Em torno do boi e do pastor:
anotações de uma aula sobre a mística zen budista
Faustino Teixeira
Novembro/2016
O tema de minha recente aula
no curso de mística zen budista (17/11/2016) girou em torno das sete primeiras
figuras do boi e do pastor. A questão chave em toda reflexão: o desafio do
tornar-se verdadeiramente humano, na descoberta do verdadeiro si mesmo (Jiko).
Boa parte da aula desenvolveu-se em torno do magnífico texto de José Carlos
Michelazzo: Desapego e entrega: atitudes centrais da meditação zen-budista e
suas ressonâncias nos pensamentos de Eckhart e Heidegger. Pude constatar ao
preparar mais uma vez esse tema, como o texto de Michelazzo é essencial para
acessar o significado da prática do zazen, que já se inaugural na segunda
figura: o encontro dos rastros do boi.
A prática meditativa tem
importância substantiva no zen-budismo. Trata-se da meditação sentada (zazen),
que envolve uma palavra simples e dileta: simplesmente sentar (shikantaza).
Essa prática para Dôgen constituía o caminho de excelência, e todos os seus
capítulos do Shôbôgenzô constituíam “apenas notas de rodapé do zazen”.
A prática continua (Gyôji),
abordada num dos capítulos da grande obra de Dôgen, é a prática fundamental,
comum “a todos os seres do universo”. Ela indica a presença de uma “teia de
interdependência que faz com que todas as existências de todos os seres sejam
regidas por uma trama global, total, cósmica”. Com o olhar animado pela
“originação interdependente” o que podemos observar, por todo canto, é
simplesmente essa prática contínua.
Nessa teia ou malha de
interdependência cada ser está entregue, vivendo “tal como se é”. O peixe, por
exemplo, vive essa taleidade na relação natural com a água: “a plenitude da
vida do peixe é possibilitada por sua completa interpenetração com a água (…).
Os caminhos surgem para o peixe ao praticar o nado”.
O ser humano, “dentre todos os
seres, é o único que se esqueceu da teia cósmica, que perdeu a memória de sua
originação interdependente, de sua não dualidade. E por esse esquecimeno e
perda lhe é exigido um esforço difícil e contínuo para se entregar ao que
originalmente ele é e, assim, fazer o caminho de volta à sua própria casa”
(veja a sexta figura).
Trata-se do essencial
“retorno” mediante duas atitudes fundamentais: o desapego e a entrega. Isso
também nos faz lembrar Mestre Eckhart, citando o evangelho de Lucas: “Um homem
nobre partiu para uma terra distante, a fim de tomar posse de um reino, e
regressou” (Lc 19,12).
A prática meditativa
possibilita o desvelo desses dois binômios: desapego e entrega. Para além do
estado da vigília ou do sono, essa prática revela um estado novo, meditativo,
possibilitado pelo zazen. Como mostra Michelazzo, trata-se de um “exercício
bastante difícil” testemunhado pelos principiantes, e isto porque “a mente
quando colocada na postura de meditação procura reproduzir o seu típico padrão
binário de vigília-sono, isto é, ou ela ´quer` continua rem sua agitação ou,
caso contrario, é tragada pelo irresistível sono”.
O caminho do zazen passa pela
estratégi de “colocar o corpo em uma espécie de casulo”, favorecendo a
combinação de duas condições: imobilidade e relaxamento. Um estratégia que
faculta o aquietamento da mente. E o desafio maior está em “nada focalizar”,
com o recurso da concentração. E com o exercício da prática, uma concentração
“em nada, no vazio ou, como dizem os hindus, no sûnyata”. É o nobre momento da
atenção plena. Em todo o processo, o papel essencial da respiração.
Em todo esse trabalho, a
importância do mestre revela-se essencial. O praticante só consegue perseverar
na presença de um mestre. Como tão bem assinala Eugen Herrigel na sua obra, A
arte cavalheiresca do arqueiro zen, o mestre é aquele que fornece o exemplo da
“obra interior”. É alguém que “ensina o caminho”, deixando depois o discípulo
percorrer por si mesmo a via.
Com o tempo e a maturidade
espiritual o buscador dá o salto essencial, o que exige constância e
perseverança. Como indica Michelazzo:
“Existe também outra metáfora do zen que diz que sentar-se diante da parede em zazen é o mesmo que polir, polir, polir, a parede por muito tempo. Os primeiros lampejos da iluminação aparecem no dia em que a parede se torna vidro e pela transparência se vê coisas que estão do lado de for a do zendô. É preciso continuar a polir, pois, caso contrário, o vidro volta a se tornar parede. Caso o praticante continue a polir, um dia o vidro, de repente, se estilhaça e, aí, ele é envolvido imediata e diretamente com as coisas e os âmbitos de dentro e de for a do zendô desaparecem: é a iluminação. Sobre o momento inesperado em que se dará o estilhaçamento do vidro é algo envolto em mistério que sempre se mostra de forma fortuita ou contingente nas narrativas zen, sempre muito singulares para cada despertar: o toque de um sino ou a batida de uma porta, a repreensão enérgica de um mestre ou o barulho de uma tigela se partindo ao chão, etc. Tais eventos que sempre têm algo de natureza tangível, concreta e até mesmo banal, parecem desempenhar um papel semelhante à de um gatilho ou de uma centelha, ou seja, tem a função de disparar um acontecimento cujas condições para o seu aparecimento estariam perfeitamente entrelaçadas, à espera somente de apenas mais uma única condição. Daí seu caráter abrupto, repentino”.
“Existe também outra metáfora do zen que diz que sentar-se diante da parede em zazen é o mesmo que polir, polir, polir, a parede por muito tempo. Os primeiros lampejos da iluminação aparecem no dia em que a parede se torna vidro e pela transparência se vê coisas que estão do lado de for a do zendô. É preciso continuar a polir, pois, caso contrário, o vidro volta a se tornar parede. Caso o praticante continue a polir, um dia o vidro, de repente, se estilhaça e, aí, ele é envolvido imediata e diretamente com as coisas e os âmbitos de dentro e de for a do zendô desaparecem: é a iluminação. Sobre o momento inesperado em que se dará o estilhaçamento do vidro é algo envolto em mistério que sempre se mostra de forma fortuita ou contingente nas narrativas zen, sempre muito singulares para cada despertar: o toque de um sino ou a batida de uma porta, a repreensão enérgica de um mestre ou o barulho de uma tigela se partindo ao chão, etc. Tais eventos que sempre têm algo de natureza tangível, concreta e até mesmo banal, parecem desempenhar um papel semelhante à de um gatilho ou de uma centelha, ou seja, tem a função de disparar um acontecimento cujas condições para o seu aparecimento estariam perfeitamente entrelaçadas, à espera somente de apenas mais uma única condição. Daí seu caráter abrupto, repentino”.
E o mais interessante nisto
tudo é que o buscador, depois do despertar, RETORNA.
“Como qualquer escalada em uma
grande montanha, após todos os acontecimentos estonteantes e incomuns
pertinentes ao sucesso da experiência, é preciso descer. No caso do meditador
desperto é imprescindível voltar ao cotidiano, ao mundo da dualidade, mas a
experiência da não-dualidade deixará nele uma marca indelével que doravante o
afetará por toda a sua existência na forma de um dejà vu que nunca mais poderá afastá-lo da experiência de ter-se
percebido em um todo não-dual com o Universo. Essa marca o colocará em um
estado de constante atenção em suas atividades simples e rotineiras de seu dia
a dia protegendo-o de seus antigos apegos, colocando-o em um estado de constant
´desprendimento de categorias, eventos e doisas dualísticas que nossas
percepçoes e intelecto criam`”.
…
Outro texto essencial também
em torno das dez clássicas imagens do zen: Shizuteru Ueda. O nada absoluto no
zen em Eckhart e em Nietzsche. É um texto muito denso, cuja leitura deve ser
feita com atenção e zelo. A tradução brasileira saiu na Revista Natureza Humana
10 (1): 165-202, jan-jun de 2008.
O texto aborda as questões
relacionadas a uma antiga história zen, do boi e do pastor, que trata do
processo de auto-realização humana em dez estações.
É um texto propício para aqueles
que buscam entender as três últimas estações, que correspondem as três últimas
imagens da história.
A oitava imagem apresenta o
círculo vazio, símbolo do zen. Uma imagem desvestida de boi e de pastor. O tema
é o do nada absoluto, daí sua analogia com o pensamento de Eckhart. Esse nada
não quer dizer vazio inexistente, mas um vazio pleno de tudo, que traduz o
humano libertado de todo pensamento substancializado. É quando se dissipa a
ideia do "eu sou eu". Como mostrou com acerto Hisamatsu (1889-1980),
discípulo de Nishida, o vazio (ou nada) do budismo zen revela o coração desta
tradição, o núcleo essencial do zen.
Como indica Ueda, este
"eu sou eu" vem marcado por uma tripla intoxicação: ódio contra os
outros; cegueira elementar e cobiça.
O verdadeiro si mesmo é
marcado pelo despojamento de si mesmo.O caminho que vai da primeira à sétima
figura aponta "o processo de desprendimento do eu-sou-eu".
A oitava figura, que é
fundamental, conduz ao SALTO decisivo, que é o "salto ao nada absoluto,
aonde não há mais nem pastor que procura nem boi que é procurado, nem homem nem
Buda, nem dualidade nem unidade".
É o momento chave da irrupção
do verdadeiro si-mesmo, que corresponde ao incondicional despojamento de si
mesmo. É o momento do "grande morrer" (que no sufismo vem entendido
como "morrer antes de morrer"). Nesse oitavo passo não há mais
apegos, nem mesmo religiosos. E o buscador vem provocado a não se sentir bem
nem mesmo "onde o Buda mora". Vem comvocado a passar "depressa
pelo lugar onde não mora mais nenhum Buda".
O nada que se encontra, então,
é o nada da "dissolução do pensamento substancial". Com base em
Goethe, podemos dizer que esse momento é aquele do devenir: "morre e
advém!". É a partir desse vazio que ocorre a "ressurreição",
esta "mudança radical da absoluta negação para o grande ´sim`". O
verdadeiro si-mesmo vem agora representado, na nona estação, com a imagem da
árvore em florescência à beira do rio. Tudo muito singelo. Como diz Ueda:
"O florescer da árvore, o fluir da água, é aqui, portanto, assim como
acontece, ao mesmo tempo um jogar da liberdade despojada do si-mesmo".
Há uma co-pertença entre o
"nada" da oitava estação e o "simples" da nona estação:
penetram-se reciprocamente.
Na última e derradeira estação
há um ENCONTRO precioso. Agora, "o verdadeiro si-mesmo, ressuscitado do
nada, age e joga entre homem e homem como uma dinâmica despojada do ´entre`.
Neste caso esse ´entre` é, agora, o próprio campo de ação, o campo interno de
ação do si-mesmo, ou também: o si-mesmo que, cortado, aberto pelo nada
absoluto, se desenvolve com o ´entre`".
Os dois interlocutores, o
velho (ressuscitado do nada) e o jovem inclinam-se mutuamente. Algo precioso,
que vai para além de uma simples cortesia. A inclinação expressa o movimento em
direção ao nada, na profundidade da ausência de fundamento, rompendo com as
cadeias do ego. A relação eu-tu ganha assim um lugar distinto, uma vez que
procede de uma penetração no nada do nem-eu e nem-tu.
A imagem do velho que pertence
a uma geração desconhecida (ou seja, do nada absoluto) é preciosa nessa décima
estação. O iluminado não se reserva a uma experiência de esplendor, mas ele
desce ao mercado, com a consciência viva das coisas mais simples: suas
perguntas são do âmbito do cotidiano. Como assinala Ueda, "o verdadeiro
si-mesmo, no encontro com outras pessoas, não habita o chamado ´nirvana`e sim a
TÃO PERCORRIDA ESTRADA DO MUNDO, responsável por muitos encontros, porém sem
abandonar o nada absoluto". Ele traz consigo o nada absoluto... sempre.
Muito interessante, com a
décima estação não se fecha um ciclo, mas indica o início de um novo ciclo:
abre-se agora para o jovem que se inclina para o velho um caminho a seguir:
"A 10ª estação não é, portanto, o fechamento e sim o início da primeira
estação para um outro, para um jovem que o velho, em seu ´entre`, aberto,
encontrou e que por suas perguntas é despertado para o verdadeiro
si-mesmo".
Belíssimo texto! Há reflexões diversas depois de uma leitura cuidadosa. Obrigada Professor.
ResponderExcluirMaria AparecdaMautoni