sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Lula e sua espiritualidade terrenal

Lula e sua espiritualidade terrenal

Faustino Teixeira
PPCIR/UJFJ e ISER-Assessoria

“Vamos aproveitar  toda a
nossa capacidade crítica  e criativa
para construir  paraquedas coloridos”

Ailton Krenak


            Já dizia um dos mais clássicos autores que trabalham a espiritualidade, o catalão Raimon Panikkar, que ela deve ser entendida como passo “integral”, como caminho de experiência da vida, como “carta de navegação”. Ela não se confunde com religião, pois diz respeito às qualidades de vida, entre elas a compaixão, a hospitalidade, a cortesia e a delicadeza. São valores que se encontram distanciados de nossa vida cotidiana, tomada pelos imperativos do mercado e da eficácia. A vida espiritual envolve sobretudo “estar presente”, como indica Thomas Merton, outro grande nome da vida contemplativa. Para ele, a contemplação é um dom que potencializa as pessoas a despertarem para a infinita Realidade que habita dentro de tudo o que é real.
            Esses traços encontram-se profundamente presentes em Lula, que, sem dúvida, é um dos personagens mais carismáticos e proféticos que marcam o nosso cenário latino-americano e mesmo internacional. Como disse o historiador inglês Eric Hobsbawm, Lula “ajudou a mudar o equilíbrio do mundo ao trazer os países em desenvolvimento para o centro das coisas”. Dificilmente vai surgir alguém com um carisma assim tão vivo e cativante, que repercute e irradia um sentimento popular dos mais nobres e convidativos. Tendo em conta essa perspectiva mais ampla da vida espiritual, entendida como experiência compatível com todas as coisas, Lula reverbera em sua prática, caminhada e experiência uma nobreza espiritual rara, diria uma honradez que é exemplo para todo aquele que busca uma vida justa. Sua presença na presidência da república por dois mandatos, no início do segundo milênio, resgatou o que há de mais bonito e fundamental da vida dos pobres: sua cidadania. Seu trabalho mais decisivo foi reduzir o campo da pobreza num país marcado pela cotidianidade da opressão. Daí a alegria que ele deixou entre os mais excluídos, que retorna a cada momento que ele entra em cena, aquecendo sobretudo o coração dos desvalidos, que puderam com ele sonhar com uma vida diferente.
            Numa de suas mais recentes e expressivas canções, Gilberto Gil assinala que a razão mais viva de sua busca é a nobreza da alma. Vejo isso com nitidez na presença de Lula. Em visita a Lula, em maio de 2018, Leonardo Boff pôde testemunhar a espiritualidade do amigo, no primeiro mês de sua prisão. O que mais o impressionou foi o “ânimo” e a “esperança” de Lula, naquele momento difícil de sua vida. Tudo isso não surge à toa, mas é fruto de uma experiência escaldada numa pratica cotidiana, mas também num exercício meditativo, que acompanha Lula ao longo de sua trajetória. Ninguém mantém viva a esperança sem um cuidado com o mundo interior. Boff pôde perceber esse traço religioso – espiritual – na cela do amigo, em que um crucifixo orna a cabeceira de sua cama. Não é uma religiosidade qualquer, mas uma religiosidade experimentada, onde Deus emerge como “uma evidência existencial”. E uma espiritualidade semelhante ao do personagem Riobaldo do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que acolhe com alegria a diversidade como um bem: “Muita religião, se moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio”. Espiritualidade e Vida se compõem na vida de Lula como uma linda melodia. Como alguém do povo, exclui qualquer privilégio pessoal, quer se inserir no caminho singular de sua gente e participar de suas agruras e alegrias, dores e esperanças. Num momento como o atual, onde tanta gente vem “adoecendo de Brasil”, como mostrou tão bem Eliane Brum em recente artigo, o grito de Lula se faz ainda mais necessário e urgente. São tantas as pessoas que estão adoecendo, deprimindo-se com a ausência de horizontes, com a falta de sentido. Tudo em razão de uma perversidade em curso, que estreita os caminhos do futuro e aponta para um horizonte assombroso. Nesse momento particular, o Brasil precisa de um grito que venha de entranhas populares, que traga à baila a serenidade de um outro caminho, de uma outra proposta, fundada na ética e no bem-viver. O momento é difícil e urge um cuidado muito especial com a vida interior, para evitar que o desespero ocupe o lugar da sensatez e da disposição de caminhar para um horizonte mais seguro.
            Em sua experiência na prisão, que já se aproxima de ano e meio, Lula tem meditado cotidianamente. Vive uma prática de oração e leitura, de ponderação crítica, podendo aprofundar seu caminho passado, seu momento atual e seus projetos futuros. Como ele diz: “Eu passo o tempo inteiro sozinho”. Muita coisa vem sendo gestada nesse tempo propício, e diria que também muitos sonhos são acalentados, alguns novidadeiros, que podem acionar um rumo distinto para esse momento sombrio. Das coisas que mais me chamam a atenção em sua experiência na prisão é sua busca reiterada por não deixar o ódio tomar conta de seu coração. Como profeta certeiro, Lula prioriza um trabalho interior que exclui o ódio, a mágoa e a revanche. Desvela-se para ele, ao contrário, um caminho que é de serenidade. Diz que vai sair dali melhor do que entrou, isto também em razão desse trabalho interior. Expressa claramente que não quer que seu coração seja tomado pelo ódio. Isso podemos perceber vivamente em seu olhar. Tudo me faz lembrar uma singular mística holandesa, Etty Hillesum, que morreu em Auschwitz em 1943, aos 29 anos de idade. Marcada também por uma vida interior trabalhada, dizia que seu trabalho fundamental era contribuir para que a “escolta de amor” pudesse crescer sobre a terra. Indicava em seu diário que “cada migalha de ódio que se acrescenta ao ódio já exorbitante, torna esse mundo inabitável e insustentável”. Sua grande tarefa, como “coração pensante” do campo de concentração, era despertar para a vida aquilo que estava morto dentro dos vivos. Vejo também essa a grande tarefa de Lula nesse momento do Brasil. E aqui fica um convite particular, para animar a reflexão de Lula em seus momentos de prisão: o de ampliar sua rede de compaixão, de modo a poder envolver toda a natureza e o cosmos. Trata-se de um dos mais essenciais desafios de nosso tempo, que avança arriscadamente  para uma catástrofe. Lula poderia erguer-se  agora como um paladino da Florestania, da defesa da Amazônia e dos povos originários; da luta em favor da integridade da criação e da inter-conexão de todos os seres. Não defender exclusivamente os humanos, mas todas as espécies companheiras ameaçadas. Nessa nobre luta, tão assinalada por alguns brasileiros especiais, como Leonardo Boff, assinala-se a ampliação das malhas da hospitalidade, a “ampliação da personalidade jurídica da floresta”. Não somos apenas nós os humanos que merecemos destaque, mas toda a criação, com seus direitos característicos. Hoje se torna cada vez mais claro que o âmbito do “nós” se amplia com novos parceiros, que merecem o nosso grito de apoio. Mantemos acesa a nossa luta em favor dos pobres, que são os privilegiados de Deus, mas também ampliamos nossa luta em favor do direito da floresta, dos animais, dos vegetais, dos minerais e de nossa mãe Terra. Como apontou Boff, temos que incluir a Terra, esse super organismo vivo, no “rol dos cidadãos”. Aí sim, a nossa luta será completa e espetacular, mostrando a linda malha que nos une e nos agrega como povos de Gaia.

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