quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Testemunhos Espirituais

Testemunhos Espirituais

 

Faustino Teixeira

 

 

Em sua clássica obra sobre a teologia da libertação (1972), Gustavo Gutiérrez sublinhou a importância de uma espiritualidade marcada pelo toque da gratuidade, entendida como o segredo para um testemunho libertador efetivo. O encontro com o Deus gratuito firma-se como um requisito essencial para o despojamento necessário ao exercício de amor aos outros: “Só o amor gratuito vai até a raiz de nós mesmos e faz aí brotar o verdadeiro amor”. Ao definir a espiritualidade da libertação, Gutiérrez sinalizou que ela “é uma forma concreta, movida pelo Espírito, de viver o evangelho. Maneira precisa de viver ´diante do Senhor` em solidariedade com todos os homens”. Dois importantes exemplos desse testemunho espiritual, singulares teólogos da libertação, deixaram o nosso convívio nesses últimos meses. Dois teólogos chilenos virtuosos: Ronaldo Muñoz (1933-2009) e Segundo Galilea (1928-2010). Não há como falar da teologia da libertação sem recordar esses dois profetas da espiritualidade. Ronaldo Muñoz, que faleceu em dezembro de 2009, foi uma das figuras mais delicadas de nossa reflexão teológica latino-americana. Conseguiu articular com maestria o trabalho acadêmico com a experiência junto às comunidades cristãs populares. Impressiona o carinho com que se dedicou aos mais pobres, que para ele refletiam de forma viva e transparente o rosto de Jesus. Em depoimento dado num encontro de teólogos da libertação em Embu-Guaçu (São Paulo), no ano de 1989, e que depois saiu em vídeo (Iser-Vídeo 1990), dizia que a opção pelos pobres é de direito divino, pois eles são os prediletos de Jesus: “É Deus mesmo que opta pelos pobres. Os pobres são a ´debilidade` de Deus. São o ponto de onde Deus se faz sensível, sofrido e esperançado na história humana”. Em sua rica e permanente convivência com  comunidades cristãs populares encontrou um povo sofrido e esperançoso, marcado por infinita acolhida e ternura. E confessa: “Devo dizer que para mim o carinho de meus vizinhos, dos meus irmãos de comunidade, entre os pobres, tem chegado a ser como as mãos de Deus que me sustentam na vida e na alegria de viver”. Todos os que tiveram a alegria e o privilégio de entrar em contato com ele, puderam captar a irradiação viva de sua ternura, acolhida e generosidade. Também Segundo Galilea, que faleceu em maio de 2010, foi exemplo de uma espiritualidade viva. Aliás, sempre que se fala em espiritualidade da libertação é um nome que vem à tona. Foi um dos pioneiros dessa reflexão na teologia da libertação. No clássico numero da revista internacional de teologia, Concilium, de 1974 (n. 96), dedicado à teologia da libertação, o teólogo Claude Geffré sublinhava no editorial o nascimento de um novo tipo de espiritualidade, marcado pela dimensão bíblica do compromisso. Dizia: “Não se trata de negar outras dimensões tradicionalmente válidas de contemplação cristã, mas de tornar a encontrar por meio da integração a dimensão bíblica, histórica, comprometida, da contemplação, dimensão tão esquecida pelos cristãos”. No mesmo número da revista, o artigo de Segundo Galilea expressava o novo modo de compreender a espiritualidade na América Latina, pontuado pela doação e pelo compromisso. A experiência contemplativa e o toque da oração são traços essenciais que irrigam com nova luz e vida a dinâmica de inserção na história. Como indica Galilea, “o Cristo encontrado e contemplado na oração ´se prolonga` no encontro com o irmão”. Anos mais tarde, Gustavo Gutiérrez iria traduzir e aprofundar essa perspectiva no belo livro Beber no próprio poço, firmando a idéia de que a gratuidade faculta um “clima” essencial para o compromisso histórico. Um clima fino e precioso que “envolve e banha nosso empenho em sermos eficazes na história”. Em singular imagem bíblica, Galilea evoca o exemplo de Moisés para delinear a dinâmica de proximidade e êxodo que acompanham a espiritualidade libertadora. A experiência de Deus não se encerra na esplêndida contemplação da sarça ardente no deserto. Ali se dá o encontro com o Mistério do “Outro”, que é pessoal e solitário: “Tira as sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa” (Ex 3,5). Mas esse encontro provoca a sede pelo Mistério dos “outros” e a missão de responder ao clamor de Deus em favor da libertação do povo cativo no Egito (Ex 3,7ss). Esses dois teólogos chilenos deixaram um exemplo transparente de simplicidade, abertura e compromisso com os mais pobres. Esse é o testemunho que fala mais alto. A primeira geração dos teólogos da libertação começa a brilhar noutras esferas, deixando para nós o desafio imprescindível de levar à frente uma espiritualidade sintonizada com o tempo e atenta aos dons do Mistério sempre maior.


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