Dossiê Pier Paolo Pasolini e o sagrado
Entrevista com Faustino Teixeira (com Cristiane de Castro)
Publicado em Mosaico Italiano - Comunità Italiana, Ano XIV, n. 118, abril de 2008, pp. 17-19
Abrir o espaço para a diversidade
1. Segundo Rudolf Otto o sagrado existe na esfera do religioso. Partindo deste referencial e considerando as diferentes formas de lidar com o religioso no decorrer da história, quais as principais mudanças na relação do homem com o sagrado após a modernidade?
Para minha resposta vou me servir de um referencial preciso. Trata-se de um dos filósofos brasileiros mais eruditos e refinados do século XX, o jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz, falecido em maio de 2002. São preciosas as análise que este pensador faz da fenomenologia da modernidade. Em obra sobre as “raízes da modernidade” (Loyola, 2002), Lima Vaz sublinha a presença de três eventos intelectuais que marcaram a história intelectual do Ocidente: o nascimento da razão grega, a assimilação da filosofia antiga pela teologia cristã e o advento da razão moderna. Dentre os traços que definem, a seu ver, a “modernidade pós-renascentista”, salienta em primeiro lugar a mudança da relação do sujeito com o mundo objetivo, com a aceleração tecnológica; em segundo lugar, a progressiva “afirmação histórica do indivíduo”, que se vê provocado a construir sua autonomia e sociabilidade; em terceiro lugar, a mudança na relação do sujeito com a transcendência. É o traço “mais significativo” da fenomenologia da modernidade. Algo de inédito acontece neste momento, ou seja, a ruptura da referência constitutiva do sujeito com respeito a um sagrado primordial. Firma-se pela primeira vez um ciclo civilizatório marcado pela imanentização, onde o existente humano passa a considerar-se como “fonte do movimento de auto-transcendência desdobrando-se na esfera da imanência: nas instituições do universo político, na construção do mundo técnico, na concepção autonômica do agir ético, na fundamentação teórica, enfim, da visão de mundo” (Vaz, 2002:16). Sem desconsiderar os aspectos positivos que acompanharam a secularização, há que sublinhar que ela revelou-se “extremamente traumática” para muitos contemporâneos, que não conseguiram “carregar o peso do desencantamento do mundo”. Na verdade, a visão secularista e positivista dominantes na “modernidade moderna” não livrou as pessoas de crises bem específicas: narrativas consideradas antes imperturbáveis sofreram também seus ocasos. Segundo Vattimo, revelaram-se também superadas as idéias “firmes” que ancoravam a “crença na verdade ´objetiva` das ciências experimentais, como a fé no progresso da razão com vista a um pleno esclarecimento” (Credere di credere, 1996). E importantes pensadores do Oriente, como Muhammad Khatami, apontam com plausibilidade os limites e deficiências dos caminhos que tomaram a civilização ocidental, em seu esquecimento de valores fundamentais como a via do coração.
2. Em Depois da Cristandade Gianni Vattimo afirma que nas primeiras décadas do século XX a cultura humanista começa a sentir necessidade de rebelar-se contra um pensamento que se vinha impondo com a racionalização do trabalho e o triunfo da tecnologia. Como esse quadro refletiu na obra literária e cinematográfica de Pier Paolo Pasolini?
De fato, seguindo a linha de pensamento apontada por Vattimo, esta nossa época “pós-moderna” instaura uma recusa da metafísica, ou seja, da tradição filosófica européia que insiste em “pensar a realidade como uma estrutura fortemente ancorada em um único fundamento”. Uma das mais importantes sinalizações do século XX foi a percepção da diversidade das culturas e o reconhecimento do valor do pluralismo. Com o fundamental recurso da antropologia cultural tomou-se consciência de que não há um único curso da história, mas sim culturas e histórias diferenciadas. Neste mundo agora informado pela consciência do pluralismo resiste-se contra pensamentos marcados pela tendência de tudo unificar, mesmo que em nome de uma verdade definitiva. Como sublinha Vattimo, vivemos um momento propício onde se pode novamente escutar as palavras da Escritura, mas de forma livre e animada pela caridade. É nesta tradição da recusa da metafísica que se insere o rico trabalho de Pier Paolo Pasolini, com a sua original “poetização do real”. É um artista que rompe os esquemas únicos e abre espaços para a diversidade. Sua respiração é marcada pelo ritmo da “pulsação das cidades” e o seu olhar rompe o frio esquema de quem olha o mundo como mero objeto de estudo: é alguém que “vive no mundo”.
3. Sobre o filme O evangelho segundo Mateus Pasolini afirmou que escolheu o primeiro evangelho devido à descrição de um Jesus humano, ali encontrada, uma figura de oposição. Declaradamente ateu, Pasolini não acreditava que Jesus Cristo fosse o filho de Deus, mas declarou que acreditava ser ele um ser divino, pois era dotado de uma humanidade alta, rigorosa e ideal. No que a descrição do Cristo presente no evangelho de Mateus e na adaptação feita por Pasolini, difere dos outros evangelhos?
Segundo Vattimo, o reencontro com a fé cristã é um dos desdobramentos da consciência do pluralismo pós-moderno. Curiosamente, é a partir de um olhar sobre o evangelho de São Mateus que Pasolini vai produzir uma das obras mais belas e poéticas sobre Jesus de Nazaré. Mesmo sendo anticlerical, Pasolini reconhece a “força poderosa” do patrimônio cristão e a sobrevivência de um “religioso” que contagia. A leitura que faz do evangelho de Mateus em Assis, num momento em que passava por um período de inquietação espiritual, desperta a inspiração para um novo registro cinematográfico da vida de Jesus. Sua intenção era fazer uma “obra de poesia”, e não um simples relato religioso ou ideológico. O texto de Mateus impactava pelo seu realismo, pela construção hebraica, que conjugava dureza e leveza. Um texto marcado pela iracúndia sagrada. O propósito era resgatar o realismo do evangelho e a humanidade de Jesus, e de Jesus radicado no seu povo. E o fez com grande fidelidade ao relato evangélico. Como ele mesmo sublinhou em certa ocasião: “Minha idéia é filmar, ponto por ponto, o Evangelho segundo São Mateus, sem fazer reduções ou roteiro. Traduzi-lo fielmente em imagens, seguindo sem acrescentar nada, a narrativa”. A revolução cinematográfica de Pasolini começa no âmbito corporal. Rompe-se com a imagem idealizada do Jesus Cristo-star, dos cabelos longos e loiros, que tangencia a história no seu esplendor extra-humano. A escolha do catalão Enrique Irazoqui para o papel de Jesus marca uma ruptura com a tradição iconográfica. Na realidade demasiadamente humana e “quase brutal” do novo rosto de Jesus delineada por Irazoqui, é difícil encontrar traços de divindade. É um rosto que traduz uma humanidade “grande, rigorosa, ideal”. Impressiona ainda a “beleza simples” da intérprete escolhida para o papel da Maria juvenil, a crotonense Margherita Caruso, bem como de sua mãe, Susanna Pasolini, para o papel de Maria aos pés da Cruz: uma Maria bem distante daquela de áurea divina idealizada por Luis Buñuel. Ao escolher o evangelho de Mateus para a sua adaptação cinematográfica, Pasolini faz uma opção pela cristologia funcional, que parte de baixo, da vida concreta de Jesus: do Jesus profeta, mestre, curador e libertador. É uma cristologia mais típica dos evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas), distinta do evangelho de João, que é mais ontológica (a partir do alto), ao acentuar a preexistência divina do Logos-Filho. Foi esta última cristologia que embalou a tradição eclesiástica na afirmação de seu modelo dogmático, que passou a ser normativo para a fé da igreja católico-romana. Mas neste modelo dominante a figura do Jesus como fonte de vida ficou muitas vezes embaçada na “teia das nuvens metafísicas”. A experiência de Jesus, e seu “mistério”, ficaram em segundo plano, diante do exercício dogmático de fixar-se nos mecanismos que explicam este mistério. A opção de Pasolini em favor da fidelidade ao texto de Mateus é coerente com a atual tendência de privilegiar os métodos narrativos: narrar a história de Jesus, como fazem os evangelhos.
4. Segundo Vattimo a secularização seria a aplicação da mensagem bíblica que a desloca para um plano não estritamente sagrado. Considerando-se que o Evangelho segundo Mateus é um filme que tem como objeto o sagrado, mas, segundo o próprio Pasolini, não deve ser considerado um filme religioso, pode-se dizer que este filme seria uma leitura secularizada do evangelho homônimo? Porquê?
A abordagem que Gianni Vattimo faz da secularização é positiva. Não a entende como um “decréscimo” do cristianismo, mas como uma possibilidade concreta para a sua purificação. Para ele, é a secularização que lança o radical questionamento à rigidez metafísica da tradição dogmático-disciplinar da igreja, a abertura para uma sadia laicidade e o desafio hermenêutico da reinterpretação contínua da mensagem bíblica. Trata-se de repensar os conteúdos da revelação em maior sintonia com o século. E também de retomada do núcleo kenótico do cristianismo, do “rebaixamento de Deus”, e da percepção de sua presença amigável com respeito às criaturas. Não há dúvida de que Pasolini buscou realizar uma leitura secularizada nesse sentido preciso. A sua interpretação cinematográfica do evangelho de Mateus é marcada por singular beleza poética, por uma leveza que encanta o espectador. Mas o tempo e o século se fazem presentes de uma forma vigorosa: no desenho dos rostos camponeses, na terra áspera e verdadeira do sul da Itália, na força das palavras inflamadas de Jesus. Tudo isso revela uma materialidade sem igual, e uma vontade de enraizamento no mundo popular. O texto de evangelho propicia a Pasolini a senha para uma crítica contumaz aos dissabores de seu tempo. E o faz através do discurso de Jesus. Há que recordar a força especial de algumas passagens do filme, como o discurso das bem-aventuranças, com o enquadramento do rosto de Jesus em primeiro plano. Mas também o ritmo das pregações de um Jesus árido e rude, de temperamento contrastante, mostrando sua dimensão demasiadamente humana. Quando ocorre um certo distanciamento do texto literário de Mateus é para poder acentuar ainda mais o lado humano dos personagens, o conflito de cada um, como no caso do acréscimo dos dramas humanos de André e Maria. A narrativa fílmica de Pasolini equilibra fidelidade e “aggiornamento”. O filme vem dedicado a um dos grandes estimuladores do “aggiornamento” da igreja católica ao tempo presente, que foi o papa João XXIII, e esta dedicatória foi motivo do efusivo aplauso dos cardeais católicos que assistiram ao lançamento do filme no cine Ariston de Roma, em 1964.
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