terça-feira, 2 de abril de 2024

Os desdobramentos do Transplante de Medula Óssea

 Os desdobramentos do Transplante de Medula Óssea

 

Faustino Teixeira

 

            Depois que realizei o meu transplante de medula, em junho de 2020, resolvi colocar por escrito a experiência vivida nos 35 dias de internação no Hospital Monte Sinai, em Juiz de Fora (MG). O relato veio publicado no Caderno IHU-Ideias de 2020 (v. 18, n. 298)[1]. Em meu texto dizia ao final que tinha ainda uma longa caminhada pela frente. A realidade da cura levaria cerca de 5 anos. Recordo aqui o que mencionei ao final do relato:

 

“Agora é manter aceso os cuidados, com muito dedicação e atenção, evitando todos os riscos e celebrar intensamente cada dia como uma vitória a mais. Eu que gosto tanto das árvores estou agora cercado por elas na minha casa no Tiguera, que é belíssima, com tantas espécies e pássaros de todos os tipos. Essa nova integração vem produzindo em mim uma alegria cósmica inaugural. Agora com os filhos e netos por perto a festa há de continuar, sob os cuidados de Deus e de todos os anjos, com as orações e preces dos amigos e parentes que me cercam.”

 

Passado um tempo do transplante realizado com sucesso, queria ainda compartilhar aqui com os amigos, um e-mail de grande importância, que enviei ao meu médico, Angelo Atalla, reiterando minha vontade de fazer o transplante com ele, sem ter que ouvir outros especialistas no tema. Depositei, por inteiro, minha confiança nele. Disse no e-mail, em 19 de fevereiro de 2020:

 

Ângelo querido,

Andei pensando muito no que você falou com a Teita, e também com o Henrique. Entendo perfeitamente sua preocupação e o cuidado tão especial que você está tendo com o meu caso. Eu também pensei muito ao longo desse tempo. Quando soube pela primeira vez da hipótese do transplante, tive que organizar meu mundo interior para acolher a notícia. Trabalhei esse universo íntimo por semanas, até que acolhi com alegria a proposta. Digo a você que esse hipótese de ir a São Paulo consultar um outro especialista e fazer um novo exame não teve a mesma cidadania interior. Temos vários fatores importantes em jogo que conjugam para o transplante. Estou no idade limite, como você mesmo disse. E olha que já estamos quase em março. Tenho que fazer uma série de exames para dar cabo da preparação necessária. Além disso, tem a questão de sua presença. Desde o início confiei profundamente em você, e continuo mantendo esse vínculo de afeição e reconhecimento. Você, como eu, também está na época certa para fazer o procedimento. Outro fator, é a minha dependência ao Jakav, um medicamento de 24.000 mensais. Não sei até quando poderei conseguir essa “boa vontade” da Unimed em atender uma exigência da Anvisa. Tenho temor de que a médio prazo, não terei mais esse recurso precioso que organizou de novo minha vida. A Hydrea, com seu valor inicial, acabou prejudicando muito o meu organismo. Se estivesse com ela ainda hoje, não sei o que seria de mim. Outro fator, é temer uma certa confusão na cabeça, em razão de eventualmente o médico de São Paulo colocar outras questões que desorganizem o meu mundo interior. Acho, amigo, que o momento é certo. Respaldado sobretudo pela imensa sorte de ter encontrado um doador compatível. E o Henrique está acolhendo a ideia de forma singularmente afetiva e carinhosa. Tudo conjuga a favor do transplante. É a chance que tenho para poder alcançar uma qualidade de vida que me favoreça continuar com minhas pesquisas e atividades, pelo tempo que for disponível. Estou num momento importante da minha vida, com um ritmo bem mais calmo e protegido por uma série de profissionais que cuidam desse meu mundo interior, fora as orações que fazem parte viva de meu cotidiano. Nesse sentido, acho meio “desperdício” ter que ir a São Paulo para, praticamente, confirmar a necessidade de um transplante. Você sabe que eu confio muito em você e estou preparado para o que der e vier, assumindo pessoalmente todas as eventuais complicações que possam ocorrer. Desde que passei a ser cuidado, de uma forma única por você, criou-se um laço de amizade e confiança que é admirável. Impressionante o carinho que sinto sob seus cuidados: sua generosidade, sua capacidade de acolhida e escuta, bem como sua ternura. Acho que podemos decidir juntos pelo transplante, independente de São Paulo. Vejo o tempo propício. Consegui me desvencilhar de todas as atividades no primeiro semestre: não vou dar mais o meu curso de GSV, que espero poder se realizar no segundo semestre; cancelei também outros compromissos, incluindo uma viagem de navio da Itália para o Brasil. O mesmo ocorreu com Teita, que se desvencilhou de seus compromissos para abraçar com carinho esse momento especial da minha vida. Estou com o espirito pronto. Se você achar MUITO necessária essa viagem a São Paulo, seguirei, como sempre venho fazendo, as suas indicações, mas acho, sinceramente, meio “dispensável” dadas as condições favoráveis para o procedimento aqui em Juiz de Fora. Não sou muito dado aos “grandes” especialistas e “grandes” centros hospitalares. Estou satisfeito e realizado com o atendimento que venho recebendo aqui, por seu intermédio. Gosto de seguir o MEU médico. Queria poder expressar isso para você, mantendo-me integralmente disposto a entrar junto com você numa nova aventura, que será para mim, certamente, um motivo a mais para o meu crescimento interior.

Com grande carinho, Faustino (Dudu)

 

Agora em março de 2024, quase quatro anos depois do transplante, consegui o acesso ao prontuário do Hospital Monte Sinai para acompanhar os desdobramentos do transplante. Fiquei surpreso com o volume do material: o registro é realmente impressionante, com todos os dados envolvidos nos procedimentos que foram realizados: toda a medicação tomada ou injetada, a evolução médica, as prescrições realizadas etc. Por três dias fiz a leitura atenta do material e, confesso, saí meio abatido desse mergulho posterior. Algumas coisas em particular chamaram-me a atenção, como medicamentos que tomei, que nem me lembrava, as situações de ansiedade, agitação e mesmo mania por que passei, em razão das altas doses de corticoide envolvidas no pós-transplante. Impressionei-me com outros detalhes que ocorreram, como as anemias, as feridas nas pernas, as petéquias pelo corpo, a diabetes provocada pela medicação, as reações alérgicas em momentos pontuais do pós-transplante, as inúmeras insônias, mesmo com as medicações para o sono etc.

 

            A alta hospitalar do transplante propriamente dito foi em 16 de julho de 2020, quando fiquei internado 35 dias. Foi a primeira internação. Ocorre que o processo do transplante é mais amplo, envolvendo a possibilidade de outras internações em razão das ocorrências que podem se dar no pós-transplante. Após sair do hospital, continuei com a rotina ambulatorial, no início duas vezes por semana, e depois uma vez por semana, para os cuidados necessários: pesagem, verificação dos exames de sangue, medida de pressão arterial etc. Os encontros com meu médico depois passaram a ser mensais, sempre no hospital onde fiz o transplante.

 

Em 30 de novembro de 2020, retornei ao hospital para fazer a biópsia de medula e verificar a situação no pós-transplante. Saí no mesmo dia. Nova internação se deu no hospital em  17 de dezembro de 2020 em razão de uma neutropenia febril. Tive alta no dia 20 de dezembro. Mais um retorno ocorreu no dia 29 de janeiro de 2021, em razão da presença de citomegalovírus positivo (CMN), bem como de hematúria (presença de sangue na urina),  petéquias (pontos vermelhos no corpo) e equimoses difusas (hematomas). Foi uma internação um pouco mais longa, com alta no dia 09 de fevereiro. O quadro clínico foi compatível com a infecção  CMV, com diarreias frequentes e pancitopenia (diminuição de todos os elementos celulares do sangue circulante). Já com a presença de medicamentos fortes, entre os quais doses mais altas de corticoide, ocorreram episódios de insônia e mania.

 

            Nova ida ao hospital ocorreu em 19 de fevereiro para nova biópsia de medula óssea e mielograma. A saída ocorreu no mesmo dia. Tive que retornar ao hospital, com nova internação, no dia 22 de fevereiro de 2021, em razão de uma febre contínua, com quadro de dispneia e prostração. Ocorriam ainda feridas com inflamação nas duas pernas. A alta aconteceu no dia 24 de fevereiro.

 

            Ainda outra internação ocorreu no dia 01 de março, para esclarecer uma febre vespertina que já durava há mais de uma semana. Junto com a febre, taquicardia e anemia. Na ocasião foram realizadas uma colonoscopia e tomografia de tórax, seios da face e abdômen. Permaneciam ativos edemas de membros inferiores (MMII) e petéquias na região do cólon. Durante a internação foi igualmente realizada uma transfusão de concentrado de hemácias. Talvez tenha sido um dos momentos mais delicados do pós-transplante, exigindo uma atenção especial dos cuidadores. Foi um momento de muito risco. A alta ocorreu em 17 de março de 2021.

 

            No dia 09 de julho de 2021 foi finalmente retirado o cateter de Hickman, passando então a levar uma vida normal. Em junho de 2024 o transplante completa seu quarto ano, restando ainda mais um ano para ocorrer a cura da doença. Tudo indica que a situação tenda a transcorrer normalmente. O quadro clínico atual é de regularidade, com visitas programadas ao médico responsável a cada três meses.

 

            Tendo passado minha reflexão para o meu clínico, Ângelo Atalla, ele fe alguns esclarecimentos importantes. Minha dúvida era se, de fato, tinha passado pela experiência da Doença do Enxerto Conta o Hospedeiro (DECH). Não tinha visto indícios claros disso no prontuário. O que se sabe pela informação científica disponível, cerca de 40 a 50% dos transplantados de medula óssea podem sofrer com a doença. As manifestações ocorrem em geral na pele, boca, fígado, olho, partes genitais, e pulmão, sendo neste caso bem mais grave. Segundo Angelo, o diagnóstico, no meu caso, foi feito por inferência, em razão de alterações clínicas, de alterações nas enzimas do fígado e da hipocelularidade da medula óssea. O Citomegalovírus (CMV) foi contraído em razão do uso do corticoide. Ou seja, na verdade, eu tive as duas complicações no pós-transplante.

 

            A experiência do transplante teve alguns efeitos bem positivos na minha vida. Em primeiro lugar, a melhora do meu quadro clínico. Tudo ficou bem diferente na minha vida. Voltou o prazer da alimentação. Agora sinto o sabor das coisas, o sabor da água e da comida, algo que cheguei a perder por mais de três anos seguidos. Com a presença das células de meu doador em mim, coisas diferentes ocorreram, como o cabelo no peito, que nunca tive; a ausência de tártaros, que era um sofrimento na minha vida. O transplante provocou também algo de impressionante: ele quebrou o bloqueio de uma ansiedade que perdurava por mais de quarenta anos na minha vida, prejudicando algumas tarefas rotineiras. O que as terapias não conseguiram, o transplante favoreceu a saída que necessitava. Foi como uma nuvem espessa que se desfez sobre a minha cabeça. Percebo hoje que a ansiedade como um todo é um traço bem mais leve em minha vida. Percebo ainda que tenho lidado com bem mais serenidade os passos difíceis da vida, as contingências e impermanências. Mesmo com a morte, essa “indesejada das gentes”, o meu trato é bem mais amigável.

 

Achei por bem reproduzir aqui ao final alguns dos depoimentosque fui recebendo de amigos queridos ao longo do processo do transplante. Eles foram e continuam sendo fundamentais para a minha recuperação. Antes, porém, quero reproduzir aqui a mensagem que passei para os amigos antes do transplante, que foi publicada em meu blog em 07 de junho de 2020, antes de minha internação:

 

Travessia, a arte e a coragem de lidar com a vida

 

Faustino Teixeira

 

 

Na minha última aula do mini-curso sobre o Grande Sertão: Veredas, falei ao final de uma travessia que vou fazer ainda neste mês, que vai envolver muita energia espiritual. Sinto-me preparado, disposto, acolhido... Vejo que o momento é propício para dar mais este salto na minha vida. Trata-se de um transplante de medula óssea alogênico, que  “é aquele no qual as células precursoras da medula provêm de outro indivíduo (doador), de acordo com o nível de compatibilidade do material sanguíneo”. Tive a sorte de encontrar um doador favorável na minha família, o meu irmão Henrique Teixeira, que é 100% compatível, uma chance que nem sempre acontece aos que fazem tal procedimento.

 

A minha história com a doença que foi me fragilizando corporalmente começou em 2005, quando tive o diagnóstico de Policitemia Vera, que é uma poliglobolia, ou seja, um excesso de produção de glóbulos brancos e vermelhos. Na ocasião, num exame de rotina com meu cardiologista, ele verificou esse aumento do hematócrito e me encaminhou para um hematologista. Fui acolhido com carinho e competência pelo dr. Ângelo Atalla, que passou a cuidar de todo o processo de tratamento. Eu talvez tenha utilizado uma estratégia equivocada no início, de ficar lendo sobre a doença na internet ou mesmo as bulas dos remédios. Foi um grande equívoco. Hoje vejo, com clareza, que a gente deve colocar a confiança no profissional que está dirigindo os cuidados, sem ficar fuxicando notícias na internet, que sempre abalam a cabeça.

 

Desde a consulta do cardiologista, passei a tomar medicamentos, inclusive para a pressão, pois comecei a ter pressão alta, em decorrência do engrossamento do sangue. Passei a tomar Aspirina prevent (blindada), entre outros medicamentos. Não foi uma boa solução, pois com o tempo adquiri uma úlcera duodenal de 2,5 centímetros. E foi difícil descobrir, pois todos os sintomas indicavam problemas na coluna. Uma dor nas costas e no tórax que me dificultava inclusive andar muitas horas de carro. Fiz exames para a coluna, e estava certo que a questão estava aí, até que sofri um forte sangramento nas fezes, melena, depois de uma aula no ICH. Não me dei conta da gravidade da situação e ainda desci de ônibus para a casa. No centro da cidade, onde ia pegar um taxi, a situação ficou mais difícil. Fui “socorrido” por Teita e ainda tive mais dois sangramentos durante a noite. Só na manhã, depois de ligar para o meu médico, constatei a gravidade do problema, e ele me encaminhou para uma endoscopia. Foi constatada, então a  lesão, que surpreendeu a médica especialista, que há tempos não via uma úlcera tão grande. Para prevenir, passei a tomar outros medicamentos. Mudei a aspirina pelo clopidogrel e acrescentei o pantoprazol. O clopidogrel era importante, pois um dos maiores riscos que corria era de ter trombose, que nunca, felizmente, ocorreu. 

 

A notícia da doença causou certo “estrago” no equilíbrio vital, e tive que proceder um cuidado delicado com meu mundo interior. Daí ter entrado fundo nos estudos da mística e na vida de oração. Na fase inicial da doença, o tratamento era feito através de sangrias periódicas, onde retirava mensalmente 500 ml de sangue para equilibrar o hematócrito. Foi também um período delicado para mim, apesar de ter tido uma acolhida impressionante no Hemominas de Juiz de Fora. Era um pouco pesado para mim a exposição pública, ali naquela sala coletiva de transfusão de sangue e sangria, onde não dava para “esconder” a vulnerabilidade. Era igualmente tomado de compaixão pela dor dos outros que estavam ali fazendo tratamento: seja de recepção de plaquetas, sangrias e transfusão de sangue. Pude me deparar com pacientes muito jovens, tendo que viver a experiência do limite desde muito cedo. Era o caso, por exemplo, das crianças com anemia falciforme. Há um certo “constrangimento” de ver você como parte de um cenário de vulnerabilidade. E foram anos realizando esse procedimento.

 

Chegou um momento que a sangria não bastava para conter os índices do hematócrito, sobretudo dos leucócitos, que começaram a crescer em maior proporção. Enquanto o limite para os homens é de 10.000, os meus leucócitos chegavam a mais de 20.000. A conselho do meu médico, passei para uma segunda etapa do tratamento, através do hidróxiuréia, indicado para neoplasias, e  para o meu caso e de outros pacientes de anemia falciforme. Foi então que começou outro passo na minha vida pessoal. Aprender a lidar com um novo medicamento, eficiente para o que estava ocorrendo comigo, mas que produzia efeitos colaterais difíceis. No meu caso, tive durante o processo vários problemas de infecções da perna, sobretudo na canela. Foram várias erisipelas e algumas escamações na pele. As unhas também sofreram com o medicamento, com aquele característico traço preto, ainda que discreto. Uma das unhas do pé ficou bem comprometida. Além disso, o meu corpo foi escurecendo. Não cansava de responder a amigos que perguntavam continuamente sobre a temporada de praia que me deixou assim queimadinho. Tenho aqui em casa uma foto na minha sala, onde estou com Teita, e é impressionante como estou escurecido. Ela adora a foto, por isso a deixei na sala. É uma fotografia que sempre me faz recordar a medicação. Fiquei parecido com um indiano. Foi algo impactante. Fazia na ocasião acupuntura, e o meu médico ficava impressionado como tudo se transformava continuamente ali naquele âmbito interior, sobretudo na língua e suas proximidades. Foi também um tempo de muitas aftas, às vezes cinco ou seis ao mesmo tempo. Tive que acolher essa realidade como parte do meu caminho, e o fiz com tranquilidade. Foi impressionante o apoio que tive durante todo o tempo de minha companheira, Teita, e dos filhos e alguns amigos queridos. Os exames de sangue eram feitos mensalmente, e toda vez que ia verificar o resultado pela internet, aquele friúme na barriga. Utilizei o caminho da oração, que precedia cada visualização mensal. Isso fez muito bem para mim.

 

            Chegou a um momento do tratamento, quando estava com 55 anos, em 2010, nunca me esqueço, durante a consulta rotineira, o meu médico, de sopetão, fez uma pergunta difícil para mim: “Qual a sua idade? Quantos irmãos você tem?” Parou, pensou e lançou o petardo: “Penso que não é o caso de fazer um transplante de medula...”. Foi a primeira vez que ouvi dele a sugestão da ideia. Aquilo provocou um terremoto em mim, e demorou para processar no mundo interior. Teita estava comigo na consulta, e ficou impressionada. A partir daí tive que colocar essa hipótese no horizonte, e digo sinceramente para vocês que não foi fácil. 

 

            Utilizei por anos o recurso da hidróxiuréia, mas sentia que o meu médico tinha preocupação de manter esse procedimento por muitos anos, em razão do risco futuro que podia proporcionar. O seu medo maior era o de uma leucemia aguda. A policitemia vera pode evoluir de várias formas, uma delas é a leucemia. No meu caso, o que ocorreu foi uma fibrose da medula: mielofibrose. Descobri através de um dos procedimentos mais dolorosos que já passei na vida, que é a biópsia de medula. Tive que fazer no início do tratamento para constatar a policitemia vera. Fiz uma segunda vez para verificar o grau de fibrose da medula, que já estava avançado: grau 3 em 4. Isso também foi algo que abalou a minha consciência na ocasião. Vi que a situação não estava assim tão fácil. 

 

Veio então, um pouco depois, a decisão de mudar de medicamento. O meu médico estava esperançoso com um novo medicamento, na ocasião ainda em experimentação, que poderia servir de grande apoio no meu caso. Quando ele entrou no mercado, entramos com processo para poder adquirí-lo pelo SUS. Arrumei uma advogada e por cerca de um ano o processo rolou, e fui vitorioso. Tinha também tentado duas vezes pelo meu plano de saúde, Unimed, uma aprovação, que não veio. Foi um ano em que a doença evoluiu e não conseguia o medicamento adequado para o tratamento. Isso foi logo em seguida à segunda biópsia, que revelou a Mielofibrose. Isso foi um pouco antes de minha aposentadoria na UFJF, que aconteceu em 2017. Passei por uma banca médica de avaliação na Universidade que reiterou a posição do meu médico. A sorte estava, porém, ao meu lado, pois no final do ano que venci o processo no SUS, o medicamento JAKAV (Ruxolutinide) saiu na lista da Anvisa, e então o plano de saúde teve que acolher a minha solicitação.

 

Passei então a tomar dois comprimidos diários de Jakav, um medicamento extremamente caro, mas muito eficaz. Na ocasião tomava já seis medicamentos antes ao dia, e com ele, passei a tomar 8. Não teria nenhuma condição de bancar a compra do remédio. Como disse o meu médico: “Não é para o meu bico!”. Era um medicamento de alto custo, mas que a cada mês, religiosamente, chegava em minha casa garantindo o tratamento. Fiz o tratamento por dois anos, quando então o meu médico começou a aventar aquela antiga hipótese. Tinha receio de que o uso prolongado do Jakav poderia ocasionar alguma falha, como é verificado na prática clínica. Também não era um medicamento isento de efeitos colaterais. Muita coisa melhorou na vida: a disposição, a coloração, que voltou ao normal, e a melhora nas aftas. Praticamente deixei de habitar com elas. Outros efeitos, porém, apareceram, sobretudo na pele: as escamações, a coceira, a sudorese noturna, os calafrios que me tomavam de vez em quando. A exposição a vários medicamentos de uso contínuo alterou também o meu paladar, que nunca mais foi o mesmo. Tudo que como ou bebo, tem sempre um acréscimo diferencial. Mesmo a água fica com um sabor amargo. Alguns alimentos ainda dão para perceber o gosto, mesmo que de forma um pouco obtusa, mas outras causam grande dessabor... Mas como com as outras coisas, fui me adaptando e buscando continuar a levar a vida com a alegria de sempre. Dos efeitos colaterais, o pior ocorreu no couro cabeludo. Tive uma infecção por pseudomonas que não houve jeito de me livrar, nem com o uso contínuo de antibióticos. Ela tornou-se minha companheira de jornada. Depois de certo tempo, fui para o método natural, com o recurso ao vinagre de maçã no couro cabeludo diariamente. Um procedimento apenas paliativo. Na hora melhora um pouco, mas depois retornam as coceiras, os incômodos, a ardência e irritação. São espinhazinhas por todo canto, e aquela sensação dolorida que dificulta até pentear os cabelos. Mas assumi isto também como parte de minha trajetória.

 

Veio então a decisão de meu médico para uma terceira biópsia de medula, sempre tão dolorida. No final da segunda biópsia tinha chegado a dizer ao meu médico que seria preferível morrer a ter que passar pela nova experiência. Foi apenas um grito/desabafo momentâneo, que não expressava a realidade das coisas. Mas foi duro! As três biópsias fiz sem anestesia apropriada. Apenas uma anestesia local que não ameniza a IMENSA dor que passei as três vezes que tive que fazer o procedimento, agarrando na mão de Teita e suando frio como nunca! O resultado do terceiro exame foi favorável, o grau de fibrose tinha regredido para 1, o que foi avaliado como muito positivo. Então, numa consulta, o meu médico sugeriu o transplante de medula, agora animado por uma razão prática: eu tinha 65 anos e o procedimento do transplante só é permitido até essa idade. Como faço aniversário no início de julho, tivemos que apressar os procedimentos preparatórios. Escolhemos quatro irmãos para fazerem o exame de compatibilidade, e um deles – o Henrique – foi compatível. Aí mais uma batelada de exames, de toda ordem, para preparar a internação. Depois de tudo realizado, era só marcar o transplante. Veio então a pandemia que adiou um pouco o procedimento. Tudo fica mais difícil com ela, até para conseguir os doadores de sangue, que são necessários nesse momento preparatório. O centro de medula óssea também fechou por causa da pandemia, e só reabriu no final de maio. Então era chegada a minha hora. Foi marcada minha internação para o dia 12 de junho e o transplante para o dia 23 de junho. Temos antes que fazer o exame do Covid, para garantir a segurança do procedimento, e isso será feito no dia 10: eu, Teita e Henrique. Eu me interno primeiro, e depois o Henrique, por um dia, para fazer o procedimento. Ele também terá que fazer uma preparação de quatro dias para garantir o sucesso da doação.

 

Eu tomei todas as precauções para estar bem preparado interiormente e espiritualmente para esse novo passo na minha vida. Recorri a medicamentos para ajudarem no equilíbrio, busquei ajuda terapêutica, fazia massagens semanais e recorri à acupuntura.  O meu estado pessoal ficou nos trinques para lidar com esse novo “tranco”. Curiosamente, estou vivendo a preparação com muita tranquilidade e ansiedade mínima. Desde muito cedo na vida aprendi a lidar com a finitude e a contingência. Para vocês terem uma ideia, desde que terminei meu doutorado, em 2005, passei a sofrer de um transtorno de ansiedade que refletia nas mãos em momentos de maior tensão. Tive que lidar com isso, encontrando artimanhas e criatividade para driblar o problema, e tive sucesso. Tenho uma remota lembrança de ter tido episódios de ansiedade na juventude, e mesmo na infância. Um medo, provocado pelos irmãos. Em certos dias, para lidar com isso, tinha que dormir num ambiente mais “protegido”, como num caixote que tinha dentro do armário do meu quarto. Tudo bem fechado e protegido. Outras vezes, buscava aconchego na porta do quarto de minha mãe.  Mais tarde, sobretudo depois do doutorado, tentei vária terapias, sem sucesso: lacaniana e cognitiva. Mais recentemente comecei uma terapia freudiana que foi importante, e a terapeuta é uma pessoa especial. O processo veio interrompido com a pandemia, para retornar mais adiante.  O meu orientador de doutorado, o pe. Felix Pastor, que já nos deixou, dizia uma frase muito sábia, que muito ajudou no meu processo pessoal. Ele dizia: “Nós nos preparamos para ir, mas não para retornar”. Fazia menção ao doutorado no exterior. No meu caso, foram quatro anos intensos de muito trabalho e responsabilidade. Durante o processo não tive crises, como acontece normalmente com os doutorando, mas a crise veio quando recebi o diploma. Aí veio uma neblina forte que demorou a sair, temperada com angústias e insônias difíceis. Ao chegar ao Brasil, depois de quatro anos de ausência ininterrupta, não consegui corresponder à alegria dos parentes que me receberam no aeroporto. Estava meio triste e aéreo. Na verdade, nem sabia mais como começar os meus curso na PUC, naquele momento particular de ansiedade. A sorte é que cheguei num período de férias, e tive o apoio carinhoso de Ana Maria Tepedino, quando tive que iniciar os cursos: ela praticamente me pegou nas mãos e me levou aos alunos, proporcionando um clima de tranquilidade que foi essencial. Curiosamente, com essa questão do transplante, ele praticamente sumiu da minha vida, depois de 35 anos de luta para enfrentar as situações que provocavam minha ansiedade.

 

Em síntese, nossa vida é feita de limitações e contingências. Cada um tem as suas. Cada um tem seu lado ranzinza, seu vícios, suas dores, seus empecilhos. O desafio que se coloca para nós, é ter ou buscar a devida tranquilidade para lidar com os problemas tendo sempre a esperança como lume. Foi essa a estratégia que escolhi para lidar com meus problemas, mas sempre mantendo acesas a alegria e o entusiasmo, com a ajuda preciosa dos meus queridos e dos meus amigos. 

 

Em telefonema com o meu médico, ontem, dia 06, ele me pediu para solicitar aos amigos de Juiz de Fora, a doação de sangue, que será muito importante para o sucesso da empreitada. Quem estiver disponível, é só ligar para o Hemominas  de Juiz de Fora, e agendar a coleta. Tudo é feito com muita segurança nesse tempo na Covid. Não importa o tipo sanguíneo, é só indicar que a doação está sendo feita para Faustino Teixeira.

 

Isso aí amigos, como dizia meu pai saudoso, tudo vai dar certo! Paz e Bem.

 

Seguem os depoimentos:

 

Monja Coen:

 

“Nunca soube.

Estarei orando por você.

Vou encaminhar para um praticante que mora em Juiz de Fora - posso?

Quem sabe possam doar sangue no hospital.

Faustino!

Qual o nome do seu irmão Zen Budista?  É ele que vai fazer a doação ou outro?

Esteja bem.

Que seja um sucesso de cura e recuperação.

Uma pequena lágrima desce do meu olho esquerdo.

Quanto sofrimento e eu nem percebi.

Aqui fico sentindo a pobreza de minha prática, estudos e trabalho - sempre deixando para depois.

Um depois que nunca sabemos se ocorrerá.

 

Fique bem. Descanse.

 

Estarei orando pelo cirurgião e pela sua recuperação completa.

Aguente um pouco mais a possível dor, e, quem sabe, ano que vem nos encontraremos.

 

Quiçá a água esteja menos amarga.

 

Com ternura

 

(07/06/2020)

 

Marco Lucchesi:

 

Meu querido amigo Faustino irmão li o seu belíssimo testemunho corajoso e pleno atravessado de momentos duros mas sempre com uma rota de perspectiva e solução tenho certeza que tudo sairá bem muito bem é um grande pressentimento que me leva a escrever agora de manhã a certeza de que tudo irá bem vou rezar e logo meu querido amigo muito em breve esse capítulo será fechado e é claro você lembrará com dificuldade dor no início mas tudo aos poucos vai se esmaecer e você terá o sentimento maior de ter vencido um grande desafio abraço fraterno e muito apertado em comunhão de oração.

 

(08/06/2020)

 

Marco Lucchesi:

 

faustino querido irmão

 

dia de domingo o sol, tantas vezes nomeado em nossa corresponência, impera. e lembra o fim da opera de mozart que

dias os raios do sol expulsam a noite, a ambigua riqueza da noite escura, perigo e redenção, tesouro e dor, angústia e

abandono. agora, meu irmão, o princípio solar avança irresistível. e precisamos de você em plenitude, essa que já foi

semeada e cresce, sob o influxo daqueles mesmo raios, para devolver-lhe cada célula combativa e plena. corpalma

que reclama sua plenitude

 

abraço fraterno e  apertado  

 

12/07/2020

 

Marco Lucchesi

 

Meu amigo  a sua matemática pode ser intitulada  matemática da esperança ativa. As hostes da paz avançam incontestes a reclamar o território que lhes  cabe  de direito e de fato.  Clarins da Vitória 

Abraço fraterno.

 

(13/07/2020)

 

Marco Lucchesi

 

meu querido faustino eu peço infinitas desculpas. sempre tive imensa dificuldade 
em registar o natal das pessoas. minha mãe usava um caderninho que não encontro
meus parabéns e que preciosa condição: sua mãe centenária e lúcida, que dom mais
forte e imponderável, cercado de sua querida mulher de seus filhos amados e irmãos
e como não bastasse um oceano de amigos. e a vitória dia após dia, com o seu equilíbrio,
a elaboração da paciência e a semiótica da mística suficientemente capaz de iluminar 
cada gesto que seria tão pobre se esgotado em si mesmo e cada sacrifício e sobretudo
a direção. sinto você na melhor fase de sua vida, sem as correntes da universidade, mas
nem por isso fora do diálogo de alunos e colegas mas em outra chave, mais bela, mais fértil
mais integrada no cosmos

abraço apertado e ainda feliz aniversário  , embora passado,   marco, seu irmão esquecido

 

(29/07/2020)

 

Marco Lucchesi:

 

Meu querido Faustino  Estou profundamente do seu lado. Os olhos se encheram de lágrimas e não consegui dizer mais nada e só agora retomo um pouco para dizer algumas palavras de afeto de profunda amizade e admiração que tenho por você fiquei calado por esses dias porque também assaltado por outras Dores das quais aos poucos me recupero.  o seu testemunho é belíssimo empresta um sentido de esperança e de renovação abraço muito apertado e fraterno Adorei também ver a música com a família e adorei muito a sua noção das Árvores das raízes dos irmãos do sangue um texto admirável grande e fraterno abraço.

 

31/07/2020

 

Mônica Giraldo Hortegas: 

 

Faustino, desde que te conheci, um dos traços mais marcantes é o seu sorriso e sua presença marcante que preenche todo o ambiente. Com vc aprendo e sigo o que é importante para minha vida profissional. Não ter medo do futuro, aceitar o presente, me dedicar ao que tem coração, fazer da academia um lugar de vida e alegria. Tenho o prazer de te encontrar semanalmente devido a orientação de doutorado e as aulas de inglês. Não há uma única semana que não aprendo. Vc sempre tão gentil e amigo. Até sua doença carrega o símbolo do excesso de vida. Há uma hiperprodução, algo que transborda. Ao mesmo tempo a figura de Teita sempre tão amorosa e sorridente. Sinto-me sortuda de ter a presença de vcs em minha vida e de tê-lo como mestre. A dor faz parte e vcs souberam acolhe-la, mas não deixar a vida menos cuidada. Por tudo o que vcs representam para mim, eu agradeço. A internação será em outra data simbólica, o dia do amor, o dia em que vemos corações radiantes em todos os lugares. Sem dúvida familiares e amigos estarão todos emanando nosso carinho imenso por vc. Estarei em oração também. Vou aqui aguardando notícias. Beijo grande.

 

( 07/06/2020)

 

 Mário Werneck

 

Meu querido amigo! Estamos juntos! Nos conhecemos já há muito...! A relação mestre-aluno foi apenas um preâmbulo para algo mais profundo! Tivemos e temos um diálogo de almas! Jamais esquecerei sua generosidade nos momentos mais tormentosos de minha vida. A serenidade e o modo de compartilhar – arrefecendo – as agruras que a vida nos coloca, sempre com positividade e sabedoria, entendendo que o mal é apenas aparente e nos reserva o bálsamo futuro! Nossos encontros de oração na casa de sua mãe, cujo convite aqueceu meu coração em momento tão sofrido; nossos encontros de mística, que por sua influência tento reproduzir aqui em BH (com meu ainda incipiente grupo no ISTA); nossas aulas de árabe com Tuffic! Nossos encontros de orientação... mas acho que mais do que todos os momentos, o que colho de nossos encontros talvez seja aquilo que mais traduz o acontecer humano: um diálogo, pleno; e pleno porque feito entre almas!

Beijo grande e em oração!

 

(07/06/2020)

 

Inácio Neutzling:

 

Caríssimo Dudu! Acabo de ler seu relato. Realmente iluminado e iluminante! Coragem! Força! Já faz tempo que diariamente rezo intensamente por sua recuperação e para que tudo corra da melhor maneira possível. De agora em diante, ainda mais intensamente irei intensificar as orações, confiante na Trindade Santa cuja festa celebramos hoje. Um grande e saudoso abraço

 

(07/06/2020)

 

Henrique Teixeira:

 

Muita alegria em compartilhar com meu querido irmão Faustino a mesma característica genética ligada à histocompatibilidade. Alegria em poder, daqui a alguns dias, ser o doador da medula óssea e assim contribuir para sua 

recuperação e saúde. Estamos juntos mano! Vai correr tudo bem! 

 

(07/06/2020)

 

Medoro Oliveira

 

Faustino, grande amigo, desde os velhos tempos da PUC. Uno-me a vc c minhas fervorosas e confiantes orações! Confio mto nas palavras de nossos Santos. São Vicente de Paula afirmava “Quem dá aos pobres, empresta a Deus”! Vc, discípulo do Pe Libânio, colocou desde cedo a sua diaconia da inteligência da fé em favor dos pobres, cm expoente da Teologia da Libertação. Chegou a hora de Deus “pagar-lhe a dívida”. Esteja confiante em seu amor libertador, cm nós estamos. Fraterno abraço! Afetuosa benção! 

 

(07/06/2020)

 

Carolina Duarte:

 

Querido amado, conviver com você e sua família é uma benção tão grande na minha vida que não tenho nem palavras para expressar. Não sabia de todos os detalhes da sua trajetória de busca de saúde e quero te dizer que agora te admiro ainda mais. Você é mesmo símbolo e exemplo de um amor que transborda! Estamos juntos! Vai dar tudo certo! Já deu tudo certo!! Te amo! Amo vocês!!

 

(07/06/2020)

 

Eduardo Henrique:

 

Querido irmão de Caminho. Li emocionado o teu relato da trajetória desse trecho de tua vida. Há tantas encruzilhadas, algumas (poucas) avenidas e também picadas na floresta em todas as vidas... Mas em tudo isso eu vejo A presença daquele Amigo que nos acompanha e re-vela-se na medida que caminhamos. Ele nos lembra de nós pra nós mesmos, e eu sei que Ele está contigo.

Força querido. Conte com minhas orações e vibrações positivas. 

Paz e Bem mestre .

 

(07/06/2020)

 

Teresa Cavalcanti:


Querido Dudu acabo de ler seu longo e lindo relato. Em nossos encontros de Emaús nunca observei em você algum sinal de fragilidade, só sua participação alegre e o canto vigoroso nas celebrações... Mas posso te dizer que minha filha Luciana que teve Leucemia fez um transplante de medula que deu certo. Ela veio a falecer mais de 2 anos depois pq teve uma recaída da doença. Mas o transplante correu bem e ela se casou meses depois com seu namorado holandês que até hoje mora aqui no Rio. Digo tudo isso apenas pra te tranquilizar. O transplante não é um bicho de 7 cabeças! Estarei em comunhão com você, Teíta e sua família, recomendando ao Pai Maternal que te acompanhe e abençoe. Feliz travessia!
(07/06/2020)

Marcelo Barros:


Dudu, querido irmão, só agora de madrugada descobri o seu relato e pude me dar conta de que você está praticamente quase na véspera da internação para esse procedimento. Aprendi na própria pele a lidar com a fragilidade, a passar por cirurgias complicadas e saber que a imunidade nunca voltou a ser o que era no passado. Tomo sua partilha de vida como minha meditação nesta madrugada e é incrível porque nesta 2a feira da 10a semana comum do ano, o evangelho proposto pelo lecionário litúrgico católico é o inicio do discurso da montanha em Mateus 5: as bem-aventuranças. E o primeiro salmo do ofício da manhã (Laudes) é o 42: oração de uma pessoa exilada, provavelmente no tempo da destruição do reino do norte pelos assírios (722 A C), mas que toda a tradição judaica sempre orou no sentido do exílio interior e do desejo do retomar a vida, a saúde e a festa junto com a sua comunidade de vida. Para mim, desde muito tempo, a oração vem mudando de fisionomia da reza mágica a um Deus que provê para nós aquilo que nos falta para uma comunhão de intimidade que me ajuda a sair de mim e viver a sintonia mais profunda com o Mistério que eu no discipulado de Jesus chamo de Pai ou Paizinho. É nesta perspectiva que oro por você e com você e me sinto desde já profundamente unido a você e a todos aí que o acompanham. Deus o abençoe, o Espírito inspire os médicos e lhe dê força e resistência em tudo isso e possamos prosseguir juntos nos caminhos da delicadeza divina. Abraço carinhoso para você e Teíta.

 

(07/06/2020)

Oscar Beozzo

 

Querido Dudu. Só agora, tarde da noite, li com emoção, muita admiração, respeito e comunhão o relato de sua travessia. Você me havia confidenciado o adiamento do transplante mesmo tendo o doador compatível e a preocupação com os prazos que iam se etreitando por conta da idade. Guardou serenidade tendo ao lado o apoio fiel da Teita, dos filhos e da irmandade toda com a presença radiante dos netos. Não imaginava, porém, o longo percurso de anos toureando o mal do corpo, mas que mexia tb com a cabeça e o espirito.  Você afundou suas raízes na espiritualidade e na mistica e sua árvore cresceu em vigor, como aquela do salmo 1 plantada à beira da torrente e que não fenece ou a do Apocalipse que dá fruto o ano todo. Na aula que pude acompanhar sobre o Grande Sertão vc continuava transbordando entusiasmo e alegria contagiantes, em que pesem os tempos bicudos que vivemos e a nuvem de incerteza sobre o seu transplante. Confortou-me muito a visita da Teita qdo da minha enfermidade trazendo sua solidariedade. Saber que estará acompanhando-o no hospital me faz pedir que seja a presença de todos nós de Emaus junto a você. Fiquei muito feliz qdo voltaram a partilhar os momentos de celebração e de vida em Emaus, uma riqueza para o grupo. Muito agradecido tb por ter vindo, mesmo com as limitações de saude, ao Curso de Verão e ao de Diálogo interreligioso, com entusiasmo. Deus o carregue na palma de sua mão nessa travessia do transplante. Com amizade e unido constantemente na oração. Coraggio!

 (08/06/2020)

Chico Pinheiro

 

Dudu, a Fé não costuma faiá! Você está nas mãos dele. Você havia me dito, naquela agradável viagem a BH, que teria que fazer essa cirurgia antes do seu aniversário. Mas foi lendo a sua carta Travessia que eu soube das dores todas passadas. Como você foi valente ! Agora falta pouco. Você vai passar por isso com a sua coragem e fé. Nós estaremos juntos, todos nós. Tropa reunida em oração e João Batista já deve ter sido designado por Deus para conduzir o processo. Do fundo do meu coração vai esta mensagem de confiança e Amor. A você, à Teita e ao Henrique, nosso carinho e força. Abreijos.

Bete Catalã:


Dudu, sabiamos um pouco dos seus problemas de saúde,  mas você os transmitia com tanta leveza - para nós - que nos assustamos hoje com o relato completo , aberto e sincero. Agradeço a confiança e a amizade compartilhada. Fiquei assustada ,  mas fiquei muito mais admirada pela pessoa que você é.  Tantos problemas e uma vida tão ativa e produtiva, tanto a nível pessoal quanto profissional. Parabéns pela arte e a coragem de lidar com a vida.
Você vai atravessar mais esta. 
Tudo vai dar certo. Paz e bem !
Conte com nossas orações e energia positiva. Beijão.

 

Virgínia Caetano:

 

Meu querido amigo irmão, li a sua carta travessia. Eu, que convivo muito de pertinho com você e a Teita, já sabia de tudo e, confesso, apesar da gravidade, sempre me pareceu ser mais leve. Vocês têm essa maravilhosa mania de encarar qualquer adversidade com fé e alegria! Como é que pode? Pode sim, mas pra muito poucas pessoas, só as muito especiais, aquelas que foram feitas com outros materiais, diferentes da maioria. Essa próxima travessia não será diferente. Tem um menino Jesus que anda sempre de mãos dadas com você meu irmão de coração!

 

Leonardo Boff e Márcia Miranda:

 

Querido amigo Faustino (Dudu)

A leitura de sua via-sacra me impressionou muitíssimo. Jamais imaginaria
que todo aquele entusiasmo e vibração que demonstrava, escondia muito
sofrimento, resiliência e luta pela vida.

Creio que a mística foi a sua medicina mais eficaz. Deu-lhe aquela
dimensão interior de acolher a condition humane frágil, vulnerável e, por
fim, mortal. Vc percorreu esse caminho com coragem sem perder a alegria de
viver,de trabalhar e de levar o peso da vida adiante.

Foi bom vc ter colocado esse seu padecimento no seu blog. Seguramente vai
ajudar a muita gente que passa por semelhantes travessias. Vc passou por
todas elas o que nos dá a esperança, diria, a certeza de que o transplante
será a última e derradeira travessia para uma vida saudável e plena. Mas
no fundo, vc sabe, estamos todos na mão do Deus que é Pai maternal e Mãe
paternal que nunca nos abandona. E não vai abandoná-lo agora.

Você como teólogo vai entender o que lhe vou narrar. Estando em Buenos
Aires, ouvi a conversa do Papa Francisco que falava com uma sua amiga, a
viúva do bispo Dom Jerônimo Podestá. Ela lhe disse, pois vinha ao Brasil:
é mais fácil a máfia que vc excomungou,  matá-lo no Brasil do que em
Roma. Tem que ter especial proteção e cuidado. E ele tranquilamente lhe
respondeu? Não tem nenhuma importância. Eu não quis ser Papa. Deus me
colocou nessa missão. Ele tem que me defender. Se me matarem, é sinal que
Ele me chamou. E eu irei tranquilo para inaugurar a casa que Ele preparou
para mim desde toda a eternidade.

Veja que forma espiritual e mística de entender a morte, como passagem
para o Reino da Trindade.

Mas vc tem muita coisa ainda por fazer. Ele quererá que vc fique por aqui
e cheio de vida e de entusiasmo, acompanhado pela sua  Teita e seus
filhos que cuidarão de você com desvelo e grande amor.

Bem, conte com nossas humildes orações diante do Senhor. Sempre mantemos
uma vela acesa, dia e noite, para nossos amigos e próximos que estão
doentes e sofrem. Agora a vela vai irradiar ainda mais. É a ³Lux
Beatissima² doadora de vida.

Com imenso carinho meu e de Márcia. Por favor, mande dizer como tudo foi.
Esperamos com ansiedade a sua transformação e celebraremos a alegria da
vida.

(10/06/2020)

Solange Rodrigues:

Salve, Dudu!

Li com atenção e com o coração na mão o relato/partilha que você fez do que tem vivido ao longo destes 15 anos, convivendo com sua companheira (irmã doença) e com os efeitos colaterais do tratamento. confesso até que me arrependi pelas minhas birras com a sua ausência conosco nestes tempos. sabia que você precisava fazer as sangrias, mas nem de longe imaginava todo o contexto. Só sua profunda vida no Espírito e o suporte amoroso de Teíta, e de toda a família, travessia.

Fico imensamente feliz que Deus e a ciência tenham lhe preparado a alternativa deste transplante. Como seu pai dizia, vai dar tudo certo, vai ficar tudo bem. Aqui ficarei rezando para que tudo seja tranquilo e que logo você esteja livre destes tratamentos dolorosos. Fiquei muito sensibilizada por com sua coragem e capacidade de abrir o coração, de deixar sua sensibilidade escancarada. 

Receba meu abraço muito afetuoso.

 (10/06/2020)

Tatiana Zylberberg:

Querido Prof Faustino, 

Boa tarde! 

O prof Cavalcante me ajudou a estar a par deste teu instante de mais cuidado, calma e luz. Então senti que era um momento de escrever-lhe! Por cada instante que já estivestes comigo e pelas missões que ainda vamos realizar mundo afora. E, escrevo como alguém que já operou algumas vezes...

Eu aprendi que os "tetos" são muito importantes nas cirurgias, por. Intermédio "deles" olhamos para Nós. É um encontro meio diferente, porque as paredes, a princípio, parecem frias.

Também é fundamental NUTRIR-SE, mesmo no necessário jejum pré-operatório. 
"Beba' as tuas orações mais queridas. Sinta o cheiro dos abraços mais acolhedores. "Coma" as memórias mais preciosas e leves, elas te manterão com energia até o novo começo se abrir. 


Anestesia nos leva a uma viagem sem bússolas. Quando acordar será em etapas, num primeiro instante um flash e verás outro teto, costuma-se adormecer uma vez mais e só depois acordamos no quarto. 
O pós-operatório pede janelas, pede novo Horizonte de rotinas e tempos. É uma (re) descoberta. 

Estou contigo, estou longe-perto, muita luz, saúde e paz. 

Acolha o meu carinho e leve no bolso do avental hospitalar, este figurino nada convencional recebe energias de luz de cura.  Esqueci de comentar dele*.  Tudo caminhará bem. Estou em oração, é um carinho recíproco.


Abraços fraternos

 

Márcia Miranda:


Estamos juntos, Leonardo e eu. Quem teve força até aqui revela uma energia que mostra que tudo vai dar certo. Vamos rezar especialmente nesta semana em nosso altar com a vela sempre acesa. Que Deus amor comunhão,  abençoe e cuide de vc, da Teita, dos seus queridos.

 

Luiz Alberto Gómez de Souza:


Acabo de ler teu texto em que nos abres teu coração. Te sigo como irmão desde o tempo de Roma e  me acompanha teu sorriso límpido e claro, tua espiritualidade enraizada em tudo o que és, tua capacidade de entusiasmar-te com o que lês com uma voracidade insaciável. Junto a ti essa adorável Teíta com outro sorriso contagiante. Vi crescerem em Ladíspoli João e Pedro, depois toda a família no Tiguera e a chegada de teus netos, grande alegria em tua vida. Comparto totalmente contigo o horror às simplificações e aos maniqueísmos. Sempre tive em ti um irmão mais novo e mais sábio. Quantas vezes recorri a ti na procura de tal ou qual detalhe na vida eclesial, que sempre nos uniu. Por que digo tudo isso? Sabia por alto de tuas dificuldades de saúde, sempre discreto e te trazia as minhas, sem tua discreção mineira. E agora, lendo teu texto tão corajoso em abrir-nos a amplitude de tuas fragilidades de corpo, dá-me vontade de correr a ti e dizer que as mazelas que também vivo desde muitos anos desaparecem diante das tuas, se é possível certo tipo de comparação, e me sentir cúmplice de tuas dificuldades. Mais uma coisa para admirar em ti, entre tantas, a enorme força interior que te faz resistir e saber viver com a alegria estampada em teu rosto. Desculpa o desalinho desta declaração, ela sai espontânea sem revisão. Ao mesmo tempo dolorida, mas sentindo como a esperança e a compaixão são virtudes que cultivas. E uma enorme alegria de viver, junto com a paixão pela música. Compartimos a felicidades dos netos que para ti chegam e para mim logo adiante  se multiplicarão. Temos a felicidade de ter Lucia e Teíta a nosso lado, tua mãe abençoada, famílias com profundas raízes. Conta com minha solidariedade, preces e acompanhamento. Teu irmão com um profundo afeto. Desculpa este desabafo, talvez não muito  oportuno - pouco mineiro, meio gaúcho-espanhol - mas profundamente sincero.

 

Lúcia Ribeiro

 

Dudu querido, 

 

Hoje o dia foi todo pensando em você e torcendo pela “pega”, mandando um axé forte, com o sol brilhando no verde – que te quiero verde – no jardim da Datcha..

E aí, enquanto vc. se prepara para a “pega”, eu me preparo para a “des-pega”. ( Calma, não é nenhum pensamento necrófilo, até porque a gente não sabe quando vai acontecer. Mas algum dia vai... ) Descubro então que uma das formas de preparar-se é simplesmente aproveitar este tempo para viver intensamente a experiência da amizade, fortificando laços, expressando o carinho. 

Estranho pensar isso justo num tempo em que a gente não pode nem ao menos se encontrar fisicamente e menos ainda abraçar, tocar, fazer um carinho...Mas talvez isso ajude a perceber que esta experiência tem sobretudo uma densidade qualitativa, que vai além da quantidade de momentos em que podemos nos ver e estar juntos. 

Por isto mesmo, hoje vai um beijo cheio de carinho, celebrando o dia com você e Teíta!

(13/07/2020)

 

Lúcia Ribeiro

 

Dudu, amigo/irmão muito querido, 

 

Acabo de ler seu relato da travessia, e estou absolutamente impactada! Não sei se fico mais impressionada pelo processo em si e a forma como você o viveu, ou pela sua capacidade de relatá-lo de uma maneira tão sincera e tão tocante. Antes de mais nada, me uno a você e Teíta num imenso agradecimento por tudo o que vc viveu e como conseguiu vencer esta etapa. E na felicidade por ter vocês perto, como amigos/irmãos, podendo partilhar tanta coisa... 

Talvez não tenha conseguido verbalizar suficientemente o quanto estivemos juntos, pensando e rezando por você, acompanhando seu processo. Mas queria dizer da minha alegria, hoje, vivendo mais de dentro tudo o que significou esta travessia – com todas as dificuldades mas também com todas as riquezas que você vivenciou - e por sentir você tão bem, renascido henriquecido...

Junto, meu carinho à Teíta, companheira de cada momento, vivendo tudo junto  com você e possibilitando uma travessia a dois...

Vai um carinho enorme, acompanhando a recuperação e torcendo para que a gente possa logo ir, se não abraça-lo e tocá-lo – acho que os hábitos impostos pelo Covid ainda vão perdurar! - mas pelo menos ver e conhecer de perto seu novo visual, e inaugurar uma nova etapa de vida. E junto com Teíta alegrar-nos e celebrar a Vida! “Hoje é dia de festa”!

Com todo o meu afeto,

(31/07/2020)

 

Angelo Atalla

 

Querido amigo. Li com atenção, carinho, admiração ficando pálido de espanto, como Bilac sob a luz do luar e das estrelas, seu charmoso e singelo texto de sua vívida experiência em um mundo estranho a você, mas cheio de amor e  solidariedade. Sua narrativa segue um roteiro cinematográfico clássico. Princípio, meio e final inacabado. Como convém a narrativa moderna. Aliás, não é final. É continuação. Finais só existem no cinema, nunca na vida. Mas ler seu depoimento dá uma vontade danada de fazer um curtinha. Você não esqueceu ninguém. Os detalhes são perfeitos e cada linha expressa gentileza, sensibilidade e percepção. 

Juro que nunca pensei que teria o privilégio de ler algo tão bonito a meu respeito.  Valeu a pena esperar 40 anos para ter este tesouro guardado em meu coração,

Você e Teita moram no profundo de minha alma, fiquem certos.

Obrigado, obrigado, obrigado.

 

(31/07/2020)

 

Ao final de todas essas reflexões e lembranças, fico apenas com o meu mantra diário, que tomei de Rainer Maria Rilke, e com o qual concluo todas as minhas orações diárias:

 

 

“Estar aqui é esplendor”

 

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Canto de Dor e Beleza: a arte de Sinéad O´Connor

 Canto de dor e beleza: a arte de Sínead O´Connor

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU/Paz e Bem

 

 

Nós que trabalhamos com mística, somos, às vezes tomados por experiências que nos tiram do eixo. É o que ocorreu comigo após a morte, antes do tempo, dessa maravilhosa compositora e cantora irlandesa, Sinéad O´Connor, que fez sua travessia no dia 26 de julho de 2023, pouco mais de um ano após o triste episódio da morte de seu filho, Shane Lully, em janeiro de 2022, aos 17 anos. 

 

Era uma cantora que já estava no meu radar há tempos. Eu a acompanhava de longe, mas sem tanta intensidade. Após sua passagem, fui envolvido por emoções impressionantes, que me levaram a aprofundar a sua vida e sua arte. O resultado foi um encantamento do qual não consegui me desvencilhar.

 

Comecei a dedicar-me ao seu estudo, a ouvir os seus discos, a seguir o que havia na internet sobre ela, a ver os vídeos a respeito. Tudo só fez crescer minha grande admiração por sua criação, ousadia, profetismo e delicadeza. Pude agora entender as razões profundas que molduraram sua vida fazendo-a uma artista tão singular e controvertida. 

 

Dentre as cantoras que já ouvi, digo a vocês que Sinéad é a das que mais me impressionaram, pela sua potência de voz, conjugada com uma delicadeza que é exemplar. A porta de entrada que provocou este choque pessoal, foi rever o vídeo com a música que a fez conhecida universalmente: “Nothing Compares 2 U”, de autoria de Prince. Foi o grande auge de sua presença no palco, revelando também toda a sua beleza.

 

Digo que não é só de beleza física que falo, e ela é mesmo linda, mas de uma beleza envolvente que provém de seu mundo interior machucado. No seu canto ela combina, como ninguém, a alternância entre agudos impressionantes com sussurros inacreditáveis[1], criando uma harmonia que encanta. Recorre a uma técnica de inversão no uso do microfone: ela sempre se afasta dele quanto canta mais baixo, e dele se aproxima quando eleva sua voz. Ao contrário do que normalmente vemos.

 

Os temas de suas composições envolvem sempre amor, dores, religião e culpa. Sabemos por sua biografia, que ela foi habitada por uma sensibilidade frágil, de alguém vulnerável, que sofreu abusos violentos na infância e que traz a marca dessa dor em seu canto. Chegou a revelar em certa ocasião que era portadora de bipolaridade[2]. Sua tradicional rebeldia manifestava-se também concretamente por suas atitudes: manter a cabeça raspada e usar roupas bem diversas do usual. Não suportava as pressões para adaptar-se ao estilo convencional e às exigências para uma postura propiciadora do sucesso.  Foi alguém que não deixou de gritar sua dor com o recurso de seu precioso canto e sua originalidade. 

 

Numa entrevista, ela disse que “cantar é um pouco como atuar”. Aquele que se expressa no canto acaba confundindo-se com a canção, deixando-se habitar por ela[3]. No caso de Sinéad, o canto lida com emoções difíceis e pesadas. Sua religiosidade, que é bem diversa da tradicional, tem algo que lembra a dinâmica mística sufi,  para além das superfícies dogmáticas[4], embora guarde também ambiguidades e enigmas. Ela dizia que desde jovem sempre foi muito tocada pelo tema da religião, em seu sentido mais amplo. O grande Mistério para ela era o Espírito Santo, que estava sempre no seu horizonte espiritual[5].

 

A cantora e compositora irlandesa, que nasceu em dezembro de 1966,  teve uma infância bem difícil[6]. O seu pai, Sean O´Connor foi engenheiro, formando-se também em advocacia. Sua mãe, Marie O´Connor, tinha personalidade forte. Eles tiveram cinco filhos, sendo Sinéad a terceira. Os outros eram Joseph O´Connor, que se tornou escritor, além de Eimear, John e Eoin. 

Na dura infância, Sinéad passou por reveses que delinearam sua personalidade, irradiando-se por toda a sua vida. Sua família era católica. Na adolescência difícil, estudou num colégio de freiras, que detestava. Não suportava viver ali um minuto sequer. Depois passou também por um repressivo internato, que lidava com a recuperação de delinquentes juvenis, isso em razão de uma experiência de furto em que esteve envolvida. Sofreu ainda abusos na infância que a marcaram para sempre. Em tempos mais recentes tentou o suicídio após o fracasso de seu último casamento[7].

Sinéad casou-se quatro vezes. A experiência mais duradoura foi com o produtor musical e baterista, John Reynolds, com quem se uniu em 1987, permanecendo com ele até 1991. Os dois tiveram um um filho, Jack Reynolds, nascido em 1987[8].   Casou-se depois com o jornalista Nicholas Sommerlam, com quem ficou entre 2001 e 2004. Em seguida com  Esteve Cooney, em 2010, num casamento que durou apenas oito meses. Ele era músico e produtor, dedicado às canções tradicionais irlandesas (Irish Music). Por fim, com  o psiquiatra e terapeuta Barry Herridge, com quem ficou casada apenas 16 dias, em 2011[9]. Anteriormente, no ano de 2000, aos 33 anos de idade, revelara a uma revista americana, Curve, que era lésbica[10]. A revelação coincidiu com o lançamento de seu álbum Faith and Courage.

A cantora irlandesa teve quatro filhos, e apenas um do primeiro casamento, que foi Jack. Os demais filhos nasceram de outras relações: Roisin (da união com o jornalista irlandês John Waters – nascida em março de 1996), Yeshua ( nascido em 2006, da união com o empresário americano, Frank Bonadio). De sua relação com o músico e produtor irlandês, Donal Lunny, nasceu Shane, em 2004, que aos 17 anos, em janeiro de 2022, colocou um ponto final em sua vida com suicídio, em meio a um processo de tratamento de depressão[11]. Foi um golpe fatal na vida de Sinéad O´Connor. Após o ocorrido, numa sequência de postagens, a cantora compartilhou nas redes sociais uma música de Bob Marley, que dedicou a filho, a quem nomeava como o “bebê de olhos azuis” e a “luz da minha vida”. Tomada por uma dor ininterrupta, a cantora faleceu 16 meses depois da morte do filho, em 26 de julho de 2023, aos 56 anos. 

Sinéad O´Connor teve uma passagem “turbulenta” pelo campo religioso. Desde muito cedo manifestou sensibilidade para o tema, com um traço espiritual que a acompanhou durante toda a sua vida. Foi muito crítica à Igreja Católica, em razão da complacência da Igreja com os abusos sexuais cometidos pelo clero com as crianças e jovens na Irlanda. Ela mesma reconheceu ter sofrido tais abusos. Mais tarde, com uma atitude que causou perplexidade em muitos, foi ordenada sacerdotisa pelo líder da Igreja Tridentina Latina, o bispo excomungado Michael Cox. Posteriormente, em outubro de 2018, anunciou sua conversão ao Islã, adotando o nome de Shuhada´Davitt. Na vida artística, porém, manteve seu nome de nascimento. 

Ao longo de sua carreira, Sinéad O´Connor gravou dez discos em estúdio: Lion  and the Cobra (1987), que foi dedicado à sua mãe; I Do Not Want What I Haven´t Got (1990); Am I Not Your Girl? (1992); Universal Mother (1994); Faith and Courage (2000); Sean-Nós Nua (2002); Throw Down Your Arms (2005); Theology (2007); How About I Be Me (And You Be You?)  (2012); I´m Not Bossy, I´m The Boss (2014)[12]. Além desses álbuns, houve compilações, como as de 1997, 2003 e 2005[13]. A cantora irlandesa estava trabalhando num novo álbum de inéditas, bem como preparando-se para uma turnê que incluiria a Oceania, a Europa e os Estados Unidos. A ideia era lançar o trabalho dez anos depois de seu último álbum, que foi em 2014. A morte interrompeu seus planos.[14].CNUAR LENO

 

Ao dedicar-me a ouvir com cuidado suas canções minha reação é de grande emoção e atenção silenciosa. São maravilhosos os seus dois primeiros trabalhos: Lion and the Cobra (1987) e I Do Not Want What i Haven´t Got (1990). O primeiro alcançou um grande sucesso em âmbito internacional, mas foi com o segundo álbum, de 1990, que a irradiação aconteceu de forma extraordinária, tendo a gravadora vendido mais de sete milhões de cópias em todo o mundo. No álbum estava presente a canção de Prince que consagrou a cantora: Nothing Compares 2 U, que foi considerada a número um do mundo em 1990 pelo Bilboard Music Awards. O vídeo com a canção rodou o mundo, com o foco concentrado no lindo rosto da cantora irlandesa[15].

 

O título do primeiro trabalho relaciona-se com uma passagem do Salmo 91: “Poderás caminhar  sobre o leão e a víbora, pisarás o leãozinho e o dragão” (Sl 91, 13). Ali já percebemos a singularidade de uma intérprete peculiar, que harmoniza melancolia e revolta. 

 

A força expressiva da cantora, e seu grito de protesto percorrem as letras desse primeiro trabalho, como na canção Mandinka

 

“Não conheço nenhuma vergonha, não sinto nenhuma dor
Não consigo
Não conheço nenhuma vergonha, não sinto nenhuma dor
Não consigo ver a chama
Mas conheço os mandinka”[16].

 

E também em outra canção, Just Like U Said It Would b

 

            “Vou andar no jardim

                  E sentir a religião interna

                  Eu vou aprender a correr com os meninos grandes

                  Eu vou aprender a mergulhar e nadar”.

 

Estamos diante do grito de alguém que aspira por uma atmosfera diversa, como na letra de Troy:

 

                  “Você se erguerá

Você retornará

A fênix vinda da chama

Você aprenderá

Você se erguerá

Você retornará

Por você ser o que é

Não há outra Troia

Para você queimar”.

 

O trabalho vem envolvido por dinâmica de um misticismo pontuado por fragores de new age. Percebemos  Igualmente o interesse da cantora pelos temas da música pop e das canções celtas. O passado da música tradicional irlandesa já se anuncia vivo.

 

No segundo álbum, ela alcança o auge de interpretação na canção de Prince, Nothing Compares 2 U, que ela faz vibrar pensando em sua mãe, com quem teve um relacionamento difícil na infância:

 

“Todas as flores que você plantou, mamãe, no quintal     

                  Todas morreram quando você se foi, oh oh oh

Eu sei que viver com você, baby, foi duro às vezes

Mas estou disposta a fazer outra tentativa

Nada se compara, nada se compara a você”.

 

Com sua mãe sempre presente, Sinéad relata as dificuldades de seu caminho, mas também o empenho na busca da liberdade e da felicidade, como na letra da canção I Do Not Want What I Havent Got:

 

            “Estou caminhando através do deserto

E não tenho medo, embora esteja quente

Tenho tudo o que pedi

E não quero o que não tenho

 

Aprendi isso com a minha mãe

Veja como ela me fez feliz

Pegarei esta estrada mais além

Apesar de não saber aonde ela me leva

 

Tenho água para minha jornada

Tenho pão e tenho vinho

Não terei mais fome

Pois o pão da vida é meu”.

 

O ano de 1992 foi capital na vida da cantora, quando polêmicas severas envolveram a sua vida, com repercussões no seu trabalho. Foi o ano que aconteceu uma tensão com a igreja católica, quando num popular programa de televisão americana, após cantar uma música de Bob Marley (“War”), ela rasgou uma foto do papa João Paulo II. Foi a forma que encontrou para denunciar o silêncio da igreja católica com respeito ao abuso sexual do clero contra as crianças inocentes. 

 

Movida por profunda revolta, ela sublinhou que o “verdadeiro inimigo” era outro. Manifestava com sua ira, uma reação de algo que ela mesma tinha sofrido na infância. Vale registrar, que um tempo depois, já no pontificado de Bento XVI, ocorreu a primeira autocrítica da igreja católica contra a pedofilia exercida pelo clero. Falo aqui da carta de Bento XVI aos católicos da Irlanda, de 19 de março de 2010, quando pela primeira vez na história um papa pede publicamente perdão pelos abusos sexuais praticados pro muito tempo, sem qualquer reconhecimento[17].

 

Após aquele ano crítico, de 1992, a cantora lançou outros trabalhos: “Universal Mother” (1994), seu quarto disco de estúdio, recebido de forma amena. No álbum, algumas belas canções de ninar, demonstrando um momento de felicidade. Um destaque particular para a versão de “My Darling Child”, de Kurt Cobain, que tinha tirado a vida um pouco antes do lançamento desse disco de Sinéad; e também Faith and Courage (2000), quando captamos a presença de um influxo Rastafari. Em sua vida estava ocorrendo uma passagem para um momento de maior influência da vertente experimental e religiosa.

 

Um dos mais belos álbuns de Sinéad O´Connor, a meu ver, está no seu sexto CD (Sean-Nós Nua), de 2002. Aqui encontramos um trabalho de marca bem pessoal e foco regional, onde a cantora recupera lindas canções tradicionais irlandesas, de “uma Irlanda medieval, daquelas dos filmes e dos clássicos da literatura”. Talvez seja o seu álbum mais fortemente marcado pelo influxo new age. 

 

Há canções de uma delicadeza singular, como Peggy Gordon, que traz em sua letra reverberações de uma linda visão de amor, que nos faz lembrar os poemas sufis:

 

                  “Eu queria estar em algum vale solitário

                  Onde as mulheres não pudessem ser encontradas

                  Onde os passarinhos cantassem sobre os galhos

                  E em cada momento um som diferente”.

 

Ou ainda, The Singing Bird:

 

            “Se eu pudesse atrair meu pássaro canoro

                  De seu próprio ninho aconchegante

Se eu pudesse pegar  o meu pássaro cantor

Eu o aqueceria no meu peito.

Pois não há pássaro que cante tão doce.

 

São passagens de um lirismo único, como igualmente na canção The Moorlough Shore:

 

“Onde a prímula sopra e a violeta floresce
Onde a truta e o salmão brincam
Com minha linha e anzol, senti prazer
em viver meus dias de juventude”.

 

Sublinho um momento forte do trabalho, que é o dueto que a cantora faz com Christy Moore, tradicional cantor folk. Trata-se da longa balada, de 11 minutos, intitulada “Peggy Gordon”, onde se relata a força de um amor puro que atravessa as escadas com uma energia interior que é única, e tudo para alcançar o amor:

 

“E então Lord Baker correu para sua amada

e de vinte e um degraus, ele fez apenas três

E com seus braços  envolveu a filha da Turquia

e beijou seu amor verdadeiro com maior carinho”

 

Sinéad O´Connor, no folheto interno que acompanha o CD, fala entusiasmada sobre o significado desse disco tão especial, que traz lá de trás da tradição irlandesa as palavras mais nobres do amor:

 

“Muitas das músicas deste disco são histórias de amor duradouro e incondicional, amor que não pode ser apagado por fogueiras ou enchentes. Elas são dores maravilhosamente nascidas de pessoas reais, que realmente existiram. Ensinam que a dor pode se transformar em algo positivo e belo quando é cantada, e assim a dor pode ser curada cantando, pois as canções são mágicas (...). Considero todas essas canções orações mágicas e, portanto, de maneira nenhuma tristes.”

 

Nesse sexto álbum, no qual me detive mais longamente, destaco em particular a fantástica banda que acompanhou a cantora nas gravações, com destaque para o baixista Bernard O´Neil, o guitarrista Dónal Lunny, o flautista Rob O Geibheannaigh, também com presença no piano e banjo, e da encantadora Sharon Shannon no acordeão.

 

Outros trabalhos se sucederão, como “Throw Down Yor Arms”, de 2005, um álbum de estúdio gravado na Jamaica, de forte presença reggae, com um contagiante ritmo. Na sequência, o álbum duplo Theology, de 2007. É o trabalho mais religioso da compositora irlandesa. Como destaque, a canção “We People Who Are Darker Than Blue”.

 

Em trabalho produzido pelo ex marido, John Reynolds, Sinéad volta aos estúdios para gravar o álbum How About I Be Me (And You Be You?), em 2012. Há nesse trabalho o retorno a um aroma presente nos primeiros tempos da cantora, e convoca para trabalhar nele alguns dos mesmos artistas que trabalharam naquele início. É uma busca de reconexão da cantora com o seu passado. Como disse um autor em resenha, trata-se de um álbum “quase vulnerável, de religiosidade frágil e pronta pra remexer feridas, seja abuso de remédios, problemas familiares e profissionais e os abusos sexuais que perpassam o universo da irlandesa”. 

 

O último álbum, I´m Not Bossy, I´m The Boss, é de 2014 e a cantora apresenta-se com uma nova aparência, com destaque para os cabelos. O trabalho mantém-se em linha de continuidade com o anterior, ainda sob os cuidados de John Reynolds[18], que busca realçar a presença de uma cantora mais sintonizada com aquela dos anos 1990, envolvida pelo pop e pelas guitarras. 

 

Além dos diversos álbuns aqui comentados brevemente, aconselho também o DVD Live in Dublin, de 2002, com um excepcional documentário envolvendo as gravações do sexto álbum da cantora. Há ainda um recente documentário, muito rico, sobre a trajetória da compositora e cantora, de autoria de Kathryn Ferguson, cujo título é “Nothing Compares” (2022). Ele ainda está inédito no Brasil, e seu propósito é  acompanhar detalhadamente a complexa trajetória da artista desde seus 23 anos de idade.

 

Concluindo, por toda a riqueza que acompanha essa nebulosa e enigmática trajetória de Sinéad O´Connor, independentemente das avaliações que se sucederão, creio que vale muito a pena debruçar-se sobre as melodias que acompanham os diversos álbuns e DVDs dessa cantora e compositora tão especial e singular. Será uma oportunidade única de apreciar uma das mais impressionantes vozes femininas que eu pude conhecer nas minhas audições musicais, bem como crescer espiritualmente banhado pelas cores.

 

 

 



[1]Podemos observar isso na impressionante interpretação das canções Molly Malone e Peggy Gordon, que se encontram no álbum: Sean-Nós Nua (2002).

[3]No documentário “The Song of Hearts de Site”, que está como extra no extraordinário DVD Sinead O´Connor. Goodnight, thank you you´ve been a lovely audience. Live in Dublin, 2020.

[4]No folheto que acompanha o seu CD Universal Mother (1994), dedicado aos rezadores da Irlanda, há uma bela imagem de uma mulher em gesto rodopiante como o dos dervixes sufis. 

[5]Documentário “The Song of Hearts de Site”, no DVD Live in Dublin, de 2020.

[6]Para um apanhado preciso sobre sua trajetória, aconselho o documentário de Kathryn Ferguson, “Nothing Compares”, de 2022, bem como o livro de sua auto-biografia, de 320 páginas, Sinéad O´Connor. Remembranzas: Escenas de una vida complicada, publicado em junho de 2021pela editora Libros del Kultrum.

[8]Foi quem possibilitou à Sinéad realizar seu sonho de ser avó, isso em julho de 2015.

[11]Sinéad optou por fazer um funeral hindu para o seu filho, dado o apreço que ele tinha a tal tradição.

[12]Para a minha análise foi de grande utilidade este trabalho de Renan Guerra, publicado em 08/07/2014: A discografia comentada: Todos os discos de Sinéad O´Connor: 

http://screamyell.com.br/site/2014/07/08/discografia-comentada-sinead-oconnor/(acesso em 08/09/2023).

[13]So Far... The Best of Sinéad O´Connor (1997), She Who Dwells in the Secret Place of the Most Shall Abide Under the Shadow of the Almighty (2003), Collaborations (2005), dentre outras. 

[16]Já podemos observar nessa canção, o grito em favor da recuperação da dignidade das pessoas e o desejo de liberdade, que vai ser um grande mote na vida da cantora.

 

[17]Marco Politi. Joseph Ratzinger, crisi di un papato. Roma-Bari: Laterza, 2011, p. 219-220.

[18]Que já a acompanhava desde o primeiro álbum, como um dos músicos, na bateria.