terça-feira, 3 de abril de 2018

Estar vivo para o mundo

Estar vivo para o mundo: novos caminhos da reflexão

Faustino Teixeira


Na tradição Zen temos a presença singular de Mestre Dogen (1200-1253), que em capítulos importantes de seu Shôbôgenzô faculta uma compreensão nova da dinâmica do caminho ou da Via. Num deles aborda o tema da voz dos vales e as formas-coloridas das montanhas (Keisei sanshoku). Indica que viva relação que vigora entre a voz dos vales e a imensa língua do despertar. Em outro capítulo, que trata das montanhas e rios como sutras (Sansuikyô), sublinha que as montanhas e rios recolhem o campo da presença da Via de antigas experiências do despertar. Aponta para a importância do olhar neste desafio imprescindível de captar o movimento das montanhas. Aqueles que não conseguem VER o movimento das montanhas, a vida das montanhas, não precisamente os que não conseguem captar o próprio movimento de si. E acrescenta: “Quem quer conhecer a marcha de Si deve conhecer precisamente a marcha das montanhas azuis”[1]

No âmbito da recente antropologia vemos autores como Tim Ingold que buscam repensar o animismo dos povos originários, e isto no sentido de reconectar o ser com a vida.[2]Trata-se de um caminho inovador e ousado, que visa reanimar a tradição “ocidental” de pensamento. Com base na ontologia anímica, a vida se desenrola numa superfície animada e em processo. Tudo está em movimento, pois onde há vida há movimento: o sol está vivo, assim como as árvores e o vento[3].Tudo em movimento.

Tudo está em movimento e também em interação. Há uma viva ressonância na dinâmica do vivente. Esse novo caminho busca romper radicalmente com o antropocentrismo e a ideia de excepcionalidade humana que o acompanha. Uma nova compreensão de “nós” emerge, incorporando agora também o “ambiente” que nos circunda[4].A diversidade ganha vida e consistência, assumindo a condição de “valor superior para a vida”. 

Assistimos hoje a uma “virada ontológica” na antropologia, como aponta o sugestivo livro de Eduardo Kohn: Como pensam as florestas (2013)[5].O subtítulo do livro é audacioso: em busca de uma antropologia para além do humano. O autor, que realizou sem trabalho de campo com um grupo runa, em Ávila, na Amazônia equatoriana, está convencido de que os não humanos são também sujeitos de representação, compartilhando com os humanos a “qualidade de agentes”. A seu ver, animais e florestas pensam e representam. Como mostra Kohn, as pessoas em Ávila, que habitam as bordas da floresta amazônica, convivem e interagem na selva com uma miríade de entidades não humanas. Essas “criaturas da floresta” estão envolvidas numa “ecologia de selves”. Os seres humanos não são os únicos egos (selves) no mundo, mas agentes inseridos num campo vasto de outros egos, de outros “nós”. Há uma malha viva de relações das quais participam os Runa, relações vivas. Um processo que indica que a representação é “uma propriedade do mundo” e não apenas da mente humana. 

No âmbito deste novo quadro representacional, de atenção à ecologia dos egos, uma ecologia semiótica, abre-se um novo horizonte para a antropologia, capaz agora de perceber e redescobrir o encantamento do mundo. Tudo se insere neste progressivo “retorno às cosmologias antigas e suas inquietudes”, como sublinharam Bruno Latour e Viveiros de Castro[6]. Exemplo importante disto é o livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu. Segundo Viveiros de Castro, este livro traduz “um acontecimento científico incontestável, que levará alguns anos para ser devidamente assimilado pela comunidade antropológica”[7].

O livro divide-se em três partes: na primeira ("Devir outro") ocorre a descrição da vocação e iniciação xamânica de Davi Kopenawa; na segunda ("A fumaça do metal"), o processo do encontro com os brancos, sobretudo a chegada dos missionários e "a irrupção mortífera dos garimpeiros"; na terceira ("A queda do céu"), toda a jornada empreendida pelo xamã Kopenawa, no Brasil e no mundo, em favor da defesa da causa indígena e da floresta.

Na cosmologia yanomami, como descrita por Kopenawa, a floresta não está morta, mas permeada de vida e da melodia dos espíritos. O que ali ecoa é a voz dos xapiri, numa floresta que é “bela e silenciosa”. Com os olhos dos xapiri, o olhar sobre a floresta vem radicalmente alargado. Relata a respeito Kopenawa:

"Agora sei que nossos ancestrais moraram nesta floresta desde o primeiro tempo e que a deixaram para nós para vivermos nela também. Eles nunca a maltrataram. Suas árvores são belas e sua terra é fértil. O vento e a chuva conservam seu frescor. Nós comemos seus animais, seus peixes, os frutos de suas árvores e seu mel. Bebemos a água de seus rios. Sua umidade faz crescer as bananeiras, a mandioca, a cana-de-açúcar e tudo o que plantamos em nossas roças. Viajamos por ela para comparecer às festas reahu a que somos convidados. Nela fazemos nossas expedições de caça e coleta. Os espíritos nela vivem e circulam por toda parte à nossa volta. Omama criou esta terra e aqui nos deu a existência. Pôs no seu chão as montanhas, para mantê-las no lugar e fez delas as casas dos xapiri, que deixou para que cuidassem de nós. É nossa terra e essas são palavras verdadeiras”[8].



[1]Maître DOGEN. Shôbôgenzô. La vrai Loi, Trésor de l´Oeil. Vannes, Sully, 2005 (Traduction intégrale, Tome 1 – par Yoko Orimo).
[2]Tim INGOLD. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2011.
[3]Ibidem, p. 121-124.
[4]Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2007, p. 257.
[5]Eduardo KOHN. How forests think: toward an anthropology beyond the human. Berkeley: University of California Press, 2013.
[6]Bruno LATOUR. Enquête sur les modes d´existence. Une anthropologie des Modernes. Paris: La Decouverte, 2012, p. 452; Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. O recado da mata (prefácio). Davi KOPENAWA E Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 35.
[7]Davi KOPENAWA E Bruce Albert. A queda do céu, p. 15.
[8]Ibidem, p. 331.

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