar da inculturação, Francisco aponta alguns traços da “santidade amnazônica”: Chega-se à santidade, “cada um por ser caminho” (n. 77)
. Questiona aqueles que não conseguem perceber nos povos amazônicos, em suas expressões religiosas, senão “superstição ou paganismo” (n. 78)
. Abre-se para reconhecer um valor nos símbolos indígenas, sem qualifica-los como idolátricos (n. 79)
. Diz o papa: “Um mito denso de sentido espiritual pode ser valorizado, sem, continuar a considera-lo um extravio pagão” (n. 79)
. Como em outros documentos da igreja, mantém-se viva a teologia do acabamento: Francisco fala em “purificação e maturação” das festas religiosas desses povos, ainda que mencione a presença nelas de um “significado sagrado” (n. 79)
. Mais adiante, no n. 107, volta essa visão “hierarquizada”: com a igreja católica no centro: dos católicos que possuem “um tesouro nas escrituras sagradas”, que as outras religiões não aceitam, ainda que possam apreciar com interesse alguns de seus conteúdos. Fala ainda do esforço feito pelos católicos em reconhecer nas outras religiões “um raio de verdade” (n. 107)
. Francisco fala também com cautela da inculturação da liturgia (n. 81s); da inculturação do ministério. Sublinha que o ministério deve ser configurado de forma a manter-se a serviço de “uma maior frequência à celebração da eucaristia” (n. 86)
. Fala da importância de incentivar “ministros que possam compreender a partir de dentro a sensibilidade e as culturas amazônicas” (n. 86)
. Sublinha a importância dos leigos nesse trabalho, mas firmando seu ministério no anúncio da palavra, no ensino, na organização das comunidades e celebração “de alguns sacramentos”: isto de forma a “desenvolver os múltiplos dons que Espírito derrama neles” (n. 89)
. Salienta a necessidade de “comunidades cheias de vida”, mas o ministério ordenado vem preservado aos sacerdotes. Fala da importância dos sacerdotes, embora reconheça o papel a ser dado aos diáconos permanentes (n. 92)
. E o cuidado de Francisco quando trata da questão: fala em “adequado acompanhamento” (n. 92)
. A Eucaristia permanece sendo uma prerrogativa do clero ordenado. Francisco, porém, estimula “uma nova vida nas comunidades” (n. 93)
. Fala da importância das CEBs no n. 96: com sua capacidade de conjugar a defesa dos direitos sociais com o anúncio missionário e a espiritualidade.
. Ao final, fala das mulheres, da importância de sua atuação na Amazônia: aquelas que “mantiveram a igreja de pé, com admirável dedicação e fé ardente” (n. 99)
. Chama a atenção para o risco da “clericalização” da mulheres (n. 100)
. Na visão de Francisco, sem as mulheres a igreja “se desmorona”. Isso se verifica muito bem na Amazônia (n. 101)
. Mantendo o cuidado da preservação do Ministério Ordenado, Francisco sublinha que as mulheres “deveriam poder ter acesso a funções e inclusive serviços eclesiais que não requeiram a Ordem sacra e permitam expressar melhor o seu lugar próprio” (n. 103)

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