sábado, 21 de dezembro de 2024

O choque de desenraizamento

 O choque de desenraizamento

 

Faustino Teixeira

 

Há um traço importante destacado no livro de Didier Eribon, “Vida, velhice e morte de uma mulher do povo” (2024 – o original é de 2023), diz respeito ao problema que afeta aqueles que são “internados” pelos filhos ou parentes em casas de repouso durante a velhice. No livro assinalado, o autor está falando de sua mãe, uma mulher simples que passou pelas experiências de faxineira e operária e depois se aposentou. Mais adiante, passou a necessitar de cuidados mais especiais, quando então foi deslocada para uma casa de repouso pelo filho. O grande choque que marcou a internação de sua mãe veio identificado como um “choque de desenraizamento”. É o mesmo choque que esteve presente na personagem do filme “Une belle course”, de Christian Carion, que morre pouco depois da internação. 

 

O livro de Eribon levanta para todos nós uma séria questão, em torno das escolhas que fazemos para os nossos pais. É um livro que se coloca no limite entre o testemunho e o ensaio sociológico. A experiência de internação da mãe de Eribon marcou uma mudança profunda em sua vida, que passa a ficar mais concentrada no quarto da instituição: “prisioneira em um quarto, sozinha, deitada em uma cama, incapaz de se levantar, de andar e de se mexer”. Como assinalou Eribon, “a velhice muito avançada, modifica, depois anula e destrói totalmente essa relação ontológica com o espaço e com o tempo”. Um dado é certo, o processo de envelhecimento produz, de fato, “estranhas alterações na sua relação com a realidade”.

 

Durante os tempos iniciais da internação, a mãe de Eribon manifestou por diversas vezes o seu estranhamento com a instituição, expressando sua revolta com sentimentos de agressividade e raiva: ela “estava zangada com o que lhe acontecia, queixava-se de tudo, mas aparentemente tinha deixado de delirar”. Tratava-se de algo que já se manifestara antes de sua internação. Passava uma boa parte de seu tempo dormindo, em razão também dos medicamentos que começou a tomar. Ao mesmo tempo, para complicar a situação, o número de efetivos para o cuidado com os internados era insuficiente, e a rotatividade grande. A dedicação dos auxiliares aos pacientes tinha um tempo bem reduzido. Relata Eribon:

 

“A verdade é simples: nesses estabelecimentos, o pessoal está permanentemente em número menor do que o necessário, e as auxiliares têm  de correr de um quarto para  outro para cuidar dos residentes que estão especificamente sob seu cuidado, porque, geralmente, dispõem de apenas alguns poucos minutos para se dedicarem a cada pessoa, e têm de correr de um quarto para outro para responder às chamadas de outros residentes que precisam delas...”

 

Eribon sublinha que não é incomum ocorrerem maus tratos e procedimentos realizados para poupar a presença cuidadora, como a diminuição dos banhos, o uso abusivo de fraudas, o gradeamento das janelas, a restrição ao uso de apetrechos particulares, inclusive celulares, e o maior “aprisionamento” dos “clientes” em camas com grades laterais. Era como “as paredes do quarto tivessem se deslocado”.

 

Foi quando então Eribon foi se dando conta da “imoralidade” presente nas instituições voltadas aos cuidados de idosos franceses (os EPHADs). O autor acrescenta que nas instituições privadas a situação ainda é mais precária, e a vontade de lucro predomina, num mercado cada vez mais lucrativo dos assim denominados “ouro cinza”, em referência aos cabelos grisalhos dos idosos. Eribon pôde se dar conta de que as casas de repouso e os hospitais públicos participam da mesma precariedade no acolhimento aos idosos, aos frágeis e doentes, ou seja, a todos aqueles que dependem de cuidados. São em boa parte instituições que estão “muito aquém do minimamente esperado, para não dizer que elas são hoje totalmente inaceitáveis”.

 

No caso da mãe de Eribon, ela não conseguiu viver ali além de sete semanas antes de falecer. E o autor assinala que nos artigos em que leu sobre o tema, pôde verificar que essa experiência de “abandono” dos idosos não são incomuns. E a ocorrência de morte de idosos depois dessas internações é verificada, e alguns médicos a descrevem como sendo um “suicídio inconsciente”. Quando internou sua mãe na instituição, Eribon foi alertado por um dos médicos que os dois primeiros meses nessas instituições são os mais difíceis, em razão do choque de desenraizamento. Muitos não suportam a mudança e morrem pouco tempo depois. 

 

O relato de Eribon é específico para o caso da França, mas não tenho dúvida de que situações similares ocorrem em outras partes do mundo e também no Brasil. Não se trata de um relato antiquado, mas que aborda uma situação recente, num livro de 2023. É mais que urgente tratarmos com seriedade essa questão que envolve os nossos idosos.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A questão da verdade

 A questão da verdade...

 

Ainda comentando o livro de Didier Eribon, sobre “a vida, velhice e morte de uma mulher do povo” (2024), ele aborda em certo momento a questão das casas de repouso, destino quase certo de muitos de nossos idosos pelos mundo afora. Ele observa:

 

“Em dado momento, temos ciência de que vamos viver em um quarto como esse, provavelmente em uma casa de repouso semelhante. Não há como não temer isso. Não sabemos quando nem como chegaremos a esse lugar. Em que veículo? E quem nos levará até lá (...). Por isso, juramos a nós mesmos que, quando esse dia chegar, preferiremos ouvir a verdade”.

 

Num conto de J.M. Coetzee (1940 -) – Nobel de Literatura em 2003, nomeado “Mentiras” (no livro Contos Morais -2021), ele aborda o tema de um filho e filha de uma escritora que tentam convencer a mãe, já idosa, a ir morar numa casa de repouso. Ela resiste à investida dos filhos com firmeza. Em visita à mãe, certa tarde, o filho John constatou que o estado dela era delicado. Já não conseguia andar sem bengala e tinha dificuldade de subir as escadas da casa, onde estava o seu escritório.

 

Não vivia sozinha, tinha a companhia de Pablo, um ajudante que dormia na cozinha. Preocupado com os “arranjos de sobrevivência” da mãe, o filho tenta, de toda forma, convencê-la a sair de casa. E a ameaça: “Você sofreu uma queda séria e é só questão de tempo sofrer outra”.  A mãe reage, sublinhando a presença de Pablo na retaguarda. O filho insiste na ideia, dizendo que se ela não tivesse conseguido ligar para o hospital, poderia estar hoje em outro local... E a mãe responde: “Você parece saber a resposta, então para que perguntar? Debaixo da terra, sendo devorada pelos vermes, acredito. É isso que você quer dizer?”. O filho pede a mãe para ser razoável, e assinala que sua irmã – Helen – já tinha sondado um lugar onde a mãe poderia ser bem cuidada, sentindo-se em casa (sic!). A mãe rebate, ironizando sobre a ideia de que naquela instituição ela poderia sentir-se em casa... O filho, então, retoma o argumento, sublinhando para ela que seu estado não tende a melhorar, e que seria complicado para ela permanecer numa cama em aldeia esquecida, contando apenas com a ajuda do Pablo. E o filho conclui dizendo que é assim que se faz quando se ama alguém... E se dispõe a ajudá-la a empacotar o que for importante para ela. Reconhece que tais instituições não constituem a melhor solução, mas revela-se como um meio-termo entre o que se pode desejar e que se revela bom diante de tal situação. Revela ainda que lá na instituição ela poderá ter seu próprio “apartamentinho” e inclusive um pequeno jardim.

 

Já desacreditata, a mãe lança uma questão ao filho: “Quero, só para variar, como um exercício apenas, me diga a verdade. E ele responde: “A verdade é que você é uma mulher idosa que precisa de cuidados”. Não contente, ela volta a perguntar: “Me diga a outra verdade, a verdade verdadeira”. A pergunta fica sem resposta. Talvez a verdade que ela gostaria de ouvir é que ela estivesse talvez morrendo. Isso o filho, já impaciente, não conseguiu dizer.

 

Mais tarde, o filho escreve para a mulher, Norma, propondo um “pacto de sinceridade”. Diz a ela que vai chegar um dia em que os dois terão que dizer a verdade verdadeira, e escreve: “A verdade verdadeira é que você já está incapaz no mundo, e amanhã pode estar ainda mais incapaz, e assim por diante dia após dia, até chegar o dia em que não vai dar mais. A verdade verdadeira é que você não está em posição de negociar. A verdade verdadeira é que você não pode dizer Não (...). Aprenda a dizer Sim (...). Deixe para trás as coisas familiares, venha e more – sim – numa instituição, onde uma enfermeira de Guadalupe vai te acordar de manhã com um copo de suco de laranja e uma saudação alegre (Quel beau jour, Madame Costello!), você não feche a carranca, não finque os pés. Diga Sim. Diga, eu concordo. Diga, eu estou em suas mãos. Faça o que for melhor”.

 

Simplesmente...

Você vai ficar bem...

 “Você vai ficar bem...”

 

Faustino Teixeira

 

Bem impactante o livro de Didier Eribon, o clássico filósofo e sociólogo francês, com o título: “Vida, velhice e morte de uma mulher do povo” (Belo Horizonte: Âyiné, 2024 – o original é de 2023). Ele relata no livro o delicado processo de internação de sua mãe numa instituição de cuidados contínuos. É doloroso todo o processo que envolve o acompanhamento de sua mãe para a “casa de repouso”. 

 

Ele relata que hoje se arrepende profundamente de ter dito para a sua mãe na ocasião: “Não se preocupe. Eles vão cuidar bem de você aqui. Você vai ver, você vai ficar bem”. Isso faz lembrar uma dura canção de Jean Ferrat: “Tu verras, tu seras bien” (Você vai ver, você vai ficar bem). Os velhos, coitados, chegam a um momento em que são privados de liberdade. Como diz o texto bíblico: 

 

“Quando eras jovem

tu te cingias

e andava por onde querias;

quando fores velho,

estenderás as mãos

e outro te cingirá

e te conduzirá aonde não queres” (Jo 21,18)

 

Doce a ilusão de se imaginar que alguém que vai para um “asilo” receberá com frequência a visita de seus queridos, seja parentes ou amigos. Como indicou Eribon, su mãe tinha a ilusão de que os filhos e parentes iriam visitá-la sempre. Não foi o que ocorreu, e o que ocorre com frequência. As visitas só se realizaram de vez em quando, e com o passar do tempo os encontros foram se desvanecendo.

 

Por mais esforço que Eribon tenha feito para levar para o “quarto” as coisas de que sua mãe gostava, incluindo seus quadros e sua velha televisão, aquele lugar nunca tinha o mesmo acolhimento e ternura de sua casa... Foi ainda mais difícil para ele sinalizar para a sua mãe, que a situação iria apenas piorar dali em diante. Nas casas de repouso vale o ditado: “A morte é certa, mas a hora é incerta”. 

 

Numa frase cortante dita por meu terapeuta, nós somos a última geração que cuidaremos dos pais. O destino de todos nós, infelizmente, é viver no futuro num quarto de “asilo”, cercado de atividades lúdicas, fraudas e desencanto (sic!). Como diz com acerto Eribon, “quem entra em uma casa de repouso sabe, e não tem como deixar de saber, apesar dos rituais de denegação e de fingimento mútuo, que este será o último lugar em que vai morar”. 

 

A dura verdade é que nossa sociedade e nossos parentes não estão aparelhados para lidar com a questão da velhice. Igualmente, nossas instituições de saúde não estão preparadas para lidar com os cuidados paliativos. Como vem mostrando a doutora Ana Claudia Arantes, “apenas 0,3 % das pessoas que precisam de cuidados paliativos têm acesso a eles”no Brasil. E nossa população envelhece a cada dia. A expectativa de vida também vem aumentando no Brasil, alcançando agora a idade de 78 anos. Por volta de 1950, um em cada cinco pessoas no Brasil terá mais de 60 anos. E um dado ainda mais alarmante, aos 85 anos de idade, de duas pessoas, uma terá algum tipo de demência complexa, sobretudo o Alzheimer. O que também preocupa é o crescimento de índice de suicídios entre idosos, com taxa mais elevada entre aqueles que têm 80 ou mais anos. São dados divulgados pela doutora Ana Claudia, e que traduzem um sério alarme.

 

Retornando ao livro de Eribon, ele sugere a leitura de dois livros importantes para lidar com o tema da velhice, que para ele foram fundamentais: “A velhice”, de Simone de Beauvoir e “A solidão dos moribundos”, de Norbert Elias. O autor também comenta o precioso romance de Shichirô Fukazama, Narayama, que relata a delicada situação de uma aldeia japonesa, onde as pessoas que alcançavam a idade de 70 anos, eram levadas para uma montanha, e ali iriam aguardar a morte. Todas tinham que abandonar o aconchego familiar e se direcionarem para um lugar sem retorno. O romance serviu de base para o precioso filme: “A balada de Narayama” (1983). De Shôwei Imamura, um clássico do cinema mundial. A primeira adaptação do romance para o cinema ocorreu antes, em 1958, com o diretor Keisuuke Kinoshital

 

Recentemente, no Festival Varilux, pudemos apreciar o delicado filme de Christian Carion, “Une belle course” (2023 – em português saiu com o título: Conduzindo Madeleine), que aborda o tema da ida de uma senhora de 92 anos, Madeleine, para o asilo derradeiro. No filme, ela solicita ao motorista de táxi, Charles, uma pessoa bem mal humorada, para conduzí-la pelos lugares de Paris que marcaram a sua vida. Ao longo do périplo, os dois vão ganhando intimidade e vivem uma bonita experiência de amizade. Depois de um longo percurso, ela chega finalmente à casa de repouso, e sua estadia ali dura pouco tempo.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Refletindo sobre o filme Paris Texas

 Refletindo sobre o filme Paris Texas

 

Faustino Teixeira

 

 

“Eu não tenho medo 

de altura. Tenho 

medo de cair”

 

Destinei minha tarde de ontem a revisitar o maravilhoso filme de Win Wenders, Paris Texas, na edição de luxo (Edição definitiva limitada) produzida pela Versátil. Fiquei maravilhado, não só com o filme, mas também com os maravilhosos extras. Os extras começam com uma fantástica entrevista dada por Win Wenders ao conhecido ensaísta e apresentador de TV, Roger Willemsen (1955-2016). Temos depois lindas cenas excluídas do filme com comentários do diretor. Em seguida duas entrevistas incríveis, com Claire Denis, que foi a assistente de direção; bem como com Allison Anders, assistente de produção. Essa última nos apresenta trechos incríveis de seu diário sobre o filme. Temos também momentos maravilhosos com a fala de Ry Cooder, que foi o responsável pela trilha sonora.

 

Por isso que eu me mantenho “teimoso” em manter e adquirir os DVDs sobre os filmes que gosto. Trata-se de uma riqueza singular. Você poder ver e rever, bem como apreciar os extras que quase sempre acompanham o material. Num dos trechos do DVD, há uma fala de Wenders, que partilho aqui:

 

“Meu cinema é focado no presente. É contemporâneo. Então espero que futuras gerações tenham uma imagem dos tempos em que vivi. Ninguém pode trabalhar para estar nos livros de história. Eu não me importo com o que acontecer quando não estiver mais aqui. Mas espero, talvez, que o filme proporcione uma imagem precisa dos tempos que vivi”.

 

Em momento preciso da entrevista dada por Wenders, o erudito Roger Willemsen sublinha:

 

“Paris Texas é o lugar da separação, um lugar de infelicidade. Um homem volta lá, não para relembrar a separação, mas para restaurar a unidade. A unidade de mãe e filho é restaurada... mas não a unidade da família. O que significa que o que sobrou no final é o mundo separado do homem e os caminhos divididos”.

 

E Wenders complementa:

 

“De certa forma é uma renúncia. Ele se recusa a ser parte de uma família, da felicidade. Ele se despede no final, deixando a história e a vida dos outros dois. E o que os dois não podem ter juntos, ele dá aos outros. Por isso, essa é uma história de amor emocionante e é até hoje. É de partir o coração. Renunciando a tudo o que ele deseja, ele permite que os outros dois tenham o que desejavam. Logo, é uma grande história de amor”.

 

Outro dado interessante abordado por Wenders sobre o filme, diz respeito à sua recepção nos Estados Unidos. Ele sublinha que o filme não foi compreendido nos EUA. E nem um pouco. “Não fez ali sucesso algum. Foi bem na Europa, no Japão e em outros lugares. Nos EUA foi irrelevante. Às vezes, os críticos espumavam pela boca, enquanto escreviam algo como: ´Não precisamos de nenhum europeu vindo nos mostrar como vivemos` (...). Os americanos não estão acostumados com alguém os retratar no próprio território”. E concluiu dizendo que Paris Texas foi “um sacrilégio para eles”.

 

São igualmente ricas as entrevistas com a assistente de direção, a francesa Claire Denis, e a assistente de produção, Allison Anders, que estão também entre os extras do DVD,

 

No caso de Claire Denis, ela entrou na produção do filme, quando ele já estava em curso, e sua presença aconteceu em razão da saída de cena do roteirista Sam Shepard, que passa a acompanhar as filmagens de longe, com presenças via telefone ou outros instrumentos. Um exemplo singular: toda a cena final no peep show, com os monólogos dos dois atores principais, foi passada por telefone, e o texto foi aproveitado integralmente. E é simplesmente maravilhoso. 

 

Claire mostra-se como uma pessoa muito especial na entrevista. Algo curioso na sua vida foi seu casamento ainda jovem, quando se vestiu toda de preto, para o escândalo de sua mãe. Ela foi de ajuda fundamental para Wenders nas sequências finais do filme. Nos relata que a primeira semente do filme nasceu do livro de Sam Shepard, “Crônicas de Motel”. E logo que começou a trabalhar com o diretor, ele a aconselhou a fazer a leitura do livro. 

 

Há um belo momento na entrevista com Kent Jones, quando ela relata o voo que ele e Wenders fizeram de aeroplano sobre a região desértica do Texas, conhecida como “Cemitério do Diabo”. São cenas maravilhosas que serviram de base para o início do filme, quando Travis caminho perdido por aquela região. Impressiona ver os grandes penhascos vermelhos, como monumentos no meio do “nada” do deserto. Claire relata que não podia acreditar estar diante de tamanha beleza. 

 

Ela também relata que o filme teve que ser interrompido, mais ao final, por três vezes, uma das quais em razão de um episódio envolvendo os caminhoneiros do Texas, que haviam sequestrado o caminhão com as câmeras. Wenders teve que usar de toda a sua diplomacia para conseguir reaver o caminhão e dar continuidade ao trabalho. De forma curiosa, esses intervalos foram fundamentais para ele poder meditar sobre os rumos do roteiro, ainda inacabado. 

 

Claire comenta também sobre a experiência de ver o filme durante a apresentação em Cannes. Falou sobre o clima da sala de exibição: um filme que conseguiu transportar as pessoas para aquele momento. Estava dada a coincidência de um bom filme com um bom público. A receptividade foi maravilhosa, diz ela, e se conseguia perceber a respiração das pessoas... e muitas choravam. Ao final da entrevista ela confessa que pôde viver, graças a Wenders, algo que foi maior do que sua própria vida.

 

Na outra entrevista, com Allison Anders, que atuou como assistente de direção, podemos acessar outros dados muito interessantes da produção do filme. Allison era uma estudante de cinema na UCLA, e uma fã incondicional dos trabalhos de Wenders. Ela escrevia semanalmente para aquele que ela reconhecia como seu tutor, mestre e muso. Ele pôde assistir a um trabalho realizado por ele e seus amigos, também alunos de cinema: Dean, Kurt e Scott. Ficou emocionado com o resultado apresentado e acabou convidando todos para atuarem na produção do filme. Foi algo de grande riqueza para eles, como relata Allison, que fez um diário sobre aquele período de gravações. Dentre seus encargos, ficou de passar as falas do ator Harry Dean Stanton. Por sorte, ela foi importante para ajudá-lo a viver a experiência de alguém catatônico. Era uma dúvida atroz que perseguia o ator, e ela tinha vivido uma experiência de silêncio aos quinze anos, que durou um mês. Pôde então relatar para ele como é viver aquilo, e como é falar depois de um longo tempo de silêncio. A sua experiência foi de grande importância para ajudá-lo na construção de seu personagem. 

 

Há também no diário de Alisson um trecho em que fala de seu contato com Nastassja Kinski, que na época das filmagens, estava no segundo mês de gravidez. A atriz tinha apenas uma semana para as filmagens e conseguiu realizar o feito com grande maestria. Alisson, que tinha tido experiências importantes no cuidado com partos, foi uma presença importante para Nastassja naquele seu momento de vida. Na visão de Alisson, Nastassja era uma pessoa incrivelmente gentil, de grande cortesia e amizade com todos os que a rodiavam na produção. Não gostava, porém, de ser bajulada e desconfiava daqueles que ficava amigáveis muito rapidamente. Era também para ela motivo de desconforto ouvir elogios dos outros a respeito de sua beleza. Era uma atriz simples.

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A substância e Demi Moore

 A substância e Demi Moore

 

Volto hoje, 15/11/2024, uma sexta feira nublada, a falar de um filme que muito me impressionou este mês: A substância, com a atriz Demi Moore. O filme vem ambientado em Los Angeles, e começa com uma vista aérea da Calçada da Fama de Hollywood, onde uma nova estrela está sendo instalada. Mas com o tempo, aquela estrela que homenageia a atriz Elisabeth Sparkle, personagem interpretada por Moore, racha e é danifica. É pisoteada e ignorada. Um homem passa por ela, deixa cair o hambúrguer e a estrela fica suja de ketchup. A sequência, que dura apenas alguns minutos, define perfeitamente o tom do que virá e expõe os temas que serão abordados: juventude, beleza e pertencimento, e até onde as pessoas são capazes de ir para alcançar o que almejam.

 

Motivado pelo filme, fui ler a biografia de Demi Moore, que acabei agora pela manhã, com o título: Livro aberto: a minha história (Rio de Janeiro: Alta Life, 2021). Pude então entender as razões que motivaram a atriz a aceitar o papel de Elisabeth Sparkle. O livro revela, de fato, toda a complexidade e dor que envolveram e envolvem a vida da Atriz Demi Moore, que passa hoje pelas reflexões de quem ultrapassou os 55 anos de vida.

 

Sua infância não foi nada fácil, como ela relata. Ela e seu irmão não tiveram a atenção necessária dos pais no tempo que mais precisavam. Num dos passos mais difíceis d sua juventude, ela foi prostituída pela própria mãe, por US$ 500. Sua mãe, Ginny, teve a ousadia de entregar a chave da casa para um rapaz de nome Val transar com ela. Imaginem! A relação com a mãe foi sempre muito difícil, mas ao final da vida pôde se reconciliar com ela, dedicando-se aos cuidados com sua saúde, até sua morte.

 

Depois veio o sucesso, mas acompanhado de tantos contratempos e efeitos colaterais, envolvendo álcool e cocaína. Aos 21 anos já lutava contra o vício dessas drogas... Em sua viagem ao Brasil, para filmar Feitiço do Rio, foi outra dura experiência com as drogas. Diz em seu livro que “todo mundo no Rio parecia usar cocaína”.

 

Tinha também sérios problemas com o seu corpo. Estava sempre incomodada com suas pretensas dificuldades de alcançar o padrão de beleza que almejava. Como ela relata em seu livro, “se subisse na balança, arruinava o dia inteiro”. Não podia olhar no espelho... Tinha igualmente sérios distúrbios com a alimentação: “Despertava no meio da noite, comia compulsivamente e acordava coberta de migalhas”.

 

Integrou o elenco de vários filmes de sucesso, entre os quais Ghost. Revela que dos filmes que protagonizou, o que mais gostou foi Até o limite da honra. Foi um filme pioneiro: o primeiro que “retratou mulheres em combate - ou uma mulher, de qualquer maneira – e certamente estava desafiando os limites aos mostrar a dinâmica física bruta...”. Foi também pioneira ao registrar uma foto nua e grávida, junto com seu marido e filhos. Ela saiu na capa da revista Vanity Fair. Foi a coragem de glamourizar a gravidez, em vez de apaga-la, como ocorria na época. Ela revela no livro que até hoje vem mais lembrada pela foto do que por qualquer filme que realizou.

 

Teve muitos amores e dois casamentos, um dos quais com Bruce Willis, e engravidou na noite de núpcias, em novembro de 1987. O outro casamento foi com Ashton Kutcher, outro ator. Os dois casamentos não foram adiante. Com respeito à sua primeira separação, com Bruce Willis, sublinha que os dois estavam tão preocupados com seus trabalhos pessoais, ou com os filhos,  que acabaram dedicando pouco tempo um ao outro. E isso foi bem complicado. Ela disse: “Honestamente, desde o início, acho que nós dois éramos mais apaixonados pela ideia de ter filhos do que por ser casados”.

 

Demi Moore sempre teve muita ligação com a espiritualidade, tendo feito diversificadas experiências na área: com monges tibetanos, com xamãs e com a cabala. Sublinha que em determinados momentos de sua vida revirou as possibilidades espirituais. Não se dava, porém, com as religiões organizadas. 

 

O livro se conclui com uma pergunta: “Como cheguei até aqui?”. Ela repete a frase ao reviver os vários momentos de sua vida. Reconhece que tentou lutar contra as intempéries, com resiliência continuada, mas acabou se dando conta que cuidou mais dos outros do que dela mesma. Ao final do livro, ela relata:

 

“As coisas acontecem na vida para chamar nossa atenção - nos fazer acordar. Isso significa que tive que perder muito antes de me destruir o suficiente para me reconstruir? Acho que significa que o que me trouxe até aqui, essa incrível resistência, foi o que quase me arruinou. Cheguei a um lugar em que não conseguia mais apenas me esforçar. Eu só poderia me dobrar ou me quebrar”.

 

Na conclusão, ela cita Paulo Coelho: “O universo conspira para lhe dar tudo o que você deseja, mas nem sempre da maneira que espera”. Reconhece, terminando o livro, que passou por situações muito pesadas, tendo ao fim descoberto que “a única saída é olhar para dentro”.

 

Revisando essa biografia de Demi Moore, conseguimos entender as razões que a motivaram a protagonizar a personagem desse excelente filme que é A substância. Trata-se de um filme imperdível.

Genocídio ?

 Genocídio ?

 

A recente demanda do papa Francisco em favor de uma investigação da comunidade internacional a respeito da atual conduta bélica de Israel em Gaza e no Líbano vem, a meu ver,  coberta de razão. Nada mais essencial no momento atual do que colocar a nu a política agressiva de Netanyahu. O que vem ocorrendo, sem dúvida alguma, é um genocídio. 

 

Fico preocupado com recentes postagens no Instagram que traduzem uma defesa explícita de Israel, e justificam tudo o que vem ocorrendo como uma resposta lícita aos ataques sofridos pelo país em outubro de 2023. Em casos concretos, recorrem ao pensamento de Heschel para justificar a argumentação. Isso, a meu ver, é das maiores injustiças cometidas contra um dos mais proféticos místicos do mundo judaico, alguém que sempre esteve à frente da defesa do diálogo e da paz. Para Heschel, o conceito de Deus não é algo abstrato, mas tecido de benevolência e pathos. Trata-se de alguém que é mensch, e sua face transparece “no rosto de todos os homens”. É alguém que não aceita a opressão e a dor dos humanos; alguém que acolhe a dor dos olhos sufocados pela opressão; alguém que “esqueceu seu coração” dentro do peito de todos aqueles que buscam a justiça autêntica.

 

Na tradição judaica, temos também a profética presença de Martin Buber, que defendeu até a morte um caminho diverso para Israel. Um caminho diverso daquele degenerado que se firmou, quando o sionismo religioso transformou-se em sionismo político. Somos testemunhas de algumas tragédias terríveis que ocorreram em tempos modernos, como, por exemplo, a atuação injustificada de Ariel Sharon, que comandou com suas milícias falangistas o pogrom dos campos palestinos de Sabra e Chatila. 

 

Marco Lucchesi, em seu belo livro “Os olhos do deserto”, fala de sua profunda tristeza com aquilo que viu nos campos de Sabra e Chatila, que definiu como um “mundo esquálido e sombrio. Horizonte sem horizonte. Tristeza sem lágrimas”. Quantos corpos “afogados” abaixo do campo de futebol ou sob a mesquita. Lucchesi expressa sua “raiva e compaixão”, e também sua “vergonha”, enquanto ser humano. Ao final de seu texto lança seu grito:

 

“Carrascos destes campos. Vermes! Algozes! Morrei no próprio sangue! Morrei na fezes! Morrei no esperma de vossa progênie! Malditos, morrei! Um inferno não há de bastar! Carrascos de Bikenau, de Auschwitz. Carrascos de Sabra e Chatila. Melhor fora para vós jamais ter nascido. Sede malditos”.

 

Outro grande pensador, que dedicou sua vida ao diálogo, e terminou seus dias como muçulmano, também sempre reagiu de forma crítica a determinada política de Israel. Trata-se do pensador francês, Roger Garaudy. Manteve acesa sua crítica contra o que denominou “leitura sionista, tribalista e nacionalista” de textos judeus que celebram um “mito travestido de história”, bem como “seu uso político”. É o caso nefasto da utilização do conceito de “povo eleito”. Um conceito que revela, na prática, a imagem de um deus unilateral, ou ainda melhor, de um “fator deus” , de um deus ou ídolo que justifica a priori todas as opressões, colonizações e massacres, “como se no mundo não existisse nenhuma outra ´história santa` do que aquela dos judeus.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Gustavo Gutiérrez, o resgate de uma teologia espiritual

 Gustavo Gutiérrez: o resgate de uma teologia espiritual

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

Nós somos uma geração de teólogas e teólogos que firmaram sua vocação na recepção da TdL. Isso no final dos anos 1970 e início de 1980. O primeiro contato que tive com o livro inaugural de Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação (TdL), foi logo depois de seu lançamento no Brasil. O pe. Jaime Snoek, do Departamento de Filosofia e Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, ministrou um curso sobre o livro em 1976. Na mesma ocasião fizemos um grupo de estudos em Juiz de Fora sobre o livro, e que foi muito enriquecedor.

 

O aprofundamento da reflexão sobre a TdL e Gustavo Gutiérrez aconteceu durante o meu mestrado em teologia na PUC-RJ, em momento histórico singular, quando ali lecionavam professores bem sintonizados com a TdL, entre os quais  João Batista Libânio, Garcia Rubio, Clodovis Boff e Pedro Ribeiro de Oliveira. Foi muito útil para os estudantes o livro de Clodovis Boff,  Teologia e Prática, que tinha sido publicado pela editora Vozes em 1978. Recém chegado de seu doutorado em Louvain, na Bélgica, Clodovis Boff trabalhou seu livro de forma pormenorizada com os alunos então inscritos na pós-graduação.

 

No celeiro da PUC-RJ formaram-se inúmeros teólogos empenhados com a TdL, incluindo muitas leigas e leigos. Talvez tenha sido um momento primoroso da tessitura leiga, com nomes que vão irradiar essa nova visão teológica por todo o Brasil. Era também o tempo em que dioceses comprometidas com a pastoral popular mandavam seus estudantes para os estudos de teologia na PUC, facultando uma rica interlocução da pastoral e a teologia. Estudavam na PUC estudantes vindos de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Volta Redonda etc. 

 

Os que estudamos na Gregoriana, fizemos o nosso doutorado nos anos “quentes” da TdL, quando L.Boff e Gustavo Gutiérrez estavam sob o jugo da Congregação para a Doutrina da Fé (o ex Santo Ofício), em meados de 1983-1985. Recordo-me de que alguns professores da Gregoriana, como Juan Alfaro, dedicavam espaço privilegiado a temas relacionados à TdL. Havia um carinho particular por nomes fundamentais da TdL como Gustavo Gutiérrez, LeonardoBoff, Jon Sobrino, Juan Luis Segundo, Ignacio Ellacuria, Ronaldo Muñoz, João Batista Libânio  e outros. 

Não é meu objetivo aqui traçar os passos fundamentais da TdL, mas circunscrever-me a alguns elementos significativos da teologia de Gustavo Gutiérrez, que a meu ver foram essenciais para a nossa recepção da TdL aqui no Brasil. 

 

Na visão de Gustavo Gutiérrez, não há como entender a teologia senão como uma reflexão crítica, cujo primeiro momento não é teorético, mas testemunhal. Ele diz com razão que em primeiro lugar vem o compromisso com os outros, e em particular com os pobres e excluídos. Só em seguida vem a reflexão teológica, entendida como o “grito articulado dos pobres”[1].

 

O papel fundamental exercido pela atenção à praxis histórica veio como desdobramento da redescoberta da dimensão escatológica. Segundo Gutiérrez, “se a história humana é, antes de tudo, abertura ao futuro, aparece como tarefa, como labor político; construindo-a o homem orienta-se e abre-se ao dom que dá sentido último à história”[2].

 

Destaques que quero sublinhar:

 

A unidade da história

 

Talvez um dos elementos fulcrais da visão teológica de Gustavo Gutiérrez relaciona-se com a sua percepção viva da unidade da história. Trata-se da retomada de um tema bem presente na teologia francesa pré-conciliar, ligada ao pensamentos de autores como Henri de Lubac, Y.Congar e D. Chenu. Podemos ainda acrescentar a novidadeira visão teológica de Karl Rahner. Foram os primeiros teólogos que balançaram o arcabouço barroco da teologia tradicional, que rompia com a dualidade entre o natural e o sobrenatural[3]. No rastro desses teólogos, Gustavo Gutiérrez enfatizou o fundamental vínculo que une o natural e o sobrenatural, a libertação e a salvação. A seu ver, “a história da salvação é a própria entranha da história humana”[4]. Firma-se, assim, a ênfase na unidade do plano da salvação, que abraça e envolve a dinâmica histórica. Para Gutiérrez, “o devir histórico da humanidade deve ser definitivamente situado no horizonte salvífico”[5].

 

A prática da justiça como locus do conhecimento de Deus

 

Na perspectiva aberta por Gustavo Gutiérrez, o encontro verdadeiro com Deus se dá na história concreta. É outro traço distintivo da visão teológica de Gustavo Gutiérrez. Com base no pensamento do biblista G. Von Rad[6], ele relata que é na história que Deus revela o mistério de sua pessoa; é nela que se firma o espaço de nosso encontro com o Mistério Maior. A humanidade não vem destituída do aroma salvífico, mas é nela que se desvela o verdadeiro templo de Deus.

 

Se a história traduz o cenário da dinâmica salvífica, o conhecimento de Deus se opera através da prática das virtudes fundamentais, e em particular a prática da justiça. Com base no livro de Jeremias, Gutiérrez vai pontuar que o conhecimento de Deus está vinculado ao amor de Deus, e o acesso a tal conhecimento se dá mediante as obras de justiça[7]. Para Gutiérrez, 

 

“Conhecer a Javé, o que em linguagem bíblica quer dizer amar a Javé, é estabelecer relações justas entre os homens, é reconhecer o direito dos pobres. Através da justiça inter-humana é que se conhece o Deus da revelação bíblica. Quando esta não existe, Deus é ignorado, está ausente”[8].

 

Não pode haver fé autêntica sem a realização de obras. O exercício da justiça e da solidariedade são passos fundamentais para a revelação do Deus da Vida. A caridade revela-se como presença viva do amor de Deus em nós. Um exemplo vivo dessa caridade política encontramos na parábola do bom samaritano (Lc 10, 29-37). Trata-se da parábola que desnuda para nós quem de fato é o nosso próximo. Na hermenêutica feita por Gutiérrez, foi com o gesto do samaritano que se deu o verdadeiro encontro com o outro. Ele acerca-se do ferido à beira do caminho não “por um frio cumprimento de obrigação religiosa, mas porque ´se lhe revolvem as entranhas`(...), porque seu amor por esse homem se faz carne nele”[9].

 

O fundamento teológico da opção pelos pobres

 

O tema dos pobres é nuclear na TdL. Em outra obra fundamental de Gustavo Gutiérrez,  A força histórica dos pobres[10], ele vai dedicar dois capítulos às Conferências Episcopais de Medellín e Puebla. Em sua reflexão, será de extrema importância o recurso feito à obra do beneditino Jacques Dupont, em torno das Bem Aventuranças[11]. Há um direto influxo de Gutiérrez no número 1142 do Documento de Puebla, que diz:

 

“Só por este motivo, os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual for a sua situação moral ou pessoal em que se encontram. Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma a sua defesa e os ama”[12].

 

Como indica Gutiérrez,  a preferência pelos pobres encontra sua base fundamental no fato deles serem amados por Deus. Não se trata de uma preferência em razão de atributos morais ou disposições espirituais, mas em razão da materialidade própria de sua situação de pobreza. Não que seja uma opção pela pobreza, mas sim, contra a pobreza e em favor dos pobres. O teólogo peruano recorre igualmente ao Documento de Trabalho de Puebla, que dizia que este privilégio dos pobres está relacionado com o horizonte do Reino de Deus, na medida em que este Reino traduz uma manifestação viva do amor preferencial de Deus pelos excluídos. Há portanto um traço teológico fundamental nesta opção. Podemos dizer que as bem-aventuranças nos dizem mais sobre Deus do que sobre os pobres: constituem a revelação mais clara da disposição essencial de Deus em favor dos pobres e marginalizados. 

 

Em tese doutoral, defendida na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, o teólogo jesuíta, Inácio Neutzling,  dedicou-se a esse tema específico do Reino de Deus e os pobres, inspirado igualmente na obra inaugural de Gustavo Gutiérrez[13]. Para Inácio, “Deus, como Deus e porque é Deus, opta preferencialmente pelos pobres, a partir dos quais Ele age a favor ´de todos os grupos e sociedades deste mundo`[14]”. Com as bem-aventuranças estamos diante de uma nova ordem de valores, onde os pobres são objeto radical do amor de Deus:

 

“As bem-aventuranças significam na boca de Jesus a proclamação de um ´rotundo não, da parte de Deus sobre a ordem de valores morais, religiosos, sociais, econômicos e jurídicos vigentes; sobre os homens condenados pelo ´não` da sociedade. Jesus, através das bem-aventuranças, pronuncia o ´sim`de Deus`(...). As bem-aventuranças nos revelam claramente quem é o Deus do Reino que Jesus vem anunciar”[15].

 

O tema da igreja dos pobres já tinha sido aventado de forma extraordinária pelo papa João XXIII em radiomensagem de setembro de 1962, um mês antes do Concílio Vaticano II. Ele dizia que a igreja devia apresentar-se “como a igreja de todos e particularmente a igreja dos pobres”. E esse desafio veio apresentado na sala conciliar pelo então arcebispo de Bologna, Cardeal Lercaro, durante o final da primeira seção do Concílio. Para ele, a temática da evangelização dos pobres não deveria ser um tema entre outros do concílio, mas o “único tema de todo o Vaticano II”. O Concílio não deixou de abordar essa questão, que aparece no número 8 da Constituição Dogmática Lumen Gentium. Porém, na América Latina, esse desafio essencial vai irromper de forma magnífica nas Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979).

 

4. Uma espiritualidade libertadora

 

Por fim, podemos indicar outra questão singular do pensamento de Gustavo Gutiérrez, já presente em seu livro inaugural sobre a Teologia da Libertação. Trata-se do tema da espiritualidade da libertação. O teólogo peruano anuncia o tema no capítulo 8, quando menciona a urgência da elaboração de uma espiritualidade da libertação[16]. Estava no ocasião preocupado com a vida de oração pessoal e comunitária de tantos cristãos empenhados no processo de libertação. A convocação de Gutiérrez em favor de uma espiritualidade libertadora revelava a sua preocupação em favor de um equilíbrio mais sadio entre ação e contemplação. 

 

O tema vem retomado de forma mais explícita no capítulo 10 de seu livro inaugural, com o título “Uma espiritualidade da libertação”[17]. A espiritualidade vem definida por Gutiérrez como “uma atitude vital, global e sintética” que informa toda a dinâmica da vida. Trata-se da presença do Espírito, que deve estar na base de qualquer iniciativa libertadora. A espiritualidade é “uma forma concreta, movida pelo Espírito, de viver o evangelho. Maneira precisa de viver ´diante do Senhor` em solidariedade com todos os homens, ´com o Senhor` e diante dos homens”[18]. E novamente a preocupação de um equilíbrio mais sadio para a militância:

 

“Para muitos, o encontro com o Senhor, nessas condições, pode desaparecer em benefício do que ele próprio suscita e alimenta: o amor do homem. Amor que desconhecerá, então, toda a plenitude que encerra (...). Lá onde a opressão e a libertação do homem parecem esquecer a Deus – um Deus peneirado por nossa própria e grande indiferença ante essas questões – deve brotar a fé e a esperança naquele que vem arrancar pela raiz a injustiça e trazer, de forma irreversível, a libertação total”[19].

 

Vale lembrar que essa preocupação de Gustavo Gutiérrez vinha igualmente partilhada por outros teólogos latino-americanos, entre os quais Jon Sobrino. Esse teólogo jesuíta, que atuou em El Salvador, escreveu um livro de título precioso: Libertação com espírito. O livro veio traduzido em português com outro título: Espiritualidade da libertação[20]. Sobrino acentua a importância de viver a vida histórica “com espírito”. E assim o fazendo, os cristãos conseguem ser mais “eficazes” em sua luta libertadora. Se na década de 1970 o acento se deu sobre a necessidade da vida histórica para a dinâmica da vida espiritual; por sua vez, na década de 1980 processou-se o dado complementar de que o compromisso na história deve ser banhado pela vida espiritual[21].

 

Esse tema essencial veio retomado por Gustavo Gutiérrez em outra obra: Beber no próprio poço, com tradução brasileira em 1984[22]. Como em todas as suas obras, mantinha-se firme para Gutiérrez a preocupação essencial com os pobres e excluídos, ou seja, aqueles que vivem, em razão da pobreza e exclusão, numa terra estranha e num mundo alheio. São aqueles que estão privados de seus legítimos interesses e subjugados pela dominação. Mas são igualmente um povo profundamente espiritual e crente. Gutiérrez enfatiza que o encontro com o Senhor pressupõe esse êxodo espiritual em direção ao mundo dos pobres, incluindo sua vital experiência espiritual.

 

Para Gutiérrez o trabalho de empenho em favor da libertação dos pobres envolve a busca de eficácia, mas eficácia não exclui a espiritualidade, mas a pressupõe como um clima essencial para o trabalho libertador. Ela torna-se, assim, o “clima que invade e se instala em toda a busca de eficiência. É algo de mais fino e precioso do que o próprio equilíbrio a ser mantido entre dois aspectos importantes de uma mesma questão”[23]. Essa consciência foi ocorrendo durante o processo mesmo da inserção no mundo popular. O essencial ponto de arranque se deu quando se compreendeu que “o encontro pleno e verdadeiro com o irmão exige que passemos pela experiência da gratuidade do amor de Deus”[24]. A gratuidade é um poderoso antídoto contra a hybris totalitária, a desmesura, a síndrome de superioridade ética e a vontade de imposição sobre os outros. É algo que faculta a humildade fundamental e a disponibilidade serena para a acolhida e respeito do mundo do outro. Trata-se de uma experiência nuclear, que “confere ao processo humano sua total significação”[25].

 

O tema reaparece na introdução feita por Gustavo Gutiérrez para a segunda edição de seu livro inaugural, com o título: Olhar longe. O teólogo retoma a ideia da singularidade espiritual do povo latino-americano, um povo que simultaneamente crê e espera. Sugere que a teologia beba profundamente nessa prática orante de nosso povo. Destaca um lugar fundamental à prática da oração. Ela é “uma forma privilegiada de estar em comunhão com Cristo e de guardar, como sua mãe, ´cuidadosamente as coisas em seu coração`(Lc 2,51)”[26].

 

No Brasil, o frei Carlos Mesters, em livro precioso – Seis dias nos porões da humanidade (1977)[27] - , sinaliza a importância de resgatar e enfatizar a gratuidade do evangelho, nem sempre priorizada em práticas pastorais que enfatizaram mais a dimensão conscientizadora do evangelho. Ele sublinha que tal unilateralidade não o satisfaz plenamente. Enfatiza, então, o lado orante, festivo e celebrativo da palavra de Deus. Indica que essa, sim, é a dimensão que ele sente grande necessidade: “Ficar sem fazer nada, à toa, quase preguiçoso diante de Deus, sentir a gratuidade da vida e alegrar-se com isso, sem nenhum outro objetivo, a não ser o de sentir a alegria de viver no convívio com Deus e com os irmãos”[28].

 

Essa preocupação de Gutiérrez e Sobrino está igualmente viva no pensamento místico de Teresa de Ávila, no Livro das Moradas, em particular nas Quintas Moradas. É o momento em que Teresa aponta para as carmelitas o que considera um “atalho” fundamental para se alcançar a verdadeira vida espiritual. Ela identifica esse caminho no amor aos outros: “Quanto a nós, só estas duas pede o Senhor: amor de Deus e amor do próximo”[29]. A observância da caridade fraterna é para Teresa o sinal mais profundo de realização desses dois amores. Diz ela: “Quanto mais adiantadas estiverdes no amor ao próximo, tanto mais o estareis no amor de Deus” (n. 8). E complementa no número seguinte (n. 9): “O amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor de Deus”[30].

 

Em artigo posterior de Gustavo Gutiérrez, publicado em livro organizado por Rosino Gibellini, em 2003[31], ele aponta como dois grandes desafios para a teologia da libertação no século XXI, os tema do pluralismo religioso e do aprofundamento da espiritualidade. O pluralismo religioso vem por ele identificado como um “território novo e exigente” para a TdL. Sublinha igualmente o desafio da espiritualidade. A atenção à espiritualidade firma-se como passo fundamental de uma dinâmica que se pretende libertadora. É uma forma de ir ao “fundo das coisas” e captar a sua raiz essencial. É na profundidade, no braseiro interior, que se revela o mistério do encontro entre o amor a Deus e o amor aos outros. Nesse sentido, “no coração da opção pelos pobres há um elemento espiritual de experiência do amor gratuito de Deus”[32].

.....

 



[1] Gustavo Gutiérrez. Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 24.

[2] Ibidem, p. 22.

[3] Ver a respeito: Giuseppe Colombo. El tramonto del termine ´sopranaturalle`. In: Dizionario Teologico Interdisciplinare III. Marietti, 1977, p. 297-301.

[4] Gustavo Gutiérrez. Teologia da Libertação, p. 129.

[5] Ibidem, p. 129. Sobre o tema ver igualmente: Faustino Teixeira. Comunidade eclesiais de base: bases teológicas. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 61-101 (A relação entre salvação e libertação; Conhecimento de Deus e prática da justiça).

[6] Gerhard von Rad. Teologia do Antigo Testamento. 3 ed. Aste, 2006.

[7] Gustavo Gutiérrez. Teologia da Libertação, p. 162.

[8] Ibidem, p. 163.

[9] Ibidem, p. 167.

[10] Gustavo Gutiérrez. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981 (o original é de 1979).

[11] Jacques Dupont. Le Beatitudini I e II. 4 ed.  Roma:  Paoline, 1979.

[12] III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 276 (n. 1142).

[13] Inácio Neutzling. O Reino de Deus e os pobres. São Paulo: Loyola, 1986.

[14] Ibidem, p. 88.

[15] Ibidem, p. 102.

[16] Gustavo Gutiérrez. Teologia da Libertação, p. 116.

[17] Ibidem, p. 172-176.

[18] Ibidem, p. 172.

[19] Ibidem, p. 173.

[20] Jon Sobrino. Espiritualidade da libertação. Estrutura e conteúdos. São Paulo: Loyola, 1992. 

[21] Ibidem, p. 15-16.

[22] Gustavo Gutiérrez. Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo. Petrópolis: Vozes, 1984.

[23] Ibidem, p. 120.

[24] Ibidem, p. 125.

[25] Ibidem, p. 125.

[26] Gustavo Gutiérrez. Teologia da Libertação. Perspectivas. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2000, p. 31 (Introdução).

[27] Carlos Mesters. Seis dias nos porões da humanidade.  Petrópolis: Vozes, 1977.

[28] Ibidem, p. 108.

[29] Santa Teresa de Jesus. Castelo interior ou moradas.  8 ed, São Paulo: Paulus, 1981, p. 120 (Quintas Moradas, Capítulo III, 7).

[30] Ibidem, p. 121.

[31] Gustavo Gutiérrez. Situazione compiti della teologia della liberazione. In: Rosino Gibellini (Ed.)  Prospettive teologiche per il XXI secolo. Brescia: Queriniana, 2003, p. 93-111.

[32] Ibidem, p. 109.