terça-feira, 13 de abril de 2010

Advento de novos valores

Advento de novos valores

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

“Sinto-me nascido a cada momento

para a eterna novidade do mundo...”

(Fernando Pessoa)

 

 

O  Natal representa para os cristãos um tempo de particular beleza. Despertam-se energias inusitadas e a temperatura do coração vem aquecida por sensibilidade nova para com todas as coisas. É um tempo de luzes e de esperanças, que abre espaço para a Presença viva da Eterna Criança que mora na nossa aldeia. Em belo poema, Fernando Pessoa fala dessa Criança Nova e especial, do “humano que é natural”, do “divino que sorri e que brinca”, que com uma de suas mãos nos acolhe e com a outra abraça tudo o que existe. Essa irradiação de alegria que acompanha o Natal, vem antecipada pelo advento, tempo de expectativa e também de delicadeza, onde somos convidados a retomar valores fundamentais, muitas vezes esquecidos no frenético ritmo da sociedade em que vivemos.

 

Nesse tempo de advento fui despertado de forma muito singular pela linda carta de Sônia Viegas (1944-1989), escrita em fevereiro de 1983 para as duas filhas que completavam quinze anos. A carta vem inserida num dos volumes de Escritos da pensadora que atuou intensamente na vida cultural mineira dos anos 70 e 80 e que agora foram reunidos pela Editora Tessitura (Belo Horizonte, 2009). Ao escrever para as filhas gêmeas, Ângela e Mônica, revela que o presente que gostaria de oferecer a elas quando completavam quinze anos era diferente do usual. Queria aproveitar o momento especial para indicar idéias-força que pontuavam sua visão de mundo e pelas quais valeria a pena viver.

 

A primeira idéia apontada toca a questão da verdade. Sônia sinaliza a importância essencial de se viver de maneira verdadeira. Mas como indica,

 

“a verdade não existe pronta. Tem de ser  inventada, descoberta. E o critério para a gente saber que descobriu a verdade é a intensidade com que vivemos cada momento (...). Escolher a verdade é como entrar num campo de batalha desarmado. Acontece que, no dia-a-dia, a condição para sermos nós mesmos é podermos ser atingidos pelo outro, é estarmos desarmados. A verdade vai se revelando à medida que vamos revelando a nós mesmos e aos outros nossos sentimentos,  nossas intenções, nossa vontade, nosso medo. É importante ter objetivos na vida, mas o que justifica uma existência é a capacidade de viver na verdade”.

 

A segunda idéia apresentada é a de amor. E aqui o amor vem situado numa perspectiva bem ampla. O amor é o que dá razão e sentido à vida: “uma existência cheia de amor possui um mundo. Uma existência sem amor ocupa um lugar”. Nada mais desafiante e decisivo na vida do que preencher de amor e cuidado tudo o que fazemos em nosso cotidiano. E isto exige atenção, cortesia e delicadeza para com todos aqueles que nos envolvem e também com todas as coisas que nos rodeiam. Há que estar desperto para saber ouvir o “canto das coisas”. O amor requer zelo e cuidado. Não nasce cultivado, mas é um valor que desenvolvemos a cada dia como aprendizagem permanente. O sentido que nos habita é sempre novidadeiro e nunca se esgota. É o mundo mesmo que “se multiplica em novidade quando vivido com amor”.

 

Acompanhando o amor está a idéia-força da alegria. O compositor e poeta, Chico Buarque de Holanda, também brindava sua filha com a riqueza desse horizonte: “E que você seja da alegria sempre uma aprendiz”. Não se trata de algo assim tão difícil: está sempre à nossa disposição, desde que nos disponhamos a abrir o coração para captar os delicados sinais que nos envolvem por toda parte e saber saborear as pequenas coisas:

 

“A alegria de uma conversa com um amigo, de sentir o primeiro raio do sol; de sentir o calor  do fogo num dia frio; de descobrir a primeira estrela no céu após uma longa temporada de chuva; de escutar o barulho do vento nas folhas; de contemplar uma forma bonita; de consertar um objeto que estava estragado. Essas pequenas coisas acontecem a cada momento, mesmo quando nossa vida está passando por uma fase difícil. Aprendendo a sentir a alegria das pequenas coisas, alimentamos nossa alma, enriquecemos nossa vida interior”

 

Os grandes contemplativos, como Thomas Merton, são mestres de uma alegria que vem tecida pela atenção ao cotidiano. Em bela descrição de sua vida no eremitério, em março de 1965, dizia que sua nova experiência abria janelas inusitadas de percepção: “que o universo é minha casa e que, se não for parte dele, eu não sou nada”. Estava diante de um desafio essencial: simplesmente viver. E tudo que o rodeava preenchia-o de alegria. Nada mais do que testemunhar “o valor da bondade das coisas” e saber amar a Deus em tudo isso.

 

Outra idéia apresentada por Sônia Viegas é a esperança. A esperança é algo bem distinto da expectativa. Enquanto a expectativa envolve previsão, a esperança guarda a surpresa de uma aposta preservada da irremediabilidade. Como sublinha Sônia, “ter esperança é apostar em alguém ou em algo, mesmo sem previsão objetiva possível de que o que esperamos acontecerá”.

 

E, finalmente, a quinta idéia-força é a beleza. Mesmo que não seja imediatamente visível, a beleza está sempre aí, basta sensibilidade e escuta poética para saber acolher a sua presença. Há que saber desocultá-la nas pessoas e nas coisas. É tão bonito reconhecer a beleza que se expressa num sorriso ou num pequeno gesto. Somos tocados pela experiência da maravilha, que renova e encanta o nosso mundo interior. Trata-se de um aprendizado fundamental. A beleza acontece quando o corpo é capaz de traduzir a alma. Na verdade, “as pessoas espontâneas são belas. Na beleza que descobrimos ou fabricamos em  nós e em torno de nós, colocamos a nossa alma e encontramos o nosso equilíbrio”.

 

É preocupante para todos constatar que a depressão vai se firmando como “a doença mental de maior expansão no planeta”. Há que reagir contra essa tendência fazendo aflorar a vitalidade essencial que habita o mundo interior, mas que nem sempre encontra espaço de cidadania em nosso tempo de ensimesmamentos, de produtividade,  concorrência desenfreada e busca do lucro a todo custo. Na pressão necrófila desses falsos valores a pessoa acaba se encolhendo e adoecendo. Estamos diante do risco da afirmação de vidas “vazias de sentido, de criatividade e de valor”. As idéias-força apontadas por Sônias Viegas vão num caminho alternativo e devem ser retomadas continuamente para o essencial equilíbrio vital. Esse tempo de advento é um tempo propício para refletir sobre tudo isso e recomeçar a vida sob novas bases, redescobrindo a “Criança Nova” que habita em nossa aldeia.

 

(Publicado na Amaivos em 18/12/2009)

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