As partes e o Todo: o apelo da mística islâmica
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
“Reclama o Todo
as suas devidas
partes
faminto de pro
fundas harmonias”
(Marco Lucchesi)
Introdução
Entre os grandes desafios que se colocam para nós nesse início de milênio situam-se a escuta, a cortesia e a hospitalidade. E não é tarefa fácil nesse tempo pontuado pela conflitualidade e enrijecimento identitário. A questão se complexifica ainda mais quando a temática abordada envolve o islã. Há no Ocidente um véu de preconceitos e suspeições generalizadas sobre o tema, e uma tendência necrófila de associar automaticamente islã e violência, como se as outras tradições religiosas estivessem livres do estigma das ambigüidades e contradições. Em sua clássica obra sobre o Orientalismo, Edward Said sinalizou que o islã representa um “trauma duradouro” para a Europa. Foi-se constituindo no imaginário ocidental uma representação do islã associada às idéias de devastação e terror, como se fossem “odiosos bárbaros”[1]. Mas na verdade, não há como conceber a gênese da civilização ocidental excluindo de seu seio o influxo do pensamento muçulmano. Trata-se de uma civilização que foi gestada numa “comunidade de pensamento”. Ela nasceu “do pensamento e da reflexão de homens que eram judeus, cristãos ou muçulmanos”[2]. É também um equívoco identificar o islã como estruturalmente fundamentalista. Há que distinguir claramente os movimentos islamistas, que ganham importância a partir dos anos 30, da grande Tradição islâmica. Como assinala Stephen Hirtenstein, “muito do que passa por islã em nossos tempos é apenas um vago reflexo da grande tradição espiritual nele contida”[3]. A tradição mística sufi, enquanto expressão da dimensão mística do islã, revela-nos um outro olhar sobre esta religião, que em nosso tempo vem tão recoberta de preconceitos. Nosso objetivo neste breve artigo consiste em apresentar algumas facetas desta rica experiência religiosa e favorecer a ampliação de horizontes, no sentido de uma nova e secreta mirada.
O caminho da mística sufi: a lógica do coração
Em revelador trabalho sobre o diálogo das civilizações, o ex-presidente do Irã – Muhammad Khatami – faz uma avaliação critica da lógica secularizadora que regeu a afirmação da sociedade ocidental. A seu ver, esta sociedade “abraçou a civilização moderna rompendo com a tradição”[4]. E esta transição, que é também ruptura com o pensamento dominante no Ocidente medieval, significou a destituição do lugar central reservado antes a Deus na vida dos seres humanos. Este pensador não desconhece a presença de valores singulares e de conquistas positivas presentes no Ocidente, mas reitera a importância de um exame mais minucioso sobre os limites e deficiências da lógica ocidental. Dentre as peculiaridades do pensamento islâmico, com vivos reflexos na tradição sufi, está a abertura para a complexidade do real: “nossos grandes pensadores embora cientes da indispensabilidade da razão, sabiam que ela, sozinha, não poderia desvelar toda a realidade. Nossas tradições religiosa pregam que, no final das contas, é a fé do coração, e não o intelecto, que apreende a realidade em sua totalidade”[5]. O caminho privilegiado pela tradição sufi de acesso ao real foi esta via do coração, que é também o da experiência direta. Os grandes místicos desta tradição insistem sobre a “inabilidade” do intelecto para desvendar as veredas do mistério sempre maior. Como assinala Kathami, ele alcança “apenas as cercanias do transcendente, nunca o divino propriamente dito”[6].
Na linha da tradição sufi, o coração (qalb) é visto como o “órgão sutil da percepção mística”, capaz de refletir a cada instante a presença diversificada das teofanias[7]. Na medida em que se encontra purificado e “polido”, o coração é capaz de refletir e acolher todas as formas. Como assinala o místico persa Rûmî (1207-1273), é a luz do coração que ilumina o olhar, porque animada pela Luz de Deus (MI:126-127[8]). O coração é visto como o órgão que possibilita o autêntico conhecimento (ma´rifa) e a intuição compreensiva do mistério sempre maior. O coração purificado é capaz de contemplar imagens que escapam das formas possibilitadas pela visão deste “mundo de água e argila” (MII:72). Ao comentar a reflexão de Ibn ´Arabi sobre Shu´ayb, um enviado árabe referenciado no livro do Corão (7,85 e 11,84), Charles-André Gilis discorre amplamente sobre a função do coração. Trata-se, como indica, do “órgão por excelência do Conhecimento metafísico e da realização iniciática”. Este órgão “contém uma ´cavidade secreta`, um ´germe`que é ´o ponto de contato com o divino`”. A raiz do termo qalb (coração), q-l-b, evoca o sentido de um “receptáculo”, ou seja, o coração vem entendido como um “suporte das epifanias divinas”[9].
Aqueles que se deixam guiar por um coração despojado forjam uma teoria do conhecimento inspirado, caracterizado por uma linguagem de alusão simbólica e pelas sutilezas dos “toques de graça”. Os místicos de todos os tempos e tradições sabem muito bem o que isto significa. São regidos pelo movimento da intuição e sabem captar os rastros do mistério deixados no caminho. Como assinalou Pablo Beneito, estudioso do místico Ibn ´Arabi,
“enquanto o exotérico segue somente a rota conhecida, traçada no mapa, o iniciado explora, além disso, a dimensão da experiência interna e, em sua peregrinação pela senda do conhecimento, rastreia os atalhos da inspiração, seguindo os indícios que encontra em seu passo, sem se deter mais do que o necessário nas sucessivas pousadas e paisagens que, como degraus de sua ascensão, vai deixando para trás”[10].
O coração é o lugar onde se capta o contínuo e ininterrupto processo da auto-revelação divina. A cada instante o coração recebe o movimento “dissonante” e ardente da presença de um Mistério que advém. A visão profunda do coração é capaz de romper o limite do olhar superficial que se prende ao “nó” das crenças[11]. Ao tratar a questão no Fusūs al-Hikam, Ibn ´Arabi assinala:
“Aquele que O limita [a uma crença] O nega [quando Ele se manifesta] em outra que não aquele em que ele crê, e aceita a proximidade com Ele somente naquilo em que ele O limita, quando Ele Se revela. Aquele que é livre desta condição de limitação não O nega, mas aceita proximidade com Ele em toda forma para a qual Ele muda... As formas da revelação não têm um fim no qual elas acabam”[12].
As crenças são sempre vínculos, “nós” que atam no tempo a percepção da Presença Espiritual. São como as “inumeráveis cores que as pessoas impõem à luz incolor por meio de suas próprias existências delimitadas”[13]. Na visão de Ibn ´Arabi, o problema começa a ocorrer quando se busca vincular a realidade última ou o Real (al-Haqq)[14] a determinadas imagens fixas e exclusivas, negando sua percepção fora deste vínculo específico[15]. A fixação num “nó” determinado acaba deixando escapar “preciosos bens” que acontecem para além dessa fronteira. A visão acaba ficando empobrecida, já que limitada a um único vinculo. O místico andaluz anima os buscadores autênticos a sempre ampliar suas crenças, de forma a poder desfrutar de uma melhor “participação” na compreensão do Real. Tais buscadores têm como referência os ´ārifûn (gnósticos), que são seres humanos muito especiais, marcados por um singular aperfeiçoamento do conhecimento e ampliação do olhar. São seres capazes de reconhecer a verdade de toda crença e perceber os limites e restrições dos vínculos excludentes. Mas só quem tem o coração polido é capaz de uma semelhante percepção[16]. O coração é a porta de entrada para a captação do Real.
A percepção da unidade da existência
O coração vem percebido na tradição sufi como um espelho que reflete a luz da divina Realidade. Este órgão singular de percepção mística é também veículo de transmissão das alusões simbólicas, enquanto portador de uma palavra que o Mistério mesmo pronunciou em seu interior. Os que participam da tradição sufi são capazes de “aspirar a desenvolver uma perfeita receptividade, ou seja, a libertar seu coração de toda fixação, de toda identificação limitadora, de todo apego que impede a manifestação de seu teomorfismo original”[17]. São também inspirados a perceber o mistério da unidade da existência. Isto levou determinados estudiosos a identificar a doutrina metafísica do sufismo como panteísta ou monista, o que é um equívoco. Como sublinhou com acerto Frithjof Schuon, o panteísmo traduz uma concepção que pressupõe uma continuidade entre o Infinito e o finito, entre o Princípio Ontológico e a ordem manifesta. Isto não se dá no sufismo, que mantém viva a consciência da relatividade das coisas. Não se concede às coisas, em hipótese alguma, uma atribuição de autonomia com respeito ao Ser ou ao Real[18].
O que vigora no sufismo é a doutrina da wahdat al wujūd (unidade da existência ou unicidade do ser), atribuída ao místico andaluz Ibn ´Arabi (1165-1240)[19], com influxo importante na tradição mística islâmica posterior. Trata-se de uma doutrina complexa e que não pode ser reduzida a uma visão monista. A afirmação da unidade da existência não indica em momento algum que os objetos da criação são Deus, ou que Deus reside substancialmente nas coisas. A doutrina leva a um raciocínio bem mais matizado e complexo. Traduz, na verdade, uma compreensão básica, de que “todas as coisas estão intimamente interrelacionadas por meio de suas raízes comuns na Divina Realidade”[20]. Ela requer uma compreensão do processo contínuo das manifestações do Real nas formas concretas. Este processo vem nomeado como tajallī e constitui um eixo referencial do pensamento de Ibn ´Arabi. É correto, de um lado, compreender o mundo fenomênico como expressão do Real, e o verdadeiro conhecedor é capaz de desocultar a presença subjacente do Real nas manifestações existenciadas. Mas isto não significa conceber o mundo fenomênico de forma autônoma e subsistente. Na visão de Ibn ´Arabi, a única verdadeira existência pertence ao Um (Real). Mas esse Um torna-se perceptível em todas as manifestações. As coisas ganham sua existência como lugares de manifestação e reflexos desta Unidade primordial. O mundo é visto, assim, de forma positiva, na medida em que ele reflete as manifestações das insondáveis possibilidades do Ser de Deus. Em sua clássica obra, Futūhāt al-Makkiya, Ibn ´Arabi assinala: “Deus favoreceu-me com a Face do Real em tudo. Para mim, a meus olhos, não há nada existente neste mundo em que eu não testemunhe a realidade essencial de Deus, e desse modo glorifico-O aqui”[21].
A afirmação da unidade da existência não contradiz a multiplicidade da realidade, que vem igualmente defendida com vigor pelo místico andaluz. A afirmação desta multiplicidade não apaga a idéia do wujūd (ser, existência) como “Essência do Real” e fundamento único de tudo o que existe. O wujūd é como a luz, realidade única mediante a qual todas as cores são percebidas e celebradas. As cores existem, mas não enquanto existência independente, pois necessitam da luz para serem percebidas como tais. Nada pode ser visto sem a presença do wujūd. A realidade da multiplicidade (katra) vem inserida no contexto da unidade divina, e em nenhum momento desvalorizada ou relegada a mera ilusão. Como indica Chittick, seria um grande equívoco identificar a multiplicidade do cosmos como uma ilusão ou expressão da ignorância humana. Na verdade, “segundo Ibn´Arabi, a multiplicidade é quase tão real como a unidade, já que tem suas raízes em Deus, o Real”[22].
A experiência da intimidade com Deus
Na tradição mística do sufismo, e em particular na obra de Ibn ´Arabi, o mistério de Deus – wujūd ilimitado -, pode ser captado através de dois termos chaves presentes na terminologia teológica do islã tradicional: tanzīh e tašbīh. O primeiro termo, tanzīh, vem do verbo árabe nazzaha, que significa “proteger algo de qualquer contaminação”. O termo vem utilizado para assinalar a transcendência e incomparabilidade essencial de Deus: sua distância com respeito à toda criatura. O segundo termo, tašbīh, provém do verbo šabbaha, que significa “fazer ou considerar algo similar a outra coisa”. É um termo que expressa a proximidade de Deus com a sua criação, sua comparabilidade com as coisas existentes. Deus vem, assim, expresso em sua dupla polaridade: é por um lado radicalmente transcendente, mas também imanente[23]. Deus é simultaneamente majestoso (Jalāl) e belo (Jamāl). Ou também nas expressões consagradas de Rudolf Otto, Tremendum e Fascinans.
A aproximação de Deus, entendido como o Real (al-Haqq), não pode acontecer quando se privilegia exclusivamente um destes pólos. Ibn ´Arabi serviu-se da história corânica de Noé e os idólatras para mostrar que não se pode captar o Real quando se exclusiviza seja o seu lado transcendente, seja o seu lado imanente. Este mistério é simultaneamente transcendente e imanente. Tanto os “idólatras” como Noé equivocaram-se em sua aproximação deste Mistério. Os “idólatras” por vincular o Real com os objetos físicos de sua adoração (imanentização) e Noé por vincular o Real com o transcendente. Os primeiros equivocaram-se por desconsiderar a dimensão transcendente do Real, e o segundo por negar sua dimensão imanente[24]. Como sublinhou Michael Sells,
“Dado que o real é infinito, não pode ser limitado aos confins de uma única crença: o deus da crença não é o Deus verdadeiro, mas somente um ídolo intelectual. A tragédia é que de fato o real se manifesta verdadeiramente nessa imagem, mas ao limitar o real a essa imagem particular e ao negar suas outras manifestações, terminamos por negar o real em sua infinitude”[25].
A mística islâmica, com base na reflexão corânica, acentua seja a grandeza de Deus, seja sua proximidade do humano. A grandeza vem expressa na invocação tão comum no islã, Allahu Akbar (Deus é maior). Este é um traço comum nas religiões monoteístas, que exaltam a grandeza e incomparabilidade de Deus. A plenitude de sua perfeição vem também expressa numa clássica e breve sura do Corão:
“Dize: Ele é Deus, Ele é Um
Deus de Plenitude
Que não gera nem foi gerado
E ninguém é igual a Ele”[26]
Na tradução feita por Jacques Berque desta sura, o termo árabe Samad vem traduzido com a expressão Plenitude, embora possa ser objeto de exegeses variadas, dada a sua complexidade. Mas pode-se falar também de Deus como Impenetrável e Independente.
O papa João Paulo II, em livro de entrevista publicado em 1994, ao tratar o tema do Deus do Corão, sublinhou sua dimensão de Majestade. Mas equivocou-se ao dizer que este Deus nunca é Emanuel (Deus-conosco)[27]. O fato de ser transcendente, grandioso e altíssimo (C13,9), para além do que é transitório e efêmero, não significa que esteja distante e insensível aos caminhos do humano. Embora distinto do ser humano, Deus dele se aproxima com grande intimidade. Deus é aquele do qual “estamos mais perto do que a [sua] artéria jugular” (C50,16). A tradição mística sufi vai retomar com grande sensibilidade esta dimensão do Deus intimidade, que também está presente no Corão. Esta dialética de distância e proximidade foi muito bem captada pelo místico persa al-Hallāj (858-922): “Eis o Sol, amigos meus, e a sua luz assim tão próxima, e contudo tão distante de aferrar”[28].
A dimensão de proximidade de Deus transparece em alguns dos nomes a ele atribuídos no Corão. Em linha de sintonia com o Deus bíblico, “de ternura e piedade” (Ex 34,6), o Deus do Corão é o “mais misericordioso dos misericordiosos” (C7,151 e C12,64). O atributo ar-Rahmān (Omni-Misericordioso[29]) aparece inúmeras vezes no Corão, como um dos mais importantes nomes vinculados a Deus. Isto ocorre, por exemplo, na sura de abertura al-Fātiha: “Em nome de Deus, o Todo misericórdia, o Misericordioso” (C1,1). Os termos Rahmān e Rahīm procedem de uma mesma raiz trilítera r-h-m que tanto em árabe como em hebraico expressam uma materna proteção. Desta raiz derivam termos como: útero, matriz, seio, entranhas, compaixão, misericórdia, humanidade[30]. É, portanto, correto dizer que o Deus do islã tem “entranhas de misericórdia”. A tradição sufi recupera esta idéia corânica do Deus presença e compaixão, que desperta a mútua simpatia e o fermento da delicadeza espiritual por força da graça universal. Este Deus bondade e delicadeza vem também expresso em outro dos belos nomes atribuídos ao Mistério maior no Corão: Al-Latīf[31].
Na mística sufi, o exercício de delicadeza espiritual e compaixão para com os outros é expressão da experiência do Deus Rahmān, que toma a defesa do desprotegido e convoca ao exercício da solidariedade. A centralidade da lógica do amor na mística islâmica favoreceu a afirmação de doutrinas como a l´isqat al-faraid, que em favor da compaixão aos mais necessitados, substituiu a exigência dos deveres religiosos por práticas efetivas de ajuda aos mais desvalidos[32]. Na visão de Ibn ´Arabi, a compaixão é um traço essencial do ser humano, que se encontra sempre envolvido no Hálito do Todo Misericordioso. Para ele, a pura compaixão é a marca dos santos, e ela se exerce de forma universal, independentemente da pessoa ou sua crença. O termo árabe que expressa o significado de santo é wali, e sua raiz indica intimidade e proximidade. O santo é, sobretudo, o “amigo de Deus”, que vive a experiência de uma intensa proximidade com o mistério que dá vida[33]. E sua razão de ser consiste em prolongar na história essa mesma vontade de vida. Na visão de Rûmî, inspirada no Corão (C21,107), “Deus trouxe os santos para a terra afim de realizarem uma misericórdia para todas as criaturas” (MIII: 1804)[34]. Santos são aqueles que se encarregam de partilhar com os outros a intimidade com Deus: “nunca causam ofensa ou tristeza com o que dizem. Tudo o que passa pelos seus lábios é beleza, tudo o que vêem com seus olhos é beleza e tudo o que ouvem é beleza”[35]. São pessoas que guardam no peito o coração que Deus aí esqueceu[36].
Conclusão
O místico é alguém que viveu um encontro emocionado com o Mistério sempre maior, que experimentou a admiração na Fonte da Ternura e da Misericórdia, e se embriagou com sua fragrância. É alguém que capta a dor do mundo e anuncia a riqueza da generosidade divina. O místico é alguém que desconfia das formas superficiais, dos “tapetes do mundo” e anseia pelo abraço do Amado. O místico, como o santo, está absorto em Deus, e despertado por essa Presença é capaz de ver e apreciar as coisas criadas. É o dom da santidade que faculta ao místico admirar os outros, iluminar a chama da compaixão e perceber a bondade escondida no fundo do coração. O místico é animado pela nostalgia do amor, pela sede do Um. Longe do Mar da delicadeza divina se debate como peixe na areia da praia. Em sua sensibilidade singular, o místico desvela a fome de harmonia que anima o Todo, e lamenta a incapacidade das partes ouvirem esse chamado, dissolvendo-se e consumindo-se nas querelas do tempo. Ele sabe que a razão do desacordo entre as partes relaciona-se com a dureza do coração, com a vontade de poder e com desgaste da compaixão. E que o caminho para a paz encontra-se para além das dobras das formas, no enigmático campo da Realidade. O místico sabe, a partir da luz de sua experiência, que a primavera se esconde no outono, e que a força da água apenas aguarda o chamado do sedento: “Não busque a água, mas mostre-se sedento, para que a água possa jorrar de alto a baixo” (MIII:3212).
Publicado em: Luiz Alberto Gómez de Souza (Org). Relativismo e transcendência. Rio de Janeiro: EDUCAM, 2007, pp. 147-159
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[1] Edward W. SAID. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 69.
[2] Roger ARNALDEZ. A la croisée des trois monothéismes. Une communauté de pensée au Moyen-Age. Paris: Albin Michel, 1993, p. 7.
[3] Stephen HIRTENSTEIN. O compassivo ilimitado. A vida e o pensamento espiritual de Ibn ´Arabi. Rio de Janeiro: Fissus, 2006, p. 26.
[4] Muhammad KHATAMI. Diálogo entre civilizações. O Irã contemporâneo e o Ocidente. São Paulo: Attar, 2006, p. 61.
[5] Ibidem, p. 89.
[6] Ibidem, p. 99.
[7] Henri CORBIN. L´immaginazione creatrice. La radice del sufismo. Roma-Bari: Laterza, 2005, pp. 171 e 193; Luce LÓPEZ-BARALT. El dinamismo místico en la cima del éxtasis. In: Miguel Norbert UBARRI & Liebe BEHIELS (Eds). Fuentes neerlandesas de la mística española. Madrid: Trotta, 2005, pp. 104-107.
[8] Trata-se da abreviatura da grande obra do místico Djalâl-od-Dîn Rûmî, Mathnawî (Masnavi – Éditions du Rocher, 1990 – tradução de Eva de Vitray Meyerovich e Djamchid Mortazavi), que congrega 6 livros. Será sempre citada de forma abreviada no texto (M), seguida do livro (em romanos) e do parágrafo onde se encontra a referencia indicada.
[9] Ibn ´ARABI. Le livre de chatons des sagesses. Tome premier. Beyrouth: Al-Bouraq, 1997, pp. 327-328.
[10] Pablo BENEITO. El lenguaje de las alusiones: amor, compasión y belleza en el sufismo de Ibn´Arabi. Murcia: Editora Regional de Murcia, 2005, p. 41.
[11] A palavra árabe i´tqād, que vem traduzida por crença, procede da raiz trilítera ´-q-d, que expressa também, entre outros significados, nó e atadura. Com base nesta reflexão, não seria incorreto dizer que a crença indica um “nó atado no coração”: F.CORRIENTE. Diccionario arabe-español. 3 ed. Barcelona: Herder, 1991, p. 523.
[12] Ibn ´ARABI. Fusūs al-Hikam, apud Stephen HIRTENSTEIN. O compassivo ilimitado, p. 162.
[13] William CHITTICK. Mundos imaginales: Ibn ´Arabi y la diversidad de las creencias. Sevilla: Alquitara, 2003, p. 283. O teólogo cristão, Paul Tillich, sublinha em sua reflexão teológica que a Presença Espiritual, que em si mesma é sem ambigüidade, ao se manifestar no tempo e no espaço torna-se fragmentária: Paul TILLICH. Teologia sistemática. 5 ed. São Leopoldo: Sinodal/Escola Superior de Teologia, 2005, p. 594.
[14] Determinados autores preferem utilizar o termo “Real” ou “Realidade” para expressar Deus ou a Realidade Última. Um termo que se revela mais neutro para dar conta de um Mistério que não pode ser definido a-priori como pessoal ou impessoal, e que traduz “o símbolo último do Todo”. É uma expressão que tem plausibilidade na tradição judaico-cristã (que define Deus como “aquele que é” Ex 3,14), na tradição hindu (Sat) e na tradição islâmica (Haqq). Ver a respeito: John HICK. Teologia cristã e pluralismo religioso. O arco-íris das religiões. São Paulo: Attar/PPCIR, 2005, pp. 41 e 52-55; Raimon PANIKKAR. L´esperienza della vita. La mística. Milano: Jaca Book, 2005, pp. 59 e 63.
[15] Na verdade, o mistério último “não pode ver-se limitado por nenhuma crença. É capaz de assumir a forma de todas as crenças precisamente porque é incomparável a toda crença”: William CHITTICK. Mundos imaginales, p. 280.
[16] É neste contexto de abertura que se entendem as ousadas palavras do místico andaluz, recolhidas e traduzidas ao espanhol por Pablo Beneito: “Las creencias más diversas tienen de Dios las personas, mas yo las profeso todas: creo en todas las creencias”: Pablo BENEITO. La taberna de las luces. Murcia: Editora Regional de Murcia, 2004, p. 24
[17] Pablo BENEITO. La taberna de las luces, p. XV.
[18] Frithjof SCHUON. A unidade transcendente das religiões. Lisboa: Dom Quixote, 1991, pp. 51-52.
[19] Mas como assinala William Chittick, esta expressão não se encontra nas obras de Ibn ´Arabi, mas sua idéia está expressa com clareza na sua reflexão: Mundos imaginales, p. 29.
[20] William CHITTICK. Mundos imaginales, p. 227.
[21] Ibn ´ARABI. Futūhāt al-Makkiya I:223 E III:361-2, apud Stephen HIRTENSTEIN. O compassivo ilimitado, p. 99.
[22] William CHITTICK. Mundos imaginales, p. 31. Segundo Ibn ´Arabi, “todas as coisas no universo – incluídas as palavras pronunciadas pelas pessoas – são palavras articuladas no Hálito do Todo Misericordioso”: Ibidem, p. 259.
[23] Toshihiko IZUTZU. Sufismo y taoísmo. 2 ed. Madrid: Siruella, 2004 (Ibn ´Arabi – vol. 1).
[24] Ibn ´ARABI. Le livre des chatons des sagesse. Tome premier. Beyrout: Al-Bouraq, 1997, pp. 115-145 (Le chaton d´une sagesse transcendante dans un verbe de Nûh – Noé).
[25] Michael SELLS. Tres seguidores de la religión del amor: Nizām, Ibn ´Arabi y Marguerite Porete. In: Pablo BENEITO & Lorenzo PIERA & Juan José BARCENILLA (Eds). Mujeres de luz. Madrid: Trotta, 2001, p. 141. Em seu comentário sobre Muhammad, no Fusûs al-Hikam, Ibn ´Arabi estabelece uma distinção entre a Divindade absoluta – que não pode ser contida por ninguém -, e a Divindade das convicções dogmáticas, prisioneira das limitações: cf. Ibn ´ARABI. Le livre des chatons des sagesses. Tome second. Beyrouth: Al-Bouraq, 1998, p. 713.
[26] Sura 112, tomada da tradução de Jacques BERQUE. Le Coran. Paris, Albin Michel, 1990, p. 705.
[27] JOÃO PAULO II. Cruzando o limiar da esperança. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 98.
[28] Al-HALLAJ. Diwan. Genova: Marietti, 1987, p. 106.
[29] Tomado da tradução de Pablo Beneito, que é um pouco distinta da de Jacques Berque, que prefere traduzir Rahmān pela expressão “Todo misericórdia”. Os dois evitam a tradução mais usual: “O clemente”. Ao justificar sua tradução, Beneito indica que em árabe o termo al- Rahmān é um nome privativo de Deus, daí seu propósito de acrescentar o prefixo omni para resguardar o caráter privativo de Deus, também em castelhano. A idéia é mostrar que somente Deus é Omni-Misericordioso: Ibn ´ARABI. El secreto de los nombres de Dios. 2 ed. Murcia: Editora Regional de Murcia, 1997, p. 41, n. 1.
[30] F.CORRIENTE. Diccionario arabe-español. Barcelona: Herder, 1991, p. 286. Em hebraico, o correspondente a Rahmān é Rahămîm, e indica terna misericórdia e compaixão: cf. R. Laird HARRIS & Gleason L. ARCHER & Bruce K. WALTKE (Eds). Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1419.
[31] F.CORRIENTE. Diccionario arabe-español, p. 791. Da mesma raiz trilítera procedem os termos: sutil, delicado e gracioso.
[32] Annemarie SCHIMMEL. Le soufisme ou les dimensions mystiques de l´islam. Paris: Cerf, 1996, p. 99.
[33] Significativa a posição de Simone Weil a respeito da importância da amizade com esses “amigos de Deus”. Para ela, não há nada entre as coisas humanas que favoreçam como esses amigos manter a intensidade da mirada em Deus: Simone WEIL. Attente de Dieu. Paris: Fayard, 1966, p. 51.
[34] Ainda Rûmî: “Os homens santos são um auxílio para este mundo (...). Eles ouvem por toda a parte os gritos dos oprimidos e correm em sua direção, como a misericórdia de Deus” (MII: 1933 e 1934).
[35] Stephen HIRSTENSTEIN. O compassivo ilimitado, p. 92. E também p. 94.
[36] Creio que se aplica de forma pertinente aos místicos sufis o que Abraham Heschel identifica nos profetas, cuja sensibilidade é habitada pelo “pathos divino”: “Não, eu não quero desnudar teus punhos! Eu somente te imploro que digas a cada bacilo: Não matarás. Proíbe os desastres banindo a sede de sangue de homens e bestas (...). E clamarei para que todos saibam, que Deus esqueceu seu coração dentro do meu peito”: apud Alexandre LEONE. A imagem divina e o pó da terra. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2002, pp. 74-75.
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