Um dominicano diante do mistério do Islã
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Entre as novidades de 2008 da editora Cerf francesa, destaca-se o singular livro de Jean-Jacques Pérennès: Georges Anawati (1905-1994). Un chrétien égyptien devant le mystère de l´islam. Ao debruçar-se sobre essa bela obra, o leitor fica admirado ao constatar o significativo empenho de alguns dominicanos católicos que se dedicaram ao trabalho de aproximação religiosa ao islã, mesmo antes da abertura conciliar. Um desses importantes nomes foi Georges Anawati, um religioso católico egípcio que consagrou toda a sua vida ao desafio de compreender o islã. Nas trilhas abertas por Louis Massignon (1883-1962), que dizia que a melhor forma de conhecer o outro é tornar-se seu hóspede, Anawati destacou-se pelo seu excepcional dom de abertura e amizade. Ainda hoje, seu nome é uma referência entre os ulemás egípcios.
Nascido numa família de ortodoxos, ele opta aos 16 anos pelo caminho do catolicismo, em razão de sua abertura de horizontes. Aos 28 anos decide-se pela ordem dominicana, e ali busca trabalhar e resolver seu conflito interior, de alguém que se debate entre a cultura francesa e a identidade oriental. A resposta a tal desafio encontra no caminho dialogal: transcorre toda a sua vida no trabalho de diálogo com os muçulmanos. Em seu original método de encontro com o outro, sublinhava a importância da amizade sincera, do estudo sério do patrimônio religioso e espiritual do outro, bem como o empenho de uma aproximação humana e inteligente da alteridade como ponto de arranque para a dinâmica dialogal.
A resposta ao desafio dialogal não poderia acontecer senão através de um novo olhar sobre o islã. Essa perspectiva foi favorecida pelo influxo de Louis Massignon, um dos mais importantes pesquisadores no domínio dos estudos árabes e islâmicos. Foi Massignon que abriu caminho para uma “visão empática” do islã, apontando para a singularidade de um método “interiorista”, que privilegiava o conhecimento da outra tradição a partir “de dentro”. A rica contribuição de Anawati, na linha da tradição dominicana, vai acontecer no âmbito intelectual. Vale registrar o seu precioso trabalho no Instituto dominicano de estudos orientais, no Cairo (Egito), entre os anos de 1944 e 1953. O que o movia era a busca da verdade, antes de tudo. Essa era para ele a regra indispensável para qualquer diálogo. Em seu otimismo peculiar, Anawati acreditava que a missão a ele destinada por Deus era a de “promover o diálogo científico, filosófico e cultural com o islã”. Num longo encontro com Massignon, em 1940, Anawati reforça essa perspectiva de estudar a fundo o islã, e a orientação de nunca “minimizar o islã”.
A criação do Instituto dominicano de estudos orientais nasceu de uma intuição do padre Marie-Joseph Lagrange (1855-1938), fundador da Escola bíblica de Jerusalém. Foi também estimulado pelo teólogo Marie-Dominique Chenu, então reitor de Le Saulchoir, a grande escola de formação teológica do período. Para Chenu, fazia-se necessário abrir espaço acadêmico para um estudo sério do islã. E dizia, numa nota de 1945: “não mais partir para a conquista do islã, nem mesmo converter aqui e ali alguns indivíduos (...), mas entregar-se ao estudo aprofundado do islã, de sua doutrina e civilização”. Nessa perspectiva vai atuar no Cairo um “trio insólito”: Anawati, Jacques Jomier e Serge de Laugier de Beaurecueil. Os três intelectuais vão deixar-se banhar pelos ensinamentos dos ulemás de al-Azhar, com a riqueza da iniciação às complexas disciplinas da religião muçulmana.
Os frutos dessa experiência vão suscitar em Anawati um trabalho intelectual destacado. Pode-se mencionar a importante obra realizada em parceria com Louis Gardet: Introduction à la théologie musulmane. Essai de théologie comparée (Paris: Vrin, 1948). Trata-se de um dos trabalhos mais importantes desse autor, e que vai se tornar obra de referência. Com esse mesmo parceiro, Anawat vai publicar a obra Mystique musulmane. Aspects et tendances expériences et techniques (Paris: Vrin, 1961). Anawati destacou-se ainda como tradutor e intérprete de Avicena. No âmbito acadêmico, foi professor visitante nas Universidades da Califórnia (Los Angeles – USA), Angelicum, Urbaniana (Roma), e em Montreal (Canadá), no Instituto de Estudos Medievais (fundado por Étienne Gilson).
No campo do diálogo entre cristianismo e islã, vale assinalar o seu trabalho junto ao Secretariado pela Unidade dos Cristãos (nomeado em 1963) e no Secretariado para os não-cristãos, desde a sua fundação, em 1964. Nesse último secretariado trabalhou junto com nomes importantes: Abd el-Jalil, Roger Arnaldez, Robert Caspar e Louis Gardet. Teve um papel singular nesses dois Secretariados, propiciando uma nova sensibilização com respeito ao islã. Sobre o tema do islã, escreveu um texto para um dos experts do Concílio, Gustave Thils; tendo ainda proferido uma importante conferência no Angelicum sobre “o islã no momento do concílio: prolegômenos de um diálogo islamo-cristão” (novembro de 1963), cujo texto chegou provavelmente às mãos do papa Paulo VI. Anawati foi um intelectual infatigável. Ao morrer, estava redigindo o seu tratado sobre a unicidade de Deus (Tawhid), iniciado nos anos 70.
Ao final da vida pôde presenciar o belo gesto de hospitalidade de João Paulo II, na Jornada Mundial de Oração em favor da paz, na cidade de Assis (1986). Ali realizava um pouco de seu sonho dialogal, traduzido nas palavras do papa: o diálogo como uma “viagem fraterna na qual nos acompanhamos uns aos outros rumo à meta transcendente que ele (Deus) estabelece para nós”. A grande mensagem deixada por Anawati indica que a aproximação ao islã deve acontecer com muita delicadeza e respeito. Em vez de isolar e proteger nossas fronteiras para resguardar a verdade, é necessário “abrir as portas” e “alongar as cordas” para ampliar nosso olhar e reconhecer que o islã também vem acolhido no desígnio misterioso de Deus.
(publicado em Amaivos.uol.com.br - 23 de setembro de 2008)
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