sábado, 19 de novembro de 2016

Em torno do boi e do pastor. Anotações a partir de uma aula sobre a mística zen budista

Em torno do boi e do pastor: anotações de uma aula sobre a mística zen budista

Faustino Teixeira
Novembro/2016


O tema de minha recente aula no curso de mística zen budista (17/11/2016) girou em torno das sete primeiras figuras do boi e do pastor. A questão chave em toda reflexão: o desafio do tornar-se verdadeiramente humano, na descoberta do verdadeiro si mesmo (Jiko). Boa parte da aula desenvolveu-se em torno do magnífico texto de José Carlos Michelazzo: Desapego e entrega: atitudes centrais da meditação zen-budista e suas ressonâncias nos pensamentos de Eckhart e Heidegger. Pude constatar ao preparar mais uma vez esse tema, como o texto de Michelazzo é essencial para acessar o significado da prática do zazen, que já se inaugural na segunda figura: o encontro dos rastros do boi.

A prática meditativa tem importância substantiva no zen-budismo. Trata-se da meditação sentada (zazen), que envolve uma palavra simples e dileta: simplesmente sentar (shikantaza). Essa prática para Dôgen constituía o caminho de excelência, e todos os seus capítulos do Shôbôgenzô constituíam “apenas notas de rodapé do zazen”.

A prática continua (Gyôji), abordada num dos capítulos da grande obra de Dôgen, é a prática fundamental, comum “a todos os seres do universo”. Ela indica a presença de uma “teia de interdependência que faz com que todas as existências de todos os seres sejam regidas por uma trama global, total, cósmica”. Com o olhar animado pela “originação interdependente” o que podemos observar, por todo canto, é simplesmente essa prática contínua.

Nessa teia ou malha de interdependência cada ser está entregue, vivendo “tal como se é”. O peixe, por exemplo, vive essa taleidade na relação natural com a água: “a plenitude da vida do peixe é possibilitada por sua completa interpenetração com a água (…). Os caminhos surgem para o peixe ao praticar o nado”.

O ser humano, “dentre todos os seres, é o único que se esqueceu da teia cósmica, que perdeu a memória de sua originação interdependente, de sua não dualidade. E por esse esquecimeno e perda lhe é exigido um esforço difícil e contínuo para se entregar ao que originalmente ele é e, assim, fazer o caminho de volta à sua própria casa” (veja a sexta figura).

Trata-se do essencial “retorno” mediante duas atitudes fundamentais: o desapego e a entrega. Isso também nos faz lembrar Mestre Eckhart, citando o evangelho de Lucas: “Um homem nobre partiu para uma terra distante, a fim de tomar posse de um reino, e regressou” (Lc 19,12).

A prática meditativa possibilita o desvelo desses dois binômios: desapego e entrega. Para além do estado da vigília ou do sono, essa prática revela um estado novo, meditativo, possibilitado pelo zazen. Como mostra Michelazzo, trata-se de um “exercício bastante difícil” testemunhado pelos principiantes, e isto porque “a mente quando colocada na postura de meditação procura reproduzir o seu típico padrão binário de vigília-sono, isto é, ou ela ´quer` continua rem sua agitação ou, caso contrario, é tragada pelo irresistível sono”.

O caminho do zazen passa pela estratégi de “colocar o corpo em uma espécie de casulo”, favorecendo a combinação de duas condições: imobilidade e relaxamento. Um estratégia que faculta o aquietamento da mente. E o desafio maior está em “nada focalizar”, com o recurso da concentração. E com o exercício da prática, uma concentração “em nada, no vazio ou, como dizem os hindus, no sûnyata”. É o nobre momento da atenção plena. Em todo o processo, o papel essencial da respiração.

Em todo esse trabalho, a importância do mestre revela-se essencial. O praticante só consegue perseverar na presença de um mestre. Como tão bem assinala Eugen Herrigel na sua obra, A arte cavalheiresca do arqueiro zen, o mestre é aquele que fornece o exemplo da “obra interior”. É alguém que “ensina o caminho”, deixando depois o discípulo percorrer por si mesmo a via.

Com o tempo e a maturidade espiritual o buscador dá o salto essencial, o que exige constância e perseverança. Como indica Michelazzo:

“Existe também outra metáfora do zen que diz que sentar-se diante da parede em zazen é o mesmo que polir, polir, polir, a parede por muito tempo. Os primeiros lampejos da iluminação aparecem no dia em que a parede se torna vidro e pela transparência se vê coisas que estão do lado de for a do zendô. É preciso continuar a polir, pois, caso contrário, o vidro volta a se tornar parede. Caso o praticante continue a polir, um dia o vidro, de repente, se estilhaça e, aí, ele é envolvido imediata e diretamente com as coisas e os âmbitos de dentro e de for a do zendô desaparecem: é a iluminação. Sobre o momento inesperado em que se dará o estilhaçamento do vidro é algo envolto em mistério que sempre se mostra de forma fortuita ou contingente nas narrativas zen, sempre muito singulares para cada despertar: o toque de um sino ou a batida de uma porta, a repreensão enérgica de um mestre ou o barulho de uma tigela se partindo ao chão, etc. Tais eventos que sempre têm algo de natureza tangível, concreta e até mesmo banal, parecem desempenhar um papel semelhante à de um gatilho ou de uma centelha, ou seja, tem a função de disparar um acontecimento cujas condições para o seu aparecimento estariam perfeitamente entrelaçadas, à espera somente de apenas mais uma única condição. Daí seu caráter abrupto, repentino”.

E o mais interessante nisto tudo é que o buscador, depois do despertar, RETORNA.

“Como qualquer escalada em uma grande montanha, após todos os acontecimentos estonteantes e incomuns pertinentes ao sucesso da experiência, é preciso descer. No caso do meditador desperto é imprescindível voltar ao cotidiano, ao mundo da dualidade, mas a experiência da não-dualidade deixará nele uma marca indelével que doravante o afetará por toda a sua existência na forma de um dejà vu que nunca mais poderá afastá-lo da experiência de ter-se percebido em um todo não-dual com o Universo. Essa marca o colocará em um estado de constante atenção em suas atividades simples e rotineiras de seu dia a dia protegendo-o de seus antigos apegos, colocando-o em um estado de constant ´desprendimento de categorias, eventos e doisas dualísticas que nossas percepçoes e intelecto criam`”.


Outro texto essencial também em torno das dez clássicas imagens do zen: Shizuteru Ueda. O nada absoluto no zen em Eckhart e em Nietzsche. É um texto muito denso, cuja leitura deve ser feita com atenção e zelo. A tradução brasileira saiu na Revista Natureza Humana 10 (1): 165-202, jan-jun de 2008.

O texto aborda as questões relacionadas a uma antiga história zen, do boi e do pastor, que trata do processo de auto-realização humana em dez estações.

É um texto propício para aqueles que buscam entender as três últimas estações, que correspondem as três últimas imagens da história.

A oitava imagem apresenta o círculo vazio, símbolo do zen. Uma imagem desvestida de boi e de pastor. O tema é o do nada absoluto, daí sua analogia com o pensamento de Eckhart. Esse nada não quer dizer vazio inexistente, mas um vazio pleno de tudo, que traduz o humano libertado de todo pensamento substancializado. É quando se dissipa a ideia do "eu sou eu". Como mostrou com acerto Hisamatsu (1889-1980), discípulo de Nishida, o vazio (ou nada) do budismo zen revela o coração desta tradição, o núcleo essencial do zen.

Como indica Ueda, este "eu sou eu" vem marcado por uma tripla intoxicação: ódio contra os outros; cegueira elementar e cobiça.
O verdadeiro si mesmo é marcado pelo despojamento de si mesmo.O caminho que vai da primeira à sétima figura aponta "o processo de desprendimento do eu-sou-eu".

A oitava figura, que é fundamental, conduz ao SALTO decisivo, que é o "salto ao nada absoluto, aonde não há mais nem pastor que procura nem boi que é procurado, nem homem nem Buda, nem dualidade nem unidade".

É o momento chave da irrupção do verdadeiro si-mesmo, que corresponde ao incondicional despojamento de si mesmo. É o momento do "grande morrer" (que no sufismo vem entendido como "morrer antes de morrer"). Nesse oitavo passo não há mais apegos, nem mesmo religiosos. E o buscador vem provocado a não se sentir bem nem mesmo "onde o Buda mora". Vem comvocado a passar "depressa pelo lugar onde não mora mais nenhum Buda".

O nada que se encontra, então, é o nada da "dissolução do pensamento substancial". Com base em Goethe, podemos dizer que esse momento é aquele do devenir: "morre e advém!". É a partir desse vazio que ocorre a "ressurreição", esta "mudança radical da absoluta negação para o grande ´sim`". O verdadeiro si-mesmo vem agora representado, na nona estação, com a imagem da árvore em florescência à beira do rio. Tudo muito singelo. Como diz Ueda: "O florescer da árvore, o fluir da água, é aqui, portanto, assim como acontece, ao mesmo tempo um jogar da liberdade despojada do si-mesmo".

Há uma co-pertença entre o "nada" da oitava estação e o "simples" da nona estação: penetram-se reciprocamente.

Na última e derradeira estação há um ENCONTRO precioso. Agora, "o verdadeiro si-mesmo, ressuscitado do nada, age e joga entre homem e homem como uma dinâmica despojada do ´entre`. Neste caso esse ´entre` é, agora, o próprio campo de ação, o campo interno de ação do si-mesmo, ou também: o si-mesmo que, cortado, aberto pelo nada absoluto, se desenvolve com o ´entre`".

Os dois interlocutores, o velho (ressuscitado do nada) e o jovem inclinam-se mutuamente. Algo precioso, que vai para além de uma simples cortesia. A inclinação expressa o movimento em direção ao nada, na profundidade da ausência de fundamento, rompendo com as cadeias do ego. A relação eu-tu ganha assim um lugar distinto, uma vez que procede de uma penetração no nada do nem-eu e nem-tu.

A imagem do velho que pertence a uma geração desconhecida (ou seja, do nada absoluto) é preciosa nessa décima estação. O iluminado não se reserva a uma experiência de esplendor, mas ele desce ao mercado, com a consciência viva das coisas mais simples: suas perguntas são do âmbito do cotidiano. Como assinala Ueda, "o verdadeiro si-mesmo, no encontro com outras pessoas, não habita o chamado ´nirvana`e sim a TÃO PERCORRIDA ESTRADA DO MUNDO, responsável por muitos encontros, porém sem abandonar o nada absoluto". Ele traz consigo o nada absoluto... sempre.


Muito interessante, com a décima estação não se fecha um ciclo, mas indica o início de um novo ciclo: abre-se agora para o jovem que se inclina para o velho um caminho a seguir: "A 10ª estação não é, portanto, o fechamento e sim o início da primeira estação para um outro, para um jovem que o velho, em seu ´entre`, aberto, encontrou e que por suas perguntas é despertado para o verdadeiro si-mesmo".

Um comentário:

  1. Belíssimo texto! Há reflexões diversas depois de uma leitura cuidadosa. Obrigada Professor.
    Maria AparecdaMautoni

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