segunda-feira, 8 de julho de 2013

Ciências da Religião e Teologia


Ciências da Religião e Teologia


Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

Palavras chave: Teologia; Ciências da Religião; Ciências Sociais; Teologia Pública; Igreja; Sociedade; Pluralismo; Religiões; História;Vida


Introdução

As novas e provocadoras reflexões em torno de uma teologia pública reconfiguram o complexo debate envolvendo as ciências da religião e a teologia. Resistências quanto à presença da teologia no âmbito da universidade, entendida como disciplina acadêmica, começam a se arrefecer, tendo em vista os novos delineamentos proporcionados pela reflexão teológica. Como indica Rudolf von Sinner, “falar de teologia pública é algo que serve para uma reflexão apurada sobre o papel da religião no mundo contemporâneo, na política, na sociedade, na academia, como reflexão construtiva, crítica e autocrítica das próprias igrejas, comunicando-se com outros saberes e com o mundo real”[1]. Trata-se de uma reflexão que vem se firmando nos vários continentes, e também no Brasil, com a criação de novos espaços de presença crítica da teologia, com “propriedade científica”, incluindo um diálogo inovador na universidade, com traços novidadeiros de interdisciplinaridade.

Configurações e desafios das ciências da religião

            O campo de estudo das religiões tem sido objeto de reflexão de dois grupos de pesquisadores, os teólogos e os cientistas sociais.  Desde a segunda metade do século XIX surge a Ciência da Religião, entendida como “matéria acadêmica institucionalizada nas universidades europeias”, facultando um aprofundamento do “saber sobre as religiões”[2]. Apesar dos esforços realizados no sentido de dar coerência e consistência aos estudos realizados nesse novo campo disciplinar, verifica-se ainda ausência de clareza epistemológica. Na visão de Pierre Gisel, quando se diz ciência da religião há incertezas tanto quanto ao método, quanto ao objeto. As dificuldades já se iniciam com o nome: há uma ciranda de nomes envolvendo esse novo campo: ciência da religião, ciências da religião, ciências das religiões. Alguns autores preferem trabalhar com o modelo alemão, da Religionwissenschaft, privilegiando a ciência da religião em sentido unívoco, visando captar a especificidade da religião. Com base em “método unificador”, busca-se “um referencial único que perpasse toda a área do conhecimento chamada religião e que chame a si a contribuição das ciências que parcialmente delas tratam e as organize num sistema”[3]. Outros falam em ciências da religião, entendida como “campo disciplinar”, com estrutura mais dinâmica e abertura para uma diversidade metodológica[4]. Mas mesmo nesse caso, onde se privilegia o plural, da ciência da religião como um “feixe de disciplinas”, permanece a questão de seu eixo organizador.
            Se há complicações evidentes no âmbito metodológico, há outras no campo do objeto de uma ciência ou ciências da religião, que são ainda mais “desagregadoras”.  Na visão de Pierre Gisel,

“não somente as religiões constituídas são historicamente construídas (as ciências humanas e sociais contemporâneas não cessam de sublinhá-lo contra toda perspectiva denunciada por elas como ´essencialista`), mas o que o próprio termo ´religioso` pode designar é uma construção cultural: o que ele circunscreve não se encontra em todas as culturas ou em todas as civilizações, e quando ele designa um campo próprio – como na história ocidental permeada de cristianismo -, este campo é, de fato, um ´cenário` , no qual realidades antropológicas e sociais mais amplas vêm se apresentar”[5].

                  Assim como as ciências humanas  ganham um perfil bem diversificado no período contemporâneo, pautado por rica mobilidade e interrogações que são transversais, o fato religioso, também objeto de sua abordagem, perde seu caráter de “campo definido”. As variações que o modelam apontam, sim, para “construções contingentes de ordens do mundo, feitas de relações efetivas, concretas e simbólicas – sociais, evidentemente”[6]. Exige-se também no campo das ciências da religião essa ampliação de horizontes, capaz de igualmente envolver em seu estudo as espiritualidades contemporâneas pós-cristãs, onde também se inserem as chamadas espiritualidades ateias ou as “opções espirituais” que não se restringem ao âmbito do religioso[7].

Ciências da religião e teologia

            Uma tendência que se verificou ao longo do processo de formação e afirmação da (s) ciência (s) da religião em âmbito geral foi a busca de emancipação da teologia. No processo de configurar o seu caráter “científico” ou “isento de motivos apologéticos”, esse novo campo de estudos buscou uma perspectiva diferenciada. Assim ocorreu com a afirmação da ciência da religião na Alemanha, com as ciências religiosas ou história das religiões (França e Itália) e também com os assim chamados “estudos da religião” nos departamentos universitários da Grã Bretanha e Estados Unidos. Na dinâmica de libertação de uma “feição confessional” ou normativa, os departamentos dedicados aos estudos religiosos reagem à presença da teologia. Ela

“não deveria estar presente num contexto universitário em que todas as alegações ´normativas` em favor de uma disciplina – especialmente uma que parece possuir uma norma ´exclusivista`- são suspeitas. De fato, a preferência pelo título ´estudos religiosos` em vez de ´teologia` para os departamentos universitários com frequência serve para indicar a distância que seus proponentes desejam tomar das reivindicações tradicionalmente normativas da teologia”[8].

                  No quadro das competências atribuídas às ciências da religião estavam o estudo da religião não-partidário e empírico, a liberdade acadêmica com respeito a compromissos religiosos definidos, a consciência da relatividade e a resistência aos etnocentrismos.  Os “critérios especiais” que abrigavam a reflexão teológica atritavam com a auto-compreensão que se firmava no novo campo de estudos. O lugar específico de presença da teologia deveria ser, na ocular desses novos cientistas, os seminários e igrejas. Não haveria lugar para ela na “universidade secular de uma cultura pluralista”. Foi uma perspectiva que veio se firmando em países como a Suécia, Alemanha e França, mas também nos Estados Unidos, com incidências reflexivas no Brasil.
            Em que medida a teologia, enquanto “organização sistemática da inteligência da fé”[9], com sua carga de normatividade, poderia ter um lugar na academia ? Essa era a grande questão que se colocava, e que ainda se coloca em determinados contextos. Essa percepção restrita e convencional da teologia acabou unindo acadêmicos e líderes de igrejas na defesa do entrincheiramento da teologia . Trata-se, porém, como argumentam importantes teólogos, entre os quais Wolfhart Pannenberg, de um “mal entendido” em torno do preciso lugar da teologia e de sua função que é também, fundamentalmente, pública.
            Há hoje um grupo substantivo de teólogos que buscam reconstruir a teologia “seguindo os parâmetros das demais ciências modernas na moderna universidade europeia”[10]. Ao lado de Pannemberg, outros teólogos como David Tracy, J.B.Metz, Hans Küng, Gordon Kaufman e Anders Nygren “acreditam que a teologia claramente pertence à universidade moderna como uma disciplina acadêmica”. Há em curso todo um engajamento em favor da “construção de propostas em favor do caráter totalmente público, aqui integralmente acadêmico, da teologia no contexto da universidade moderna e seu debate interno sobre o caráter de uma disciplina acadêmica”[11].

Uma difícil e desafiante relação

            Não há como negar a presença de uma tensão entre ciências da religião e teologia. Trata-se de uma resistência de mão dupla. Há da parte de cientistas da religião uma desconfiança permanente com respeito à teologia, sobretudo da perspectiva vista como apologética, normativa e missionária. Teólogos também reagem às ciências da religião por motivos diferenciados. Ressalta-se, em geral, a dificuldade desta ciências captarem a identidade e verdade que animam a religião[12].
            Essa situação conflitiva e de tensão “não é a mesma no mundo inteiro. Ela é nítida na Europa: não somente na França laica (...), mas também no Reino Unido, nos Países Baixos, na Escandinávia e, cada vez mais, nos países de cultura germânica. A situação extraeuropéia é outra, e, além disso, diferenciada quando pensamos na América do Norte, na América Latina, na Ásia ou na África”[13]. Os posicionamentos de teóricos são diferenciados. Tomando o exemplo brasileiro, há autores das ciências da religião que se posicionam de forma mais crítica à presença da teologia no campo das ciências da religião[14] e outros que admitem sem problemas a sua presença[15], tendo em vista a formulação inclusiva das ciências da religião como campo interdisciplinar amplo. O que ocorre também em muitos casos é a presença de “pactos de não-agressão” visando a viabilidade do exercício acadêmico.
            Com base em sua experiência universitária em Lousanne (Suiça), cuja Faculdade mudou de estatuto – de Teologia para Ciências das Religiões -, Pierre Gisel indica que esta oposição entre teologia e ciências das religiões[16] deve não só ser interpretada, como também “descentrada”. Destaca a importância indispensável, numa época “pós-metafísica” do incentivo à teologia fundamental, de uma interface e interação com a história e as ciências das religiões. Mudanças que devem ocorrer também no campo das ciências das religiões, sobretudo de ampliação reflexiva e de integração de novas dimensões, evitando uma concentração exclusiva em “conhecimentos descritivos isolados”. Torna-se hoje meio obsoleto manter distinções rígidas de campos disciplinares. Há que incentivar “interrogações transversais” e “reconfigurações dos campos”, rompendo os ensimesmamentos indesejados tanto no âmbito da teologia, com a fixação naquilo que é o seu “bem próprio”, como das ciências das religiões, convocadas a superar suas desconfianças ou caricaturas pré-estabelecidas, e disponibilizar-se a interagir com a diferença[17]. Em rico editorial da revista dos jesuítas brasileiros sobre teologia e religião, o desafio da superação dessa oposição veio reiterado: “Ultrapassar a oposição entre ciências das religiões e teologia supõe um deslocamento para além da comparação de asserções diferentes, da declaração ou não de adesão ou de crença, da divisão entre neutralidade e engajamento, de declaração de convicção”[18]. Por seu lado, a teologia vem desafiada a responder de forma mais convincente às “questões humanas mais amplas”, em viva interface com as ciências do social, e em particular com a história e as ciências das religiões. Por outro, as ciências das religiões são também convocadas a uma ampliação de horizontes: “não basta mostrar a diversidade ou instruir uma crítica do religioso herdado. Deve-se também pensar naquilo que se vê. O fato de uma situação ser tida como ´construída` não significa que ela não ´exista`, e o fato de ela ser reconhecida como contingente (´arbitrária`) não quer dizer que ela seja sem significação”[19].

O espaço público da teologia

            Um dos imprescindíveis desafios que se colocam hoje para a teologia é sua presença pública. Passou o momento em que a teologia concentrava-se no espaço “meramente eclesial”. Vive-se hoje novos tempos dialogais, onde o mister teológico, como tão bem lembrou J.B.Metz, necessita de Entprivatisierung, ou seja, “sair do âmbito privado intraeclesial (ou meramente magisterial) para ir ao encontro do mundo”[20]. E essa saída pressupõe toda uma laboriosa reflexão sobre a presença do Mistério maior no mundo e a dimensão transcendente da história. Esse “diálogo teológico com o mundo” apresenta-se hoje como um dado irrevogável.
            Em clássica obra sobre a metodologia teológica da teologia da libertação, Clodovis Boff enfatizou que a teologia é fundamentalmente “teologia do não teológico”. Em proposta de ampliar o campo teórico da teologia, esse autor problematiza a ideia de uma teologia concebida de forma estática, entendida como um depósito ou mera súmula de conhecimento. A teologia é antes de tudo, processo dinâmico, em permanente construção, onde a operação fundamental é a de transformar o não teológico em teológico, em razão de seu caráter teologal. Com base em Tomás de Aquino, Clodovis sinaliza que “não existe, em princípio, objeto ou acontecimento algum que não possa ser teologizado. Tudo é teologizável”[21].
            Não há dúvida sobre os principia fidei que conformam a pertinência teológica, a presença da ocular da fé, que faculta o específico modo de trabalhar teológico. Mas quando se estabelece uma separação rígida entre o sub specie temporis, da reflexão das ciências da religião, e o sub specie aeternitatis, da reflexão teológica, corre-se o risco de desconhecer o impacto do mundo e da história sobre a teologia. Há momentos ou fases distintas que envolvem o método teológico. Se há, por um lado, a preocupação de um retorno e recuperação do passado, que é a teologia in oratione obliqua; há, por outro, a permanente atenção ao presente, quando a teologia, iluminada pelo passado, enfrenta as questões fundamentais do presente. É a teologia in oratione recta. Mas mesmo esse retorno ao passado, esse olhar “à luz da fé” é também trabalhado por uma operação hermenêutica[22].
            Pierre Gisel lança uma importante advertência contra certo olhar ingênuo sobre a teologia, entendida como “intellectus fidei”. Ele assinala que aí pode se esconder uma armadilha, caso se intenda com isso “o simples alargamento da inteligibilidade interna de uma determinada crença”, deslocada da interrogação substantiva sobre o que aí há de humano, e também sobre a verdade humana que envolve tal crença[23]. Em diversa perspectiva de entendimento, Gisel assinala que a teologia cristã, ao longo de sua história, não foi sobretudo determinada pelos conteúdos da igreja ou de sua mensagem, mas pelos desafios do mundo e do humano, na dinâmica de sua relação com o divino. A teologia sempre esteve pontuada pelos “dados antropológicos e socioculturais” mais amplos. Foi na época moderna que ocorreu um certo “desvio” na compreensão teológica, que passa a assumir uma relação mais íntima com a igreja particular, no sentido de sua convalidação e legitimação[24].
            Em ritmo de diferenciação com respeito às teologias confessionais do início da época moderna,  a teologia contemporânea busca dar ênfase à problemática “globalmente humana”. Daí a atualidade de uma teologia pública e seus temas correlatos: teologia política, teologia da libertação, teologia feminista, teologia voltada para a ecologia, o bem-estar e a justiça social e também a teologia do pluralismo religioso. O teólogo Jürgen Moltmann lança uma interrogação pertinente em favor de uma teologia acadêmica, que seja aberta às indagações humanas fundamentais, sem destinar-se exclusivamente aos crentes. Sinaliza que

“Deus não é Deus apenas dos que crêem, mas o criador do céu e da terra, não sendo, portanto, particular como a fé humana nele, e sim universal como o sol que nasce sobre maus e bons, e como a chuva que cai sobre justos e injustos e proporciona vida a todas as criaturas (Mt 5,45). Uma teologia apenas para pessoas crentes constituiria a ideologia religiosa de uma comunidade religiosa cristã ou uma doutrina secreta esotérica para iniciados”[25].

                  Trata-se, segundo Moltmann, de uma “theologia publica por causa do Reino”, de uma “teologia da vida” animada por uma espiritualidade nova, em profunda sintonia com o organismo Terra; uma teologia pontuada por “maravilhosa abertura ao novo mundo penetrado pelo Espírito”, onde se redescobre a “imanência de Deus escondida na natureza e sua presença em todas as criaturas”[26].
            Essa perspectiva aberta por Jürgen Moltmann torna-se altamente inspiradora para situar o lugar e a função da teologia hoje no espaço público da universidade. O objeto precípuo da teologia é “o mundo sub ratione Dei[27]. O acento recai no mundo do humano, este é o lugar de sua atuação e presença, o seu ponto de partida e chegada, o seu horizonte fundamental. Este mundo real é, para utilizar uma expressão cara a Paul Tillich, o objeto de sua preocupação última e incondicional.



O lugar da teologia nas ciências da religião

            Em clássica obra sobre a relação da filosofia com a teologia, Wolfhart Pannenberg sublinha que a teologia “só pode falar de modo competente de Deus e de sua revelação quando ela, ao fazer isso, tratar do Criador do mundo e do ser humano e, portanto, relacionar o seu falar de Deus com uma compreensão total da realidade do ser humano e do mundo”[28]. Para o exercício dessa função, ela necessita da interlocução e do aporte das diversas ciências que tratam do humano, incluindo aí as ciências da religião. Esse “empreendimento cooperativo” que envolve a teologia foi bem acentuada por Bernard Lonergan em seu importante livro sobre metodologia teológica. Quando tratou das especializações funcionais da teologia, ele abordou o tema da comunicação, que envolve as relações externas da teologia. Inserem-se nesse campo as relações interdisciplinares e as transposições e adaptações que se revelam fundamentais para o exercício teológico no tempo presente[29]. Nessa dinâmica cooperativa, situa-se o essencial lugar da relação da teologia com os estudos conduzidos pelos scholars e cientistas.
            Seria, de fato, um grande retrocesso – como lembra Pannenberg – a saída da teologia das universidades. Não há porque restringir o seu espaço de atuação às instituições de ensino religiosas. Não se desconsidera os outros espaços de conduta da teologia, como a igreja e a sociedade mais ampla. Aí também a teologia tem uma palavra importante a dizer. Mas há um lugar específico de sua atuação, que se destina ao mundo da academia. Nesse sentido, a teologia vem entendida como uma disciplina acadêmica, marcada por um traço científico singular.[30]
            Há resistências tanto no âmbito da academia como das igrejas no reconhecimento da legitimidade acadêmica da teologia, e isto em razão dos “critérios especiais” que presidem a metodologia teológica e as dificuldades de observância de padrões e métodos que regulam o estudo acadêmico em geral. Numa “curiosa aliança”, certos líderes de igrejas e críticos seculares da teologia partilham de uma convencional compreensão que restringe à teologia um papel “estritamente confessionalista”. As lideranças eclesiais unem-se a alguns acadêmicos “para insistir, certamente tendo as suas próprias razões distintas, que a teologia pertence unicamente a instituições ligadas à igreja, e não à universidade secular”[31].
            Em perspectiva diversa, vários teólogos ousam defender um papel diferente para a teologia, acreditando e defendendo que ela pertence à universidade como disciplina acadêmica. Em defesa do caráter público da teologia erguem-se teólogos de diferentes confissões, num trabalho exitoso em favor da produção de um discurso teológico compatível com os padrões da academia contemporânea. Eles buscam “demonstrar, mediante critérios acadêmicos públicos e reflexão disciplinada (isto é, disciplinar), a plausibilidade de suas pretensões a sentido e verdade e a relação entre essas alegações e a tradição cristã que estão tentando interpretar”[32].
            Se em linha de princípio, as teologias fundamentais estão mais sintonizadas com a perspectiva de uma teologia pública e com o público representado pela academia, as teologias sistemáticas apresentam também um caráter público em razão de sua perspectiva hermenêutica. Como assinala Tracy,

“na medida em que os teólogos hermenêuticos articulam uma revelação da verdade da realidade de Deus embutida na tradição para a situação contemporânea – ou seja, na medida em que eles fornecem interpretações novas e boas dessa realidade para a presente situação -, eles igualmente fornecem verdade teológica e igualmente empregam um modelo de correlações mutuamente críticas entre interpretações da tradição para a situação”[33].

                  Na verdade, as teologias fundamental, sistemática e prática implicam-se mutuamente. Não sobrevivem exclusivamente em seus próprios dominíos. A teologia fundamental não prescinde da teologia sistemática, e esta necessita da teologia fundamental para que seu empenho de interpretação leve também em conta a situação contemporânea. E as duas recorrem à esfera da teologia prática para fazer valer as raízes de suas teorias e métodos numa práxis que é mais profunda e que traduz a razão de sua inserção no tempo[34].
            No âmbito das ciências da religião, há garantido espaço para a teologia pública e os temas que lhe são conaturais como a teologia do pluralismo religioso, da teologia política e da libertação, e das outras abordagens teológicas que envolvem a temática do gênero, da ecologia e do bem bem-estar eco-humano.

Conclusão

            A teologia tem um lugar garantido nas ciências da religião, sobretudo quando entendida em sua perspectiva pública. Sem desconsiderar os traços que garantem sua pertinência identitária, a teologia pode e deve ocupar o seu lugar de disciplina acadêmica na universidade.  Para tanto, ela necessita, porém, de “liberdade institucional frente à igreja, assim como de um lugar no espaço público das ciências”[35]. A teologia vem convocada a romper com o seu entrincheiramente na comunidade de fé e ser provocada pelos desafios do tempo atual, interessando-se e refletindo com acuidade os grandes temas que se relacionam com o bem comum da sociedade e da comunidade humana. A teologia precisa de liberdade acadêmica para o seu criativo exercício hermenêutico. Precisa de abertura e despojamento para se deixar interrogar pelos desafios da ciência. E ainda reforçar o seu espírito crítico, capaz de reagir a determinados e problemáticos paradigmas em curso na modernidade pós-tradicional[36].
            A teologia vive um momento precioso, de luta em favor de uma atuação crítica e livre, da busca de inserção distinta no âmbito acadêmico. A presença e irradiação dos programas de ciências da religião tem favorecido esse exercício novo da teologia, provocada  a dizer sua palavra com o provocante sabor dos sinais dos tempos. Em corajoso editorial publicado na revista internacional de teologia, Concilium, os teólogos Suzan Ross e Feliz Wilfred relatam as recentes mudanças no campo da teologia católica, e que expressam novos horizontes:

“Apenas 50 anos atrás, a teologia católica era uma disciplina extremamente fechada, ensinada por sacerdotes-professores em seminários controlados seja por ordens religiosas masculinas ou por dioceses. Os teólogos eram formados em universidades pontifícias e faziam parte das mesmas comunidades clericais como seus bispos. Mas o Vaticano II abriu para os leigos o acesso à teologia. As universidades começaram a ensinar teologia como uma disciplina acadêmica, os teólogos não mais buscaram imprimaturs para suas obras e um laicato cada vez mais bem formado procurou investigar as ideias teológicas que uma vez estavam muito fora de seu alcance”[37].


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(Publicado em: João Décio Passos & Frank Usarski (Orgs). Compêndio de Ciência da religião. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2013, p. 175-183. )




           


[1] R.Von Sinner. Teologia pública no Brasil: um primeiro balanço. Perspectiva Teológica, v. 44, n. 122, 2012, p. 20.
[2] F. Usarski. Constituintes da Ciência da Religião.  São Paulo: Paulinas2006inas﷽﷽o "idades euro, 2006, p. 15.
[3] A.G. Mendonça. A cientificidade das ciências da religião. In: F.Teixeira (Org). A(s) ciência (s) da religião no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 109.
[4] M.Camurça. Ciências sociais e ciências da religião. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 61.
[5] P.Gisel. Teologia e ciências das religiões: por uma oposição em perspectiva. Perspectiva Teológica, v. 43, n. 120, 2011, p. 169. Ver também Id. Che cosa è una religione? Brescia: Queriniana, 2011, pp. 8-13 e 54.
[6] Ibidem, p. 170.
[7] Ver a respeito: A.Comte-Sponville. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007; H.Pena-Ruiz. La laïcité. Paris: Flammarion, 1998, p. 22; P.Hadot. La filosofia como modo di vivere. Torino: Einaldi, 2008, pp. 52 e 119-120.
[8] D.Tracy. A imaginação analógica. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 45.
[9] C.Boff. Teologia e prática. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 384.
[10] D.Tracy. A imaginação analógica, p. 45.
[11] Ibidem, pp. 45-46.
[12] M.F.Miranda. Inculturação da fé e sincretismo religioso. REB, v. 60, n. 38, 2000, p. 282.
[13] P.Gisel. Teologia e ciências das religiões, p. 166.
[14] É o caso de Frank Usarski, da PUC-SP. Uma posição que é semelhante à defendida por Michael Pye, da Universidade de Marburgo: Estudos da religião na Europa: estruturas e projetos. Numen, v. 4, n. 1, 2001, pp. 25-26.
[15] M.Camurça. Ciências sociais e ciências da religião, pp. 62-63.
[16] É a terminologia usada por Gisel.
[17] P.Gisel. Teologia e ciências das religiões, pp. 176-178.
[18] Editorial - Teologia e religião. Perspectiva Teológica, v. 43, n. 120, 2011, p. 161.
[19] Ibidem,p. 161.
[20] Editorial – Teologia pública. Perspectiva Teológica, v. 44, n. 122, 2012, p. 8.
[21] C.Boff. Teologia e prática. Petrópolis: Vozes, 1978, pp. 84-85.
[22] Ibidem, p. 151.
[23] P.Gisel. La teologia: identità ecclesiale e pertinenza pubblica. Bologna: EDB, 2009, p. 121.
[24] Ibidem, pp. 17 e 33,
[25] J.Moltmann. Experiências de reflexão teológica. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 25. E também: I.Neutzling (Org). A teologia na universidade contemporânea. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 7.
[26] J.Moltmann. Dio nel progetto del mondo moderno. Brescia: Queriniana, 1999, p. 25.
[27] P.Gisel. La teologia: identità ecclesiale e pertinenza pubblica, p. 118.
[28] W.Pannenberg. Filosofia e teologia. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 332.
[29] B.Lonergan. Il método in teologia. Brescia: Queriniana, 1975, pp. 152 e 373-385.
[30] D.Tracy. A imaginação analógica, pp. 42-53.
[31] Ibidem, p. 45.
[32] Ibidem, p. 69.
[33] Ibidem, p. 111.
[34] D.Tracy. Necesidad e insuficiência de la teologia fundamental. In: R.Latourelle & G. O´Collins. Problemas y perspectivas de teologia fundamental. Salamanca: Sigueme, 1982, pp. 62-63.
[35] I.Neutzling. Ciência e teologia na universidade do século XXI. In: R.Cavalcante & R.Von Sinner. Teologia pública em debate. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2011, p. 177.
[36] R. Junges. O que a teologia pública traz de novo (entrevista). Cadernos IHU em formação, v. 2, n. 8, 2006, p. 6.
[37] S.Ross & F.Wilfred. Editorial – Bispos e teólogos: tensões antigas e novas. Concilium, v. 345, n. 2, 2012, p. 9.

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