segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A mística nos rastros do cotidiano

 A mística nos rastros do cotidiano

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

1.    Como podemos compreender o que é a mística?

Buscando sua derivação etimológica, a mística vem de myein, que significa fechar os olhos e os lábios, daí também a possibilidade de outra transposição metafórica que indica a ideia de iniciação: mystes (iniciado) ou mystikôs (que diz respeito à iniciação). Buscando captar o seu sentido original, Henrique Cláudio de Lima Vaz, em sua obra Experiência mística e filosofia na tradição occidental (Loyola, 2000), indica que tanto o termo como seus derivados dizem respeito “a uma forma superior de experiência, de natureza religiosa, ou religioso-filosófica (Plotino), que se desenrola normalmente num plano transracional – não aquém, mas além da razão -, mas por outro lado, mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do indivíduo”. A experiência mística faculta a possibilidade de uma presença que é proximidade que fala, e que desloca o sujeito de sua inserção superficial. São janelas que se abrem, permitindo um novo respiro, no lugar mesmo onde o sujeito se situa. Algo decisivo acontece, indissociado de um lugar, de um encontro, de uma leitura, que transfigura o coração, redimensiona a visão e transforma a vida. Trata-se de uma experiência iluminadora, mas sobretudo portadora de uma liberdade essencial, que transporta o sujeito para além dos limites indizíveis que rompem o cerco dos textos e instituições ortodoxas, podendo ocorrer também fora da crenças. Quem passa por tal experiência é envolvido por uma singular voracidade de penetrar os meandros do real e atravessar os umbrais da vida, num “desaforado amor pelo todo” (M.Zambrano). Sem negar seu traço de interioridade e recolhimento, a experiência mística não se traduz em reclusão, mas envolve a abertura dos olhos , uma inserção distinta no cotidiano, na vida concreta do dia a dia, a única que “Deus ama na sua totalidade” (J.Moltmann).

2.    O que caracteriza uma experiência dessa natureza?

A experiência mística, como bem mostrou Michel de Certeau, envolve paradoxos. Ela acontece na experiência real, mas revela também a “visita” de “algo não natural” que irrompe e quebra a mesmidade do sujeito, arrancando-o de sua egoicidade, desvelando-lhe novos horizontes. Tem uma dimensão visível, mas que aporta a algo de misterioso e inefável, produzindo estupefação. Os exemplos ajudam a caracterizar tal experiência. Um caso singular se deu com Thomas Merton, um dos mais singulares monges trapistas de nosso tempo. Uma das experiências mística que relata em sua obra, Reflexões de um espectador culpado (1966), ocorreu num centro comercial, em Louisville (EUA), em meio ao tumulto do cotidiano, quando então se dá conta de que toda aquela gente compunha o universo de sua “solidão”. Seus olhos se abrem para perceber, subitamente, que “amava toda aquela gente”. Desperta para a compreensão de que a vida monastica não pode significar “separação do mundo”, mas envolvimento no canto das coisas. Descobre que na dimensão profunda do humano há um “ponto virgem”, que revela a intimidade de cada um, um “pontinho de nada” que traduz “a pura glória de Deus em nós”. Outro interessante relato vem de André Comte-Sponville, em sua obra O espírito do ateísmo (2007). Descreve que numa noite, numa floresta do norte da França, com idade de 25 anos, caminhava com amigos pelo campo, despretenciosamente. Os pensamentos eram fugidios, simplesmente olhava e escutava o que via em seu redor. O cenário era propício: a “incrível luminosidade do céu” e o “silêncio rumoroso da floresta”. Ali, naquele lugar, foi tocado pela deslumbrante “presença de tudo”. Uma surpresa, uma evidência, uma felicidade que se mostrava infinita, regadas por paz novidadeira. Algo muito simples, mas essencial: “nada além da apresentação silenciosa de tudo (…). Nada além do real”. Foram momentos breves, como tende a acontecer com tais experiências, mas preenchidos de uma alegria infinita, trazendo ao coração os traços dessa evidência: “tão somente o real”. Mas a experiência provocou mudanças na relação com o tempo, como indicou Comte-Sponville, em particular uma “abertura para o presente, para o tempo que passa e fica, para a eternidade do devir, para a impermanência perene de tudo…”.

3.    Como ela se apresenta no nosso cotidiano?

Não somos nós que a buscamos, isso pode até ocorrer – em certo sentido, mas é algo que nos toma, que nos invade, que “sem causa escorre pelo céu” – para utilizar uma linda expressão de meu amigo L.F.Pondé -, e nos povoa com os traços da Misericórdia de um Mistério inusitado, cuja substância é de difícil apreensão. O grande místico Bernardo de Claraval dizia num de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos, que o tempo que envolve tal experiência é curto, tendo uma duração bem definida: “rara hora et parva mora” (rara hora e breve tempo). E não poderia durar mais, pois vem envolvida por intensa doçura, combinada com tremor e espanto. Ernesto Cardenal comenta sobre esse “segundo” que impacta o sujeito, forçando-o a gritar “basta, basta!”. O sujeito vem invadido por um gozo intenso, mas que não dá conta. A alma vem “penetrada de uma doçura tão intensa que se transforma em dor, uma dor indescritível, como algo agridoce que fosse infinitamente amargo e infinitamente doce”. Tudo tem o toque e a força da Experiência, que acontece como um “beijo espiritual” inaudito e precioso, só verdadeiramente captado com o código do coração, ou melhor, com o movimento do coração, como indica Bernardo em seu sermão sobre o Cântico dos Cânticos, de n  ro﷽﷽﷽﷽﷽﷽m seu redor. O cenlocoermraçnitamente amargo e infinitamente doce" "devir, para a imperman via em seu redor. O cenlocoúmero 74.


4.    Que mudanças a mística foi assumindo com o passar do tempo?

Na tradição ocidental, temos o caminho da mística especulativa, que é uma mística do conhecimento, ou essencial (Wesensmystique). Ela tem suas raízes no neoplatonismo, com ênfase especial em Plotino, mas também em Porfírio. Desdobra-se na mística cristã, num complexo itinerário, passando pelos alexandrinos, Clemente e Orígenes (séc. III), e o grande capadócio, que foi Gregório de Nissa (séc. IV), até chegar na importante obra de Pseudo-Dionísio, que vai ter um grande influxo na configuração conceptual e terminológica da mística especulativa cristã. Nos séculos XIV e XV, essa mística especulativa terá um vigoroso crescimento, ressaltando-se sua presença em autores fundamentais da mística renana,  como Eckhart e Tauler, ou outros da mística flamenga.  Como indica Cláudio de Lima Vaz, vigora aí uma importante influência dos escritos pseudodionisianos e dos temas neoplatônicos. No centro dos debates, “o problema do conhecimento do Absoluto, da sua possibilidade, das suas condições, dos seus modos e da expressão do seu objeto”. Ao lado dessa mística especulativa, a presença também de uma mística esponsal ou nupcial (Brautmystique), com um traço mais afetivo, voltada em particular para o tema da contemplação unitiva, da união entre amante a Amado. É uma tradição mística muito vinculada à interpretação alegórica do Cântico dos Cânticos, que bebe na matriz de Orígenes, firmando-se na mística medieval, com Bernardo e outros autores da tradição cisterciense, alcançando seu apogeu simbólico-doutrinal na mística espanhola de João da Cruz e Teresa de Ávila. Pode-se ainda destacar uma mística profética, não necessariamente desligada das duas outras formas anteriores, fundada na audição da Palavra, que dá centralidade ao caminho do ágape (1 Cor 13,2-3). Em seu desdobramento, uma mística de engajamento no tempo, que hoje vem expressa como “mística de olhos abertos” (J.B.Metz).

5. Qual é a pertinência e os desafios da mística dado o tipo de
sociedade ocidental na qual vivemos, individualista e focada na posse de
bens materiais?

Não há dúvida sobre o efeito crítico exercido pela experiência mística sobre os caminhos da sociedade ocidental, fundada em outros valores, como a competitividade, a produtividade, o consumismo e a centralidade no mundo egoico. A mística e a espiritualidade suscitam valores distintos, que dizem respeito a qualidades do espírito humano, que em nosso tempo estão embaçadas ou obstruídas. São valores essenciais como o amor desinteressado, a compaixão, a atenção, a hospitalidade, o cuidado, a delicadeza, a paciência e a abertura ao outro. O cultivo da espiritualidade, entendida como movimento e caminho para a experiência do Real, exige do sujeito uma dinâmica particular de despojamento e interiorização. Há que romper com um modo habitual e rotineiro de ser e deixar-se tocar pelos apelos da profundidade. Não se trata de uma viagem tranquila, mas uma “saída” para dentro de si mesmo, e um retornar ao tempo transformado. Os grandes mestres espirituais assinalam que essa viagem interior, apesar de árdua e desgastante, revela surpresas inesperadas. Ela requer disposições precisas, e um radical exercício de despojamento, humildade e purificação do coração, Não há como viver a intensidade da experiência senão deslocando o ego de sua centralidade, com a afirmação de sua vulnerabilidade e limite. Como tão bem sinalizou Eckchar, em seu sermão alemão de número 1, “quanto mais a alma chega ao fundo e no mais íntimo de seu ser, tanto mais a força divina nela se derrama plenamente e opera veladamente de maneira a revelar grandes obras”. Em belíssimo livro sobre a espiritualidade dos sentidos vigilantes (2006), Jürgen Moltmann fala da importância dos espaços de silêncio e recolhimento para que o buscador possa preparar os sentidos para o exercício de abertura aos traços de beleza que compõem o mundo circundante. Assim como a tradição judaica ensina a observar o sábado, a repousar no sétimo dia, assim também o buscador é convidado a fazer esse “trabalho de cela” , de modo a favorecer uma melhor sintonia com as surpresas do Mistério que se espraiam em toda a criação. Em seus últimos anos de vida, recolhido em seu eremitério, Merton aprendeu também sobre isso com a natureza. Ela também precisa de repouso e recuperação na noite para poder ressurgir com vida na aurora. Assim também com a natureza humana, que precisa do “espírito da noite”, da “aragem da aurora”, da passividade e repouso para poder assumir-se como si mesma.

6. Acredita que, por vezes, estamos de olhos fechados para o Mistério e
para a beleza da Criação que nos cercam? Por quê?

Os grandes místicos nos recordam sempre disto. Thomas Merton, ao tratar do “ponto virgem” que habita cada ser humano, fala da presença do paraíso entre nós, apesar de nosso desconhecimento. E não escutamos esse “canto” pelo fato de nossos corações estarem bloqueados por camada espessa de indiferença ou apatia. Teilhard de Chardin também nos lembra disso ao sublinhar que “nada é profano, aqui em baixo, para quem sabe ver”. É no tempo, no cotidiano, que o canto do mistério se faz presente. É um grande equívoco pensar que o tempo passado em qualquer de nossos espaços vivenciais, seja no trabalho, na festa, na casa, na luta, nos encontros, seja uma “subtração da adoração”. Ao contrário, é ali, nesse caldo de vida, que o Mistério está presente e mostra o seu rosto. Como indica Teilhard, é o próprio céu que nos sorri e nos atrai em nossa operosidade no mundo. A nossa presença e nossa atenção ao real que nos circunda é, efetivamente, a continuação de nossa “imersão em Deus”.

7. Em que medida a delicadeza do mistério oferece chaves de compreensão
e relação com a obra divina e com a vida em suas mais variadas formas?

O mistério é o sempre-já-aí, com seus traços infinitos de delicadeza e abertura. Na apresentação de um dos livros que organizei sobre mística, em 2006, falava da escolha do título: “Nas teias da delicadeza”. Na tradição mística islâmica, a delicadeza é um dos nomes de Deus: Al-Latîf. O Deus gracioso, terno, delicado, em cujas malhas nos encontramos enredados. A sintonia com esse “Deus delicadeza” provoca em nós o desafio fundamental de traduzir em nossa vida algo semelhante: o cuidado e a salvaguarda da criação; o respeito pela alteridade, por sua dignidade singular; o exercíco de atenção e escuta ao ritmo do tempo, aos seus desafios.

8. Em outra entrevista à nossa publicação, o senhor fala que aquele que
está aberto ao Mistério é o ser cuja meta “é ‘atravessar os umbrais
da vida’ e penetrar na tessitura do tempo, e de forma radical”. Como
podemos compreender esse atravessamento e essa entrada em uma outra
forma de existir?

Esse é um tema muito presente nos trabalhos de Maria Zambrano, essa grande pensadora de Málaga (Espanha). Num de seus lindos textos sobre a mística de João da Cruz, ela usa a imagem da alma que se consome, que se devora, para dar lugar a algo novo. Como exemplo, toma emprestada uma imagem do mundo biológico, da crisálida que desfaz seu casulo onde jaz adormecida, para sair voando em liberdade; da crisálida que devora seu próprio corpo para transformá-lo em asas. Assim também ocorre com os místicos, em sua sede de liberdade e busca ardente do Mistério. Eles também ousam “atravessar os umbrais da vida”, tendo que passar pela “noite escura”, dobrando resistências e impedimentos. Mas seu “amor pelo todo” é mais forte, é voraz. Assim como a crisálida, eles devem passar por certa “morte do eu”, por uma “fecunda destruição”, de modo a facultar um espaço garantido e especial para a hospedagem de um outro. Trata-se, na verdade de uma “morte” vicejante, que suscita criação e vida. Não se trata de um abandono da realidade, como muitos pensam, mas de um adentrar-se em sua espessura. Daí reconhecer, com João da Cruz, em seu Cântico, que o horizonte tão aguardado pela amada em sua busca itinerante não é o nada ou o vazio, mas a integral e viva presença das coisas, com toda a sua densidade: as montanhas, os vales nemorosos, os rios sonorosos, os ares amorosos e os suaves raios da aurora.

9. Que místicos(as) destacaria como emblemáticos para pensarmos um
outro modo de compreender o Universo e a Criação, em si?

Já mencionei alguns místicos importantes para pensar essa mística do cotidiano, entre os quais Teilhard de Chardin e Thomas Merton. Mas gostaria também de nomear um nome singular, da mística zen, o grande mestre Dogen (1200-1253). Em contato com suas obras, em particular no Shobogenzô, pude captar com muita clareza e precisão o valor e o significado da experiência da vida. Para ele, o acesso à compreensão do caminho de Buda passa não só pelo “esquecimento de si”, mas também pela acolhida calorosa dos dons oferecidos por cada instante de nossa vida. Como um de seus lemas essenciais: “deixar-se abrigar por todas as coisas do universo”. Toda a tradição budista Mahayana, da qual faz parte, reconhece a vida como aquilo que é mais essencial. Daí a importância do cuidado, da delicadeza e atenção para com o presente, em todos os seus detalhes, em cada um de seus instantes. Assim em Dogen, como em todos os outros grandes místicos, das distintas filiações espirituais, essa percepção profunda da realidade natural pressupõe um trabalho de interiorização, um exercício de aperfeiçoamento do olhar, de forma a poder perceber essa “ressonância” do universo.

10. Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Sim, algo que pude refletir a partir das reflexões tecidas por Pablo Beneito Arias num curso dado nesse segundo semestre no PPCIR da UFJF, sobre o pensamento místico de Ibn´Arabi de Murcia.  O tema trabalhado foi a questão dos nomes de Deus no sufismo. Em sua segunda aula, trabalhou com maestria a polaridade presente em Ibn ´Arabi entre Khalq e Haqq. A primeira expressão, Khalq, traduz a natureza e a criação, ou melhor, a realidade criatural. A outra expressão, Haqq, traduz a realidade suprema, o verdadeiramente real, a divina realidade. Para Ibn ´Arabi, todas as coisas provêm de Deus e todas elas manifestam Deus. Todas são sinais de Deus. Na verdade, para o grande mestre andaluz, não há existente algum fora de Deus, ou de seu hálito misericordioso. A ideia de uma criação auto-subsistente é para ele inconcebível. Em si mesma ela é “não existente”, pois ganha sua existência do verdadeiramente real. De acordo com a ontologia akbariana (de Ibn ´Arabi) o mundo da existência é uma auto-manifestação do Absoluto, e nada do que existe no mundo está desligado desta auto-manifestação. Há que saber ler o que há no mundo com os olhos do real, esta é a grande pista lançada pelos místicos sufis: lavar o rosto e as mãos nas águas desse lugar, de forma a poder ver o real que subjaz na realidade. É o que diz Rûmî de forma tão bonita. Se conseguimos ver a realidade com a luz do real, não há razões para o pessimismo. Isso não significa fechar os olhos para as dores do mundo, a impermanência que vigora, os desgastes da compaixão. Mas é saber transfigurar a dor e ver um horizonte para além do samsara, mas que permeia e atravessa o sansara. Na ocular de Ibn´Arabi significa captar o Khalq com os olhos de Haqq. O pessimista prende-se na circularidade do Khalq, sendo incapaz de despojar-se dessa negatividade, de forma a poder ver as brasas que atuam de forma invisível nas cinzas que predominam. Esse é o grande desafio apontado por Pablo Beneito no início de seu curso, e que provocou grande atenção e comoção entre todos nós. Reflexões que me fizeram lembrar o lindo livro de Lia Azam Zanganeh, O encantador – Nabokov e a felicidade (2013), e a rica abordagem sobre a busca de luz e cores nesse mundo de sombras. É o desafio, difícil, de captar a presença do outro mundo que nos rodeia, mesmo diante de tanta intransparência e dor. Saber, sim, velejar com alegria pelas frestas que escapam dessas sombras, suscitando luzes e cores inauditas, que apontam para um “lado reverso”, de “textura magnífica”.

(Publicado na Revista do IHU Online, n. 435, Ano XIII, 16/12/2013 )



Um comentário:

  1. Olá Professor, sou estudante de filosofia da UFBA. O tema "mística" me interessa bastante e pretendo abordar algo na monografia que retrate a mística. Estou iniciando meus estudos em Plotino pela sua proximidade com a mística. Encontro a dificuldade da aceitação do tema no meio acadêmico, mas, não desisto na pesquisa. O seu Blog é ótimo! Parabens! Gostaria de seu e-mail para contato e troca de ideias, já que são raros os pesquisadores do tema no Brasil (principalmente fora da vida religiosa). Desde já Obrigado!

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