Walter Kasper: uma vocação ecumênica
Faustino Teixeira
Num tempo de certo esfriamento do ecumenismo, vale debruçar-se sobre uma obra que acaba de sair publicada na Italia: Walter Kasper & Daniel Keckers. Al cuore della fede. Le tappe di una vita. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2009 (traduzido do original alemão, de 2008). É um livro sobre a vida e a obra de Walter Kasper, atual Presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos.
Trata-se de um singular pensador, dedicado à causa da teologia e em particular do ecumenismo. Em março de 2009 ele completou 76 anos de idade, dos quais trinta anos ao serviço da teologia, dez anos como bispo de uma grande diocese na Alemanha (Rottenburg-Stuttgart) e os dez últimos anos trabalhando em Roma no Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos (tarefa que assumiu, inicialmente, como Secretário, em 1999, a pedido do papa João Paulo II).
O livro aborda os vários passos da vida de Kasper: os anos da infância em Wäschenbeuren, a experiência da guerra, a vocação sacerdotal e a entrada no mundo da teologia. Sua atuação acadêmica ocorreu nas prestigiadas Universidades de Tübingen e Münster. Não chegou a participar do Concílio Vaticano II (1962-1965). Na ocasião, preparava o seu trabalho de livre docência em Tübingen sobre o tema do absoluto na história. Foi assistente de dois grandes teólogos do tempo, Leo Scheffczyk e Hans Küng. Em 1989 vem nomeado bispo da diocese de Rottemburg (Stuttgart) e dez anos depois, na primavera de 1999, vem informado sobre a intenção de João Paulo II nomeá-lo como Secretário do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos. Logo em seguida, depois da festa de Pentecostes, parte para o novo trabalho em Roma. Na ocasião, a direção do Pontifício Conselho estava com o Cardeal Edwart Cassidy. Em fevereiro de 2001 vem elevado a Cardeal pelo papa João Paulo II e igualmente nomeado para presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos.
É no âmbito de sua atuação nesse Conselho romano que se revela de forma precisa sua abertura no campo ecumênico. Passa a ser conhecido como o cardeal do ecumenismo. Um primeiro embate com as perspectivas teológicas mais restritas vigentes em Roma acontece já antes de sua nomeação para o dicastério romano. Foi por ocasião da publicação da Declaração Dominus Iesus (DI), sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, em agosto de 2000. Em artigo publicado na revista Il Regno-attualità (4-2001), Kasper assinala que a publicação dessa Declaração produziu em muitos setores dúvidas sobre o empenho ecumênico da igreja católica. A seu ver, sobretudo em razão de seu tom e estilo, a Declaração “desiludiu, ofendeu e feriu muitas pessoas”, entre as quais muitos de seus amigos católicos e de outras igrejas cristãs. E afirma que ele mesmo sentiu-se ofendido e ferido pelo seu resultado. Um dos pontos de dificuldade relacionava-se com a resistência em definir as igrejas nascidas na Reforma como igrejas em sentido próprio (DI 17). Esse procedimento vinha justificado com o argumento de que as outras comunidades eclesiais não podiam ser definidas como igrejas em sentido próprio pelo fato de não partilharem uma perfeita comunhão com a igreja católica, não conservando “um válido episcopado” e uma “genuína e íntegra substância do mistério eucarístico”. Daí serem definidas como “comunidades eclesiais”. Isso tudo provocou uma “forte irritação” nos círculos protestantes e contribuiu para um “esfriamento das relações ecumênicas”.
A reflexão de Walter Kasper a respeito é bem mais matizada que a realizada pela Congregação para a Doutrina da Fé (CDF). Ele mesmo explica as diferentes tarefas dos dois dicastérios romanos. Enquanto a CDF “pensa e fala em termos magisteriais”, o Conselho para a Unidade dos Cristãos argumenta “em termos dialógicos”. O primeiro trata de conservar a integridade e a pureza da fé, enquanto o segundo tem o desafio de envolver a fé no diálogo com as outras tradições eclesiais. São, portanto, tarefas bem distintas. Em defesa de uma abordagem mais aberta, Kasper faz recurso à interpretação da famosa passagem da Lumen Gentium 8 que trata da questão da subsistência da igreja de Cristo na igreja católica. Trata-se da debatida questão da interpretação da expressão subsistit in. Para Kasper, essa expressão “constitui uma cláusula de abertura”, possibilitando reconhecer mesmo fora dos confins institucionais da igreja católica, elementos da verdadeira igreja de Cristo. Isso significa reconhecer que “os cristãos evangélicos pertencem ao Corpo de Cristo”, ainda que o modo como vivem sua eclesialidade seja distinto do vivenciado pela igreja católica. Com sua sensibilidade ecumênica, Kasper sinaliza que a forma como se estabeleceu a distinção entre “igreja” e “comunidade eclesial” poderia ter sido expressa de forma “mais amigável”, evitando os dissabores que se sucederam. No mencionado artigo da revista Il Regno, Kasper reconhece a fundamental importância de se respeitar as outras igrejas na “alteridade que elas mesmas reivindicam”. A atual teologia ecumênica procede numa perspectiva diversa do passado. Não mais de forma polêmica ou controversística, mas de forma dialogal, visando encontrar o que há de comum e o que une as diversas igrejas cristãs. Segundo Kasper, há aspectos do ser igreja que estão melhor evidenciados nas outras igrejas cristãs e isto deve ser reconhecido pela igreja católica. Daí a riqueza de se trabalhar com a idéia de “intercâmbio de dons”, tão bem evidenciada por João Paulo II na carta encíclica Ut unum sint 28, de 1995. Para Kasper, “o fim da atividade ecumênica não é o de anexação da outras igrejas, mas a realização da plena communio e da plenitude da unidade, que não pode ser uma igreja única, mas só uma unidade na diversidade. O caminho que nos conduz não é o da conversão de cada pessoa singular à igreja católica, mas a conversão de todos a Jesus Cristo” (Il Regno-attualità 4/2001: 130).
A afirmação do ser católico pressupõe, segundo Kasper, o ser ecumênico. A ecumenicidade é um atributo imprescindível do ser católico: “quanto mais se é católico, tanto mais se é ecumênico”. E isso tem conseqüências precisas para a reflexão teológica. Na visão de Kasper, “a teologia ecumênica não pode ser um território particular ao lado do resto da teologia, mas uma dimensão geral de todo discurso sobre Deus”. O grande horizonte visado é o da unidade das igrejas, mas uma unidade que respeite a pluralidade. Tende-se a falar em “diversidade reconciliada”. Mas Kasper sinaliza que o reconhecimento da diversidade não pode enfraquecer o empenho permanente em favor de uma reconciliação. Há que buscar superar os contrastes existentes em favor de uma “comum confissão de fé”. Insiste na importância de um “ecumenismo espiritual”: tema que ganha relevância crescente no Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos a partir de 2003.
Há outras questões fundamentais desenvolvidas no livro, no campo do ecumenismo e do diálogo entre as religiões. Há um espaço singular dedicado ao diálogo com as igrejas orientais e a controvérsia sobre o uniatismo. O cardeal Kasper relata uma série de iniciativas realizadas em favor de uma maior aproximação com o cristianismo oriental. Assinala que o seu papel é de “preparar a estrada” com suas melhores forças em favor do exercício de uma “diversidade reconciliada”. Trata também da questão do diálogo do cristianismo com o judaísmo e o islã, assinalando os passos positivos e as dificuldades que envolvem essa difícil conversação com essas duas religiões do mesmo tronco abraâmico. Acentua repetidamente que o verdadeiro diálogo envolve o respeito profundo à diversidade e também o exercício em favor do “intercâmbio de dons”.
A temática do diálogo interreligioso vem retomada ao final do livro, quando então Kasper trata da espinhosa questão do cristianismo diante do desafio do pluralismo religioso. Sua visão a respeito é mais cautelosa, distanciando-se das posições mais em voga no campo da atual teologia do pluralismo religioso. Reconhece que o tema da convivência entre as religiões será, tanto no campo prático como teórico, um dos eixos das discussões do século XXI. Demonstra preocupação com certas reflexões teológicas que defendem um pluralismo religioso de princípio. Sublinha que uma tal perspectiva encontra hoje uma positiva acolhida no campo teológico, mas adverte sobre seus riscos: “Este modo de pensar encontra hoje um grande consenso, mas não é conciliável nem com a fé cristã nem com as religiões judaica e muçulmana”. Em defesa da singularidade da missão cristã, vai ainda mais longe: “Quem quer realizar a paz entre as religiões baseando-se na tese do pluralismo religioso, deve primeiramente abolir as três religiões monoteístas”. A questão vem abordada por Kasper de forma meio sumária e apressada, prejudicando uma avaliação mais honesta das atuais reflexões em curso sobre o tema do cristianismo e o pluralismo religioso. São, porém, argumentos importantes e relevantes para um diálogo teológico proveitoso e enriquecedor, que está em aberto. É Kasper mesmo quem reconhece a pertinência de uma “identidade aberta”, pressuposto essencial para qualquer diálogo.
Encerra o livro com a referencia à carta de Paulo aos Efésios, que trata das bênçãos espirituais concedidas por Deus: “Nele ele nos escolheu (...) para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor” (Ef 1,4). Agradece a Deus pelas bênçãos concedidas, numa vida sem graves doenças ou incidentes; pela oportunidade concedida ao trabalho exercido no campo da teologia, da ação pastoral e do serviço na igreja. Com o olhar voltado para o futuro, o cardeal Kaspers, então com 75 anos, reconhece que o restante da vida deve ser “colocado nas mãos de um Outro e esperar que Ele mostre sua clemência”.
Trata-se de um livro precioso para quem quer aprofundar os caminhos da reflexão sobre o ecumenismo em âmbito católico. É nesse campo que o pensamento de Kasper revela seu pioneirismo, criatividade e ousadia. Não sem razão o patriarca ecumênico Bartolomeu II, definiu a sua presença como um “toque de fortuna para o ecumenismo”. É um verdadeiro seguidor do espírito do Vaticano II, respondendo pelo trabalho precioso em favor da realização de uma autêntica ecumene, entendida aqui no seu sentido originário: de um cristianismo que se dilata, que se abre, de forma a envolver e abraçar o mundo inteiro.
(Publicado em Amaivos – 07/10/2009 e no IHU Online – 08/10/2009)
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