sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O fenômeno do fundamentalismo religioso

O fenômeno do fundamentalismo religioso

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

O fundamentalismo religioso é um fenômeno complexo e com desdobramentos bem precisos nesse limiar do século XXI. É verdade que o conceito foi muito inflacionado, cobrindo dimensões bem distintas e mais amplas do que aquelas que se referem à sua origem propriamente dita. Daí a necessidade de matização ao aplicar o termo para outras designações religiosas. Mas há sempre uma referência do fenômeno à modernidade, ou melhor, a uma precisa reação à modernidade. Ele traduz um temor disseminado contra os ventos modernizantes do processo de pluralização. A grande abrangência da pluralização e sua disseminação incontrolada provocam desorientação em muitas pessoas e comunidades, que sentem perder o chão firme da tradição, que lhes proporcionava firmeza e segurança. Em razão da condição de incerteza permanente provocada pelos ventos plurais, que desestabilizam o mundo auto-evidente das crenças e convicções, muitos tendem a buscar o seu apoio nos projetos restauradores de sentido, que convocam com vigor os absolutismos encrustados no mundo das tradições. Como indica Jürgen Moltmann, “os fundamentalistas não reagem às crise do mundo moderno, mas às crises que o mundo moderno provoca em sua comunidade de fé e em suas convicções básicas”.

Na origem do fundamentalismo, há esse sentimento de desorientação. E isso aconteceu seminalmente no mundo protestante. É uma reação ao processo modernizante vivido pelo protestantismo liberal em seu procedimento de “adaptação cognitiva” à modernidade. A teologia liberal protestante, no século XIX, abraçou alguns pressupostos modernizantes como a assunção do método histórico-crítico na leitura e interpretação da Bíblia, a relativização da tradição dogmática da igreja e a ênfase numa leitura ética do cristianismo. A reação foi imediata entre grupos de protestantes para os quais esse revisionismo liberal estaria corroendo aquilo que para eles era essencial no campo da fé. Em reação aberta, sinalizam que certos artigos da fé não podem ser negociados com a modernidade, por serem essenciais e fundamentais. Dentre as primeiras manifestações encontra-se o manifesto tornado público na Conferência de Niágara sobre a bíblia, em 1985, com a afirmação de doutrinas tidas como essenciais: a inerrância das Escrituras; a divindade de Jesus Cristo e seu nascimento virginal, bem como seu sacrifício expiatório vicário, sua ressurreição corpórea e sua segunda vinda à terra como juiz. A designação do termo e sua maior divulgação ocorreram em seguida, com a publicação de uma série de textos entre os anos de 1909 e 1915, nos Estados Unidos, intitulados The Fundamentals – A Testimonium to the Truth (Os Fundamentais – um testemunho em favor da Verdade). A série de 12 opúsculos, com mais de três milhões de exemplares publicados, foi que deu o nome ao movimento fundamentalista, favorecendo também sua maior divulgação.

Nascia, assim, uma contra-ofensiva fundamentalista a um modernismo em curso no mundo protestante, que estaria interpretando os conteúdos essenciais da fé numa problemática perspectiva histórico-crítica. Em oposição a tal modernismo, firmavam-se conteúdos considerados Fundamentais, ou seja, verdades absolutas e intocáveis, que deveriam estar preservadas dos ares dissolventes da ciência e da relativização moderna. Entre tais conteúdos, os mesmos defendidos pela Conferência de Niagara, incluindo também o criacionismo. Tudo o que pudesse opor-se a tais “fundamentais” nos resultados das ciências modernas, como o evolucionismo biológico, era objeto da resistência fundamentalista. Essa perspectiva foi mais incisiva entre os batistas e os presbiterianos do Norte dos Estados Unidos, tendo depois se espalhado por outros espaços através da aguerrida atividade missionária. Vale também registrar a fundação, em 1941, do Conselho Americano das Igrejas Cristãs, que agrupou segmentos fundamentalistas mais rígidos, e que farão oposição aos organismos ecumênicos.

Algo semelhante ocorreu em âmbito do catolicismo romano, com a oposição do magistério contra os ventos da modernidade. É o caso do sílabo de Pio IX (1864), com a condenação de um elenco de proposições modernas, incluindo o panteísmo, o naturalismo e o racionalismo absoluto. Tornou-se clássica a proposição de número 80, com a condenação de qualquer “negociação cognitiva” com a modernidade: “O Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e fazer amizade com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna” (DzH 2980). E igualmente a encíclica de Pio X, Pascendi dominici gregis (1907), em torno dos erros dos modernistas quanto ao conceito de fé, aos enunciados teológicos e aos princípios da ciência histórica e critica (DzH 3475-3500). Enquanto o fundamentalismo protestante invoca a autoridade da bíblia, o fundamentalismo católico, que poderia ser melhor definido como integrismo, recorre à infalibilidade do magistério.

Na base da atitude fundamentalista há uma forte experiência de conversão, suscitada pela experiência imediata com Deus à base da escuta da Palavra. Nada mais atemorizante para eles do que perder esse fundamento seguro, pulverizado pelos ares dispersivos e centrífugos que acompanham a sensibilidade moderna. Em defesa dos motivos de credibilidade partem com vigor ao ataque, seja de forma defensiva, fechando-se nos “muros protetores” de seu grupo, seja de forma ofensiva, avançando numa cruzada contra os “descrentes”. São, em verdade, movidos por uma “necessidade angustiante de certeza”, que pode estar envolvida por problemática espiral de violência. O sentimento vivenciado é semelhante ao de Madalena, na manhã da Páscoa: “Tiraram do sepulcro o Senhor e não sabemos onde o puseram” (Jo 2,2). Uma vez ameaçada, a identidade pode se tornar aguerrida e mesmo mortífera, e muitos são os exemplos que historicamente comprovam um tal risco. O fenômeno do fundamentalismo implica a idéia de uma “tradição sitiada”, de uma identidade ameaçada. Diante do risco globalizador, ele reage com a afirmação tradicional da tradição. Rejeita-se qualquer engajamento dialogal com a modernidade, e busca-se reconstituir um “mundo curado”, livre de surpresas. Os projetos fundamentalistas incluem, assim, a limitação ou mesmo supressão de todo pluralismo e a rejeição de qualquer perspectiva hermenêutica.

(Artigo publicado na Revista Diálogo – Revista de Ensino Religioso, Ano XVII, nº 65, fevereiro/abril 2012, pp. 10-13)

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