quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Oração

Oração

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

A oração ou prece é um procedimento fundamental do homem religioso, talvez “o ato religioso essencial”, presente em todas as tradições. É o “respiro” que anima o homem espiritual, de uma universalidade que supera a fé explícita num Deus pessoal (C. Geffré, Passion de l´homme passion de Dieu, p. 124). Trata-se de um procedimento que transcende a diversidade das distintas religiões do mundo. Segundo a expressão cunhada pelo antropólogo Marcel Mauss, “a prece é um rito religioso, oral, diretamente relacionada com as coisas sagradas” (R.C. Oliveira, Mauss, p. 146). A oração é um ato, um movimento, mesmo que não venha acompanhada de palavra. Expressa uma “atitude da alma”. Trata-se de um ato “eficaz” pois pode suscitar fenômenos extraordinários. É um ato que expressa uma ação sobre os seres sagrados, que envolve sua presença e suscita modificações no fiel, numa perspectiva dinamogênica. Mesmo quando realizado individualmente e solitariamente, a oração é um “fenômeno social”, como bem mostrou Marcel Mauss. Mesmo em sua forma mental, traduz uma dinâmica social, pois “o espírito que a domina é o da igreja, as ideias que suscita são as da dogmática de sua seita, os sentimentos que aí dominam são os da moral de sua facção” (R.C. Oliveira, Mauss, p. 117).
Em suas diversas expressões linguísticas (prece, prière, prayer, Gebet, proseukh etc.), a oração envolve dois movimentos: uma súplica dirigida ao Mistério, ao Sagrado; e uma crença de que essa comunicação é possível. Implica também uma atitude essencial de “escuta”, de deixar-se habitar pelo hálito do Misericordioso, como pode ser verificado na devoção judaica, no exemplo da vocação de Samuel (1Sm 3). Essa atitude orante pode ocorrer em qualquer lugar, não se restringindo aos locais de culto. Dizia com razão Thomas Merton: “Nenhum escrito sobre as dimensões de solidão, de meditação da vida pode dizer algo que já não tenha sido dito melhor pelo vento nos pinheiros” (T.Merton, Amor e vida, p. 17). O essencial é saber escutar, disponibilizar o mundo interior, com atitude de paz e equilíbrio, para escutar o canto das coisas. Na visão de Merton, não há momento despido da presença do Mistério, o que se requer é disponibilidade interior para ouvir o seu canto. Todo momento é um “bom momento para Deus, seu kairós. Tudo se limita a darmos oportunidade, na oração, para a consciência de que temos o que buscamos. Não temos que perseguí-lo. Ele está sempre aí, e se lhe damos tempo ele se apresenta a nós” (W. Shannon; C. M. Bochen; Patrick F. O´Connel, Diccionario de Thomas Merton, p. 403).
O orante é alguém que se vê interpelado, que se dirige a um Tu amoroso, num campo aceso de sentido: “Quando te invoco, responde-me, ó meu justo Deus! Na angústia tu me aliviaste: tem piedade de mim, ouve a minha prece!” (Sl 4, 2). E o crente amoroso tem convicção de que o Misericordioso é capaz de captar a nervura da prece, como acentuou o místico sufi Rûmî, numa das passagens de seu Masnawi, com base num  clássico dito do livro do Corão: “Recordai-vos de mim, que eu me recordarei de vós” (C 2,152). Seguindo a pista aberta por Rûmî, quando há no coração a presença da centelha do amor de Deus, a correspondência de amor vem imediatamente. Deus apresenta-se no ato mesmo da invocação do fiel. A súplica do amante de Allah corresponde ao “aqui estou” (labbayka) de seu Amado (MIII, 189s). Na tradição islâmica, a rememoração de Deus (dhikr) está viva em todo cotidiano do fiel, que vem instado a invocá-lo do amanhecer ao entardecer (C 7, 205). O fiel sente a efetividade do Mistério em cada passo da existência, pois ele está mais próximo que sua veia jugular (C 50, 16). Para o muçulmano, a sura de abertura do Corão, a Fatiha, é a oração que serve de chave para a compreensão do Livro, como uma síntese de todo o seu conteúdo (A.Ventura, Al Fatiha). A vida e a morte dos fiéis muçulmanos são adornadas por essa potente oração. Logo na entrada, a basmala(o primeiro versículo do Livro), como “fórmula invocativa fundamental”, indica o universo da divina proteção que cobre cada um dos fiéis na sua jornada. A Misericórdia, que abraça todas as coisas, não deixa nenhum fiel à margem de sua proteção (C 7, 151; C 7, 156).
Na tradição cristã ocidental, há a presença singular de Teresa de Ávila, ou Teresa de Jesus, a grande mestra do discernimento espiritual. Traçando o passo pedagógico para entender o universo da oração, ela sublinha que a oração não é questão de pensamento, mas de amor: “O essencial não é pensar muito – é amar muito” (IVM 1,7). Em linha de sintonia com a tradição mística esponsal, Teresa reitera a oração como uma relação amorosa com Deus, insistindo para com aqueles que ainda não fizeram tal experiência não deixarem de praticá-la, pois estariam privados de um grande bem. A oração para ela é um “trato de amizade”, favorecendo o estar a sós “com quem sabemos que nos ama” (V 8, 5). No repertório de Teresa há inúmeras modulações da oração, como “louvar, adorar, suplicar e pedir, interceder e expiar...”, bem como outros componentes: “o requebro, a queixa, a ousadia, até a liberdade de ´dizer desatinos´” (P. Sciadini, Dicionário de Santa Teresa de Jesus, p. 531). Para Teresa, a oração sempre direcionava-se para as obras: “O Senhor quer obras. Se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não tenhas receio de perder a tua devoção e compadece-te dela (VM, 3,11). Em âmbito da tradição cristã oriental, há o exemplo do misticismo monástico russo, que remonta ao centro monástico do Monte Athos. O traço característico é o hesicasmo, com a singualidade das fórmulas breves, como a “oração de Jesus”. O nome referencial é Gregório Palamas (T.Merton, Místicos e mestres zen, p. 190-199).
A oração ocupa igualmente um lugar central na mística judaica. Como exemplo, a reflexão de Abraham J. Hescchel, um dos mais destacados pensadores religiosos do século XX. Em sua visão “orar é tomar conhecimento do maravilhoso, é apreender o senso do mistério que anima todos os seres, a margem divina de todas as realizações” (A.J Heschel, O homem à procura de Deus, p. 21). É algo que ultrapassa a mera emoção, pois favorece “a aproximação do humano com o transcendente”, fazendo do humano um partner do sublime, na presença inebriante de seu mistério.
Como se pode perceber, a oração é um “ato” essencial na dinâmica de nomização humana, de dar sentido ao significado e presença do ser humano no tempo, marcado pela impermanência, mas permeado por uma sede que não se apaga, de se aconchegar na Presença Inefável.

Referências Bibliográficas:

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1981.
NASR, Helmi. Tradução do sentido do nobre Alcorão. Brasília: Centro Islâmico do Brasil, s/d (citado no texto como C = Corão)
GEFFRÉ, Claude. Passion de l´homme, passion de Dieu. Paris: Cerf, 1991.
HESCHEL, Abraham J. O homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974.
MERTON, Thomas. Místicos e mestres Zen. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
MERTON, Thomas. Amor e vida. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Mauss. São Paulo: Ática, 1979.
RÛMÎ, Djalâl-od-Dîn. Mathnawî. La quête de l´Absolu. Paris: Rocher, 1990 (citado com MIII = Mathanawî livro III)
SANTA TERESA DE JESUS. Castelo interior ou moradas.  8 ed. São Paulo: Paulus, 1981 (citado no texto com IVM = Quartas Moradas)
SHANNON, William H. & BOCHEN, Christine M. & O´CONNEL, Patrick F. (Eds). Diccionario de Thomas Merton. Bilbao: Ediciones Mensajero, 2015.
TERESA DE JESUS. Obras completas.2 ed.  São Paulo: Edições Carmelitanas/Loyola, 2002 (citado no texto com V = o Livro da Vida).
VENTURA, Alberto.Al-Fatiha – l´aprente. La prima sura del Corano. Genova: Marietti, 

Faustino Teixeira

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