Mística: o amor infinito pelo Todo
Faustino Teixeira
“Os filhos da ilusão naufragam
na musica dos meus versos,
mas os filhos da Realidade
sabem penetrar nos meus
segredos mais íntimos”
(Attār)
O pensador católico, Jacques Maritain, distinguia em obra clássica sobre os graus do saber, a linguagem filosófica da linguagem mística. Enquanto a primeira busca dizer a Realidade sem tocá-la, a segunda chega ainda mais próxima do mistério que a habita, mesmo sem poder garanti-lo na visão. O místico vive a certeza de uma Presença que não só o contagia, mas que dele se apodera com força e vigor, provocando uma palavra que destoa do léxico tradicional. As palavras são “atormentadas” para poderem dizer o que literalmente não conseguem. Violenta-se a linguagem para dela desentranhar forças inauditas e criadoras. Algo semelhante ocorre com os grandes poetas, como Rimbaud, que subvertem as formas poéticas para reinventar a linguagem e atingir o que é inusitado. Mas para isso precisam ousar. Como sublinha Ivo Barroso, em apresentação da obra poética de Rimbaud, “o poeta precisa se fazer vidente e que essa vidência se obtém por meio do desregramento de todos os sentidos. É a teoria do encrapulamento, da exacerbação sensorial para atingir o novo e o desconhecido”.
O místico penetra um espaço de mistério que escapa à filosofia, mas que ao mesmo tempo a provoca, no sentido de nela despertar a “nostalgia do mistério das coisas”. E o leitor que se depara com as obras místicas necessita de uma sensibilidade particular para adentrar o seu enigma. No epílogo de sua clássica obra sobre a linguagem dos pássaros (Mantiq at-Tayr), o místico persa, Farīd ad-dīn ´Attār (séc. XII), assinala: “Entra com amor neste diwan, entrega tua alma com abandono e adentra este palácio. Em semelhante hipódromo (espiritual), que jamais foi visível, e onde a alma não se mostra, se não entras com afeto não verás nem poeira”. Para Attār, não há como acessar o caminho dos amantes senão saboreando o perfume que preside o texto e o discurso. É processual a dinâmica de captação da extraordinária virtude que se inscreve na poesia mística. Ela não revela o seu potencial senão com o tempo. É necessário retomar a cada instante a leitura para se perceber os “dons” que se multiplicam ininterruptamente. Attār Compara essa poesia com uma “esposa velada”, que vai deixando cair, lentamente, seus véus, entre mil graciosos galanteios.
Há que saber seguir os sinais (išārāt) ou pistas deixadas no caminho. Mas para isso é necessário um espírito particular, uma abertura singela para perceber os “toques de graça” (latīfa), ou sutilezas que envolvem o texto místico. Para Pablo Beneíto, estudioso do sufismo, esses são traços essenciais da alusão simbólica que possibilita a apreensão de uma obra que nasce movida por uma experiência que é singular. Supõe-se uma epistemologia própria, uma “teoria do conhecimento inspirada”, só acessível aos “amigos de Deus” (awliyā). Diferentemente do “exotérico”, que segue a rota tradicional, traçada no mapa comum, o iniciado “explora a dimensão da experiência interna e, em sua peregrinação pela senda do conhecimento, rastreia os atalhos da inspiração, seguindo os indícios que encontra em seu caminho”.
A linguagem mística guarda a peculiaridade de uma linguagem habitada por uma experiência abissal. O místico, como lembra Luis Felipe Pondé, “não fala a partir da sua condição criatural, mas sim da violência que esta sofre devido a visita daquilo que não cabe na natureza”. Há uma esgotante luta dos místicos para buscar expressar aquilo que os assoma, para dar alguma notícia do “inenarrável transe que lhes sobreveio”. Não ocorre um naufrágio da linguagem, mas transmutações nos vocábulos que libertam forças criadoras que levam ao limite o poder significativo das palavras. Na visão de María Zambrano, a experiência mística pode ser comparada com a autofagia que ocorre com a crisálida: esta desfaz o seu casulo, onde se encontra amortalhada, para alçar seu vôo infinito. O corpo devorado ganha asas de liberdade. Assim também acontece com o místico, que morre antes de morrer, ou seja, rompe com o aprisionamento egoico para “atravessar os umbrais da vida”. É alguém que sai em busca da asa que falta. Seguindo a bela reflexão de Zambrano, “o que o místico busca é sair dessa solidão atravessando como a crisálida o seu cárcere. ´Mônada` sem janelas, a alma humana do místico só consegue encontrar saída devorando o seu próprio cárcere, sua própria alma”. Aquilo que o move é um “desaforado amor pelo todo”. É esse amor que faculta a “mais fecunda destruição, que é a destruição de si mesmo, para que neste deserto, neste vazio, venha habitar por inteiro o outro”.
(publicado em amaivos.uol.com.br)
Nossa pai, que texto maravilhoso. Haja fôlego para te acompanhar. Um Beijo grande, Pedro.
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