sábado, 13 de julho de 2019

João do Brasil

João do Brasil

Faustino Teixeira

João Gilberto nos deixou no dia 06/07/2019. Ainda estamos sob o impacto doloroso de sua perda, num Brasil que vive momentos tão difíceis e sombrios. É mais uma voz que cala, que deixa um vazio difícil de ser preenchido. Eu tive a alegria de participar de dois concertos de João. O primeiro em Roma, em 1983, quando estava iniciando meu doutorado em teologia na Universidade Gregoriana. Essa singular apresentação veio descrita no livro sobre João Gilberto, hoje esgotado, organizado por Walter Garcia (2012), com 507 páginas. A descrição vem feita por Luca Bacchini, em seu artigo: A dialética do mal-entendido. História e glória de João Gilberto na Itália. O show lembrado foi o que ocorreu em 1983, no Circo Massimo, ao ar livre, no encerramento de um evento organizado por Gianni Amico que contou também com a participação de vários artistas brasileiros, entre os quais Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Naná Vasconcelos. Tratava-se do evento  Bahia de todos os santos. O ponto culminante da apresentação talvez tenha sido o dueto feito por João com sua filha Bebel, quando cantaram “Chega de saudade”. Foi também o momento de apresentação pública da canção “estate”. 
            
            O segundo concerto aconteceu no Cine Teatro Central de Juiz de Fora, na sua reinauguração em 14/11/1996, quando o cantor apresentou-se sozinho com seu violão. O espetáculo veio descrito por meu filho, Pedro Bustamante Teixeira, em seu blog (Pelo Fonógrafo), em 13/07/2019. Dois momentos foram marcantes no show de João Gilberto, que teve o maior bis da história da MPB, com uma hora e meia de duração. O primeiro, quando cantou “No rancho fundo”, de Lamartine Babo. Como assinalou Pedro, “João ensinou a todos a música que havia por trás da interpretação sertaneja e foi de matar de tão bonita”. O segundo momento, quando cantou o hino mais popular de Minas Gerais, “Oh Minas Gerais”, que tem a letra de um cidadão de Juiz de Fora, José Duduca de Moraes, que ainda estava vivo no bairro Santo Antônio quando aconteceu a apresentação.

            João Gilberto é o grande nome da Bossa Nova, que aliás ele não gostava de a nomear assim. Preferia dizer que o que fazia era samba[1]. Na base de sua criatividade tem muitos nomes, entres os quais Dorival Caymmi, que também era mestre “no domínio intuitivo da harmonização no violão”, a música colocada a serviço da poesia[2]. A Bossa Nova foi um movimento de curta duração, que aconteceu entre os anos de 1958 a 1963, mas que exerceu um impacto fundamental, trazendo uma verdadeira “promessa de felicidade”[3]

            Como entender a música de João Gilberto ? Tárik de Souza captou muito bem esse segredo, ao sinalizar que o que João buscava era uma “verdade mais simples”, através de um exercício impressionante de ascetismo e enxugamento. Ele dizia, como lembra Tárik, que sua busca era por refinamento e purificação da música, até atingir aquele ponto de simplicidade[4]. E ainda:

“Quando eu canto, penso num espaço claro e aberto onde vou colocar meus sons. É como se eu estivesse escrevendo num pedaço de papel em branco: se existem outros sons à minha volta, essas vibrações interferem e prejudicam o desempenho limpo da música”[5].

                  João foi de fato um “mestre da recriação”, como identificou Caetano Veloso[6]. Estava um passo adiante de todos, numa impressionante busca da perfeição. Na visão de Lorenzo Mammì, que escreveu um dos melhores artigos sobre ele no livro assinalado, João busca aproximar cada vez mais “o canto à fala”. Era mestre de uma arte que poucos conseguem alcançar, de retardar a voz e antecipar a melodia no violão, na busca “de um tempo médio que nunca é pronunciado, mas que é o que garante ao verso a essência musical e ao canto ser poesia”[7]. Não há nada parecido na música norte-americana, é o que diz Lorenzo Mammì. No caso americano, a “voz é tanto mais perfeita quanto mais se aproxima do instrumento”. No caso brasileiro, “o canto se torna tanto mais perfeito quanto mais roça a indefinição da fala”, introduzindo uma “vertigem do infinitesimal que é absolutamente estranha à cultura jazística”[8]. O que vemos na Bossa Nova é uma canção de intimidade, de “pulsação doméstica”, de “baixa definição”. É uma música que tem o ritmo caseiro, mesmo quando vem executada num grande estádio. Há algo na Bossa Nova que escapa às outras tradições musicais, daí o enorme fascínio que exerce em âmbito universal[9]

            Talvez o segredo maior desse toque delicado e “acanhado” da Bossa Nova esteja no seu espírito zen. Foi o que percebeu com acerto Shigeki Miyata, em texto publicado no The Concert Book Japan, durante a tour realizada por João Gilberto em 2006. O cronista relembra: 

“Quando João veio para o Japão em 2003, pude conhecer pessoalmente a sua forma de agir e de falar. Impressionou-me o amplo conhecimento sobre o Japão: a sua história, a sua cultura, a tradição e a sociedade japonesas. Começou falando do zen budismo, dos poemas haicai e se estendeu até as lutas de sumô, aos problemas educacionais, demonstrando conhecer muito bem o Japão”[10].

                  Em entrevista concedida por João Gilberto à Revista do Rádio, em agosto de 1959, ele já expressava esse seu jeito zen, que certamente influenciou profundamente a sua criação musical. Ele dizia: 

“Gostava de ficar horas e horas à beira do rio, ouvindo o coaxar dos sapos e vendo a luz, a claridade, os reflexos do sol na água. Tentava compreender aquilo tudo. Consegui sentir – compreender não compreendi. Mas aquilo ficou em mim e ainda hoje carrego comigo um bocado de todo aquele alumbramento”[11].

                  João Gilberto foi talvez um dos mais impressionantes artistas brasileiros do século XX, que conseguiu simbolizar uma geração e trazer para o ritmo do coração um trabalho que é ao mesmo tempo rigoroso e terno, como uma “conversa de fim de noite”. Quem definiu João de forma singela e amorosa foi Vinícius de Moraes, em 1964: “Eu sei que dentro da sua neurose, dentro da sua esquisitice, existe um lugar que ele rega diariamente com as lágrimas que chora por dentro. Um lugar que podemos chamar de Brasil, por exemplo”[12].



[1]Sobre isso ele se manifestou em rara entrevista concedida ao jornalista Carlos Alberto Silva, em outubro de 1979: Walter Garcia (Org). João Gilberto. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 88.
[2]Luís Antônio Giron apud Stella Caymmi. O ourives do espaço vazio. In: Walter Garcia (Org). João Gilberto, p. 87.
[3]Lorenzo Mammì. João Gilberto e o projeto utópico da Bossa Nova. In: Walter Garcia (Org). João Gilberto, p. 165.
[4]Tárik de Souza. O mito sem mistério. In: Walter Garcia (Org). João Gilberto, p. 42. 
[5]Ibidem, p. 42.
[6]Walter Garcia (Org). João Gilberto, p. 138.
[7]Lorenzo Mammì. João Gilberto e o projeto utópico da Bossa Nova. In: Walter Garcia (Org). João Gilberto, p. 162. 
[8]Ibidem, p. 163. 
[9]Ibidem, p. 158.
[10]Shigeki Miyata. O cotidiano de um deus. In: Walter Garcia (Org). João Gilberto, p. 126.
[11]Walter Garcia (Org). João Gilberto, p. 28.

Nenhum comentário:

Postar um comentário