O cuidado espiritual no trabalho
em saúde
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Resumo: A temática do cuidado ganha hoje espaço
na prática do trabalho em saúde e nas reflexões a ele associado. É um tema
urgente e novidadeiro, que envolve uma série de desdobramentos, incluindo as
questões da espiritualidade e do cuidado a ser desenvolvido também com os
cuidadores. Trata-se do desafio do despertar para uma dimensão muitas vezes
esquecida, que habita o mundo interior e é a raiz que nutre as práticas de
solidariedade, cooperação e compaixão.
Palavras Chave: Cuidado,
Espiritualidade; Saúde; Vida
Introdução
É motivo de grande alegria poder
retornar nesse XIV Encontro de Atualização em Atenção Primária à Saúde (APS),
dedicado a um tema tão rico como o da educação permanente e cuidado em saúde
(outubro-novembro de 2013). Tinha participado como conferencista em outro
evento do NATES, falando sobre o projeto ético como afirmação de saúde. O tema
da fala veio publicado em artigo da Revista de APS (TEIXEIRA, 2001). Nesse trabalho
tratava da questão do cuidado como um modo essencial de viver o humano, nas
suas várias concretizações: cuidado com o planeta, cuidado com os outros,
cuidado com o corpo e o cuidado com a totalidade do ser humano, e em particular
com a sua dimensão espiritual. Como referencial bibliográfico, o livro de
Leonardo Boff – Saber cuidar -, lançado em 1999. Nesta obra, o autor recorria
ao pensador Martin Heidegger para assinalar a importância do cuidado, visto não
como uma atitude entre outras, mas como algo que se encontra na “raiz primeira
do ser humano”, enquanto “dimensão fontal, originária, ontológica” (BOFF, 1999,
p. 34). Para Heidegger, o cuidado ( Sorge
– preocupação) diz respeito à “totalidade-estrutural-originária, reside
existencialmente a priori ´antes` ,
isto é, já sempre em cada ´comportamento` factual e ´situação` do Dasein” (HEIDEGGER, 2012, p. 541;
HEIDEGGER, 2009, p. 154 e 227).
Fico hoje impressionado com essa
demanda pelo cuidado e pela espiritualidade como um todo. São preocupações que
cresceram muito nestas últimas décadas. Curiosamente, esse meu texto sobre o
cuidado, de 2001, é um dos mais acessados de meu blog, com quase 2000 acessos
desde abril de 2010 (http://fteixeira-dialogos.blogspot.com.br).
Esse tema retoma hoje com grande impacto e interesse. Como assinala uma
orientanda minha, que vem trabalhando com singularidade o tema da
espiritualidade do cuidado na relação materno-infantil, Carolina Duarte: “O
cuidado não é novo, muito menos sua necessidade. Muito já se falou ou escreveu
sobre isso. O que há de novo é a consciência de que somos um elo de uma
corrente. Somos um ponto de uma teia. O que é novo é a consciência de que se
não houver teia, não há ponto”.
Para esse breve artigo, o tema de
minha reflexão concentra-se sobre algo que vem me ocupando nesses últimos anos,
ou seja, o cuidado com o cuidador. O foco de atenção volta-se para a
espiritualidade que se requer do cuidador nesses tempos pontuados pelo recuo de
valores tão essenciais e milenares no âmbito da convivência humana em favor de
“valores” originados na racionalidade do mercado, tais como a competição, a
produtividade, o sucesso, o individualismo, o lucro, a vantagem e o consumismo.
Como bem lembrou a pesquisadora Madel Luz, o cuidado torna-se agora “crucial
para todos os indivíduos”, mas não só o autocuidado, mas também os cuidados em
âmbito da saúde:
“A
generalidade e o distanciamento abstrato com que são tratados os pacientes da
biomedicina, em função da centralidade da doença no paradigma da medicina
científica, criou uma barreira cultural para muitos indivíduos e grupos
sociais, que demandam ser efetivamente tratados,
e não apenas diagnosticados” (LUZ, 2003, p. 62-63).
Essa
atenção ao cuidado vem resgatar de forma rica a compreensão de saúde como
“expansão de vitalidade”, trazendo novamente à tona valores essenciais que se
encontram à margem, como delicadeza, cooperação, cordialidade e solidariedade.
A espiritualidade do cuidador
São
diversas as razões que motivam esse interesse pelo tema da espiritualidade do
cuidador. O trabalho cotidiano nesse âmbito da atenção básica à saúde, e em
particular no programa de saúde da família, tem trazido à tona uma série de
problemas, dentre os mais graves,
“a pouca eficácia das ações de
saúde restritas às intervenções técnicas sobre as partes do corpo acometidas
com alterações anatomo-patológicas ou das iniciativas de educação em saúde
centradas na mudança de hábitos por meio de conselhos para comportamento
definidos como de risco pela epidemiologia” (VASCONCELOS, 2011, p. 57).
A
questão se complexifica ainda mais quando percebemos que os principais
problemas (ou males) que afetam hoje a população brasileira são de caráter
existencial: nascidos das relações humanas ou suscitados por experiências
dolorosas que provocam uma crise de plausibilidade no seu mundo: divórcio,
separação, conflito familiar, solidão, violência, desemprego etc. Como aponta
com acerto Madel Luz, uma considerável parte “dos atendimentos em ambulatórios
da rede pública das metrópoles brasileiras – acredito mesmo que de todo o mundo
contemporâneo – estimada às vezes em cerca de 80%, seja motivada por queixas
relativas ao que se poderia ser designado como síndrome do isolamento e
pobreza” ( LUZ, 2001, p. 32). É a totalidade da existência que se vê comprometida
quando o sujeito experimenta essa diminuição de sua temperatura vital,
explicitada nas situações de sofrimento: seja com relação a si mesmo ou na
dinâmica de sua relação com os outros. Tudo isso pode suscitar um comprometimento
de seu sentido global da vida. Estar saudável, nesse sentido, é poder recuperar
a alegria, a disposição para a vida, o prazer das coisas cotidianas e a
convivialidade com os outros.
A saúde é um estado de equilíbrio,
um ritmo de vida, um processo contínuo no qual a harmonia vai se firmando dinamicamente.
É um laço de articulação entre respiração, metabolismo e sono, fenômenos
rítmicos que configuram vitalidade, revigoramento e aquisição de energia. A
doença, ao contrário, provoca dano à totalidade da existência. Como indica
L.Boff,
“não é o joelho que dói. Sou
eu, em minha totalidade existencial, que sofro. Portanto, não é uma parte que
está doente, mas é a vida que adoece em suas várias dimensões: em relação a si
mesmo (experimenta os limites da vida mortal), em relação com a sociedade (se
isola, deixa de trabalhar e tem que se tratar num centro de saúde), em relação
com o sentido global da vida (crise na confiança fundamental da vida que se
pergunta por que exatamente eu fiquei doente?)” (BOFF, 1999, p. 143).
No sofrimento verificamos a “epifania da vulnerabilidade”
(ROSELLÓ, 2009, p. 88). É o momento de nudez por excelência, onde não se tem
“refúgio”, quando então o sujeito se vê diante de sua fragmentação, exposto ao
traço inarredável de sua finitude. O ser humano é temporalidade, e faz parte de
seu percurso a dinâmica entrópica e o dissipar-se. E esse ser-no-tempo
“corrói todos os esforços
humanos de realização e plenitude ontológicas: a beleza, os gestos de fervor,
os impulsos do coração, os momentos de êxtase e comunhão, tudo isso que é nosso
´flutua e desaparece`. O próprio esforço de pensar e compreender não basta para
nos subtrair a essa inquietante fluidez, isto é, não há salvação possível pelo
conhecimento” (SILVA, 2013, p. 98-99)
O que é do humano,
sinaliza Rilke, “flutua e desaparece”. As árvores e as casas que habitamos, diz
o poeta, resistem, mas “nós passamos” (RILKE, 2013, p. 21). A experiência do
sofrimento não permite nenhum distanciamento dessa constatação do tempo: é
quando o sujeito se vê “encurralado pela vida e pelo ser” (LEVINAS, 1993, p.
109-110).
A enfermidade desperta “o lado obscuro da vida”,
visibilizando a “vulnerabilidade ontológica do ser humano” ( ROSELLÓ, 2009, p.
72). No impressionante romance de Philip Roth, Animal agonizante (2001), ele aborda a crise de saúde vivida pela
personagem Consuelo, uma belíssima jovem cubana, e a tensão que isso provoca na
sua relação com o professor David Kepesh. Depois de um diagnóstico de câncer no
seio, Consuelo convoca seu companheiro por telefone para um encontro. Desfeita
pela dor e pela quimioterapia, busca contar para ele “toda a história”, desde
que a moléstia tomou seu corpo jovem e a desnudou. Diante do amigo assinala:
“Você conheceu o meu corpo quando ele estava no auge. Por isso quero que você o
veja agora, antes de ele ser estragado pelo que os médicos vão fazer”. Solicita
um grande favor: com sua câmara Leica pede a ele para fotografá-la e despedir
de seus seios. O cenário é tecido, com as cortinas fechadas, as luzes acesas e
uma “música exata de Shubert”. Ela se põe a despir, elegante e vulnerável, peça
por peça. Ao final, diz a ele: “Você podia tocar meus seios?”. Ele a obedece.
Em seguida, ela pede várias fotos, de frente e de perfil. O clima provoca
excitação nos dois. Ele pergunta: “Quer transar comigo?”. A resposta vem na
contramão da expectativa: “Não. Não quero transar com você. Mas quero que você
me abrace”. O encontro acontecia num dia especial, de passagem de ano. E
Consuelo sofria, talvez, “o pior evento de toda a sua vida”. Juntos diante da
TV, acompanhando a comemoração que se prolongava por toda a noite, davam-se conta
da fluidez e precariedade de toda aquela alegria juvenil: “Uma histeria
infantil fabricada em torno do futuro infinito, uma fantasia que os adultos
maduros, com seu conhecimento melancólico de que o futuro é muito limitado, não
podem nutrir. E nesta noite enlouquecida ninguém tem um conhecimento mais
melancólico do que ela” (ROTH, 2009, p. 122).
Assim como com Consuelo, em Animal agonizante, algo semelhante
ocorre com o personagem Howie, no romance Homem
comum, do mesmo autor, Philip Roth. A crise agora ocorre com um homem, que
passa a viver momentos difíceis de desaquecimento de sua vida produtiva. Alguém
que, como tantos idosos, passa a enfrentar o desafio da vulnerabilidade, num
processo de “diminuição progressiva”. Torna-se agora um “homem comum”: “Seria
obrigado a encarar os dias que lhe restavam tal como via a si próprio – dias
vazios, noites incertas, suportando com impotência a deteriorização física e a
melancolia terminal e a espera, a espera por nada (...). Era hora de se
inquietar com o aniquilamento. O futuro longínquo havia chegado” (ROTH, 2007,
p. 117).
Ao falar sobre a saúde, Leonardo
Boff sublinha a importância de uma justa consideração sobre o tema. Não abraça
a definição simplista da Organização Mundial da Saúde ao apresentar uma concepção
não realista da questão, ao entender a saúde como um “bem-estar total,
corporal, espiritual e social”. Na verdade, falta vida a tal compreensão. O
caminho incide sobre uma percepção diversa, que saiba acomodar a “concretude da
vida que é mortal”. A saúde, na verdade, “não é um estado, mas um processo
permanente de busca de equilíbrio dinâmico de todos os fatores que compõem a
vida humana”. Ela é sobretudo
“uma atitude face às várias
situações que podem ser doentias ou sãs. Ser pessoa não é simplesmente ter
saúde, mas é saber enfrentar saudavelmente a doença e a saúde. Ser saudável
significa realizar um sentido de vida que englobe a saúde, a doença e a morte.
Alguém pode estar mortalmente doente e ser saudável porque com esta situação de
morte cresce, se humaniza e sabe dar sentido àquilo que padece” (BOFF, 1999, p. 144-145).
Com
base em estudos epidemiológicos, Eymard Vasconcelos sublinha que os principais
males que atingem a população brasileira são de ordem crônico-degenerativo.
Diante da complexidade de tais casos, os procedimentos adotados para o seu
acompanhamento não podem se restringir a medidas simples, exigindo ao contrário
tratamentos prolongados e, sobretudo, uma dinâmica de “reorientação do modo de
viver” (VASCONCELOS, 2011, p. 59). São situações que exigem do profissional de
saúde outros recursos: sobretudo o cuidado espiritual. Há que acompanhar o
outro nesse seu delicado momento de “estranhamento”, e saber ajudá-lo a
“reavivar as forças com as quais se conserva e se recupera o equilíbrio”. É o
que indica Gadamer em sua reflexão sobre a saúde e o tratamento a ela
requerido: um procedimento que envolve as mãos, o ouvido sensível e o olhar
atento e observador. O caminho a ser seguido é o que propicia a reinserção do
outro em sua experiência de mundo, em sua antiga posição na vida cotidiana
(GADAMER, 2006, p. 107 e 134).
O profissional da saúde é alguém que
se vê envolvido nos “momentos de crise mais intensa das pessoas, tem acesso e é
envolvido num turbilhão nebuloso de sentimentos e pensamentos, em que elementos
inconscientes da subjetividade se tornam poderosos”. É alguém que, como poucos,
se envolve “com o ´olho do furacão` da vida humana. Lida com situações de crise
que podem levar a uma desorganização ainda maior da vida do paciente pela
prisão às redes de mágoas, ressentimentos, perda de energia vital, confusão e
destruição dos laços afetivos” (VASCONCELOS, 2011, p. 62-63).
Não é fácil lidar cotidianamente com
processos de sofrimento. Conviver com o sofrimento é suscitar ou reavivar
situações que vão na mesma direção. Ocorre muitas vezes identificação com a
pessoa que passa por difícil momento. Como sublinha Eugenio Paes Campos,
“é impossível
ficar incólume, por exemplo, se atendemos uma criança com câncer. Como é
difícil suportar a proximidade com alguém que tem o rosto drasticamente
deformado; que tem uma doença contagiosa; que vomita diante de nós ou
comporta-se de modo bizarro, inconveniente, enlouquecido! Como é difícil ter
que amputar uma perna ou fazer um curativo em quem tem o corpo quase totalmente
queimado; consolar alguém que definha com câncer ou que acabou de perder um
ente querido” ( CAMPOS, 2005, p. 34).
São
situações de forte densidade emocional, que envolvem angústia e risco. E o
profissional se vê diante de exigências e cobranças que são duras ou pesadas:
de ser um onipotente ou salvador. O resultado muitas vezes é sabido: sentimento
de frustração, impotência ou sensação de fracasso diante do inexorável. Mas
tais situações podem também, e esse é um grande desafio, favorecer uma
reorganização da existência em direção a uma vida plena e saudável; de abertura
a um cuidado particular com a vida pessoal e interior: o auscultar o mundo
desconhecido da interioridade e resgatar energias essenciais para o trabalho
com os outros. Gadamer chama a atenção para esse ponto, tão negligenciado em nossa
civilização moderna e materialista: uma civilização que desenvolveu ao máximo o
traço da especialização do “ser-capaz-de-fazer científico”, mas que paralisou o
incentivo ao “autotratamento”, ao auscultar-se atenta e silenciosamente , de
forma a poder disponibilizar o sujeito para captar o canto das coisas e todas
as riquezas do mundo (GADAMER, 2006, p. 107).
O trabalho é, de fato, muito
exigente e os sinais de nosso tempo não são muito propícios para otimismos
fáceis. O que se vê, por todo canto, é a irradiação de desencanto, de perda das
energias vitais, de melancolia e nihilismo. Tudo muito palpável e visível. O
que se percebe no mundo em que vivemos é o desmonte das teias de significado. Está
ao alcance do olhar o crescimento dos traços da depressão. Ao tratar desse tema,
a psicanalista Maria Rita Kehl indica que dentre as doenças mentais é a
depressão que mais se expande pelo planeta. Sua presença no Brasil também é
evidenciada, envolvendo cerca de 17 milhões de pessoas. Mas com o recurso
poderoso do tratamento farmacológico, incentivado pela indústria farmacêutica,
busca-se, artificialmente, “subtrair o sujeito – sujeito de desejo, de
conflito, de dor, de falta – a fim de proporcionar ao cliente uma vida sem
perturbações”, mas a reboque firma-se justamente o contrário:
“vidas vazias
de sentido, de criatividade e de valor. Vidas em que a exclusão medicamentosa
das expressões da dor de viver acaba por inibir, ou tornar supérflua, a riqueza
do trabalho psíquico – o único capaz de tornar suportável e conferir algum
sentido à dor inevitável diante da finitude, do desamparo, da solidão humana”
(KEHL, 2009, p. 53).
São muitas as razões que levam os
depressivos aos consultórios, mas cresce o número daqueles que buscam ajuda em
razão de não suportarem “o empobrecimento da vida interior”, corroborado muitas
vezes pelo prolongado uso de antidepressivos.
A atenção sobre o cuidador
Diversos trabalhos têm acentuado o
traço de vulnerabilidade que envolve o profissional que atua no campo da saúde.
É substantivo o estresse por que passam tais profissionais. Os casos de
esgotamento psíquico e emocional não são isolados, com repercussões no trabalho
realizado e no interesse pelos pacientes, suscitando igualmente uma imagem
negativa de si mesmos. Pode-se ainda acrescentar o dado de competição e
rivalidade entre as diversas categorias de profissionais que atuam nessa área,
sobretudo nas instituições universitárias (CAMPOS, 2005, p. 18 e 51). São
situações complexas que indicam a importância de uma atenção maior à dimensão
do cuidado com o cuidador, e em particular do cuidado espiritual. É o desafio
de favorecer um clima essencial para que o profissional seja capaz de realizar
o seu trabalho com integração e harmonia. Para que ocorra “tratamento” em seu
sentido nobre, é necessário saber escutar literalmente a mão e
disponibilizar-se a ouvir com atenção e observar com um olhar cuidadoso. Não
basta saber agir, mas também tratar; não só prescrever e curar, mas também
cuidar.
A pessoa que cuida requer também
cuidados, pois é igualmente vulnerável e quebradiça. Nenhum ser humano,
sinaliza Roselló, “pode se desenvolver à margem do cuidado, porque todo ser
humano é radicalmente vulnerável” (ROSELLÓ, 2009, p. 130). O traço rotineiro do
fazer científico que rege a dinâmica do profissional deve ser amparado pelo
processo de “auto-tratamento”, de ausculta de si mesmo, reavivando e
equilibrando as forças interiores. O cuidador deve estar atento a esta questão,
de recuperação da dimensão de cuidado que incide sobre praticamente todas as
esferas da existência: com o corpo, com a alimentação, com a vida intelectual,
com a dimensão estética, com a condução geral da vida e com a vida espiritual.
Os profissionais da área necessitam desse holding,
para utilizar uma expressão winnicottiana, ou seja, de um suporte de acolhida e
revitalização, daquele “conjunto de cuidados e fatores de animação” que mantêm
aceso o estímulo para levar adiante, com alegria, o trabalho profissional. O
tão falado trabalho em equipe deve ocorrer também nesse campo do apoio, de
favorecimento do sentido de resiliência:
“Quando esse espírito de
cuidado reina entre os operadores da saúde, existe e reinam relações
horizontais de confiança e de mútua cooperação, superam-se os constrangimentos
nascidos da necessidade de ser cuidado. Aceita-se como dado de realidade que
quem cuida precisa ser cuidado. E deve-se aprender a fazê-lo, para que ninguém se
sinta humilhado ou diminuído, mas, ao contrário, ajude a estreitar os laços e
criar o sentimento de uma comunidade não só de trabalho, mas também de destino,
fundado no cuidado” (BOFF, 2012, p. 237).
O
cuidado envolve zelo, solicitude, diligência. E também preocupação e atenção
para com os dispositivos de apoio e proteção. O cuidado é sobretudo “uma
atitude de relação amorosa, suave, amigável, harmoniosa e protetora para com a
realidade, pessoal, social e ambiental” (BOFF, 2012, p. 34-35). O exercício do
cuidar reveste diálogo, não só de palavras, mas sobretudo de presenças. É na
verdade uma arte que envolve ternura, delicadeza e gentileza. Necessita, porém,
ser permanentemente alimentado, com a criação de espaços garantidos e especiais
para esse trabalho interior. É das mais importantes malhas do cuidado, essa que
lida com o cuidado do espírito, ou seja, com os valores essenciais que dão
sentido e rumo à nossa vida, e que tecem as significações de nossas esperanças.
A espiritualidade é, na verdade, “expansão da vida”. Cultivar esse caminho é
reavivar energias, próprias da dimensão espiritual, que são tão válidas e
fundamentais como as outras que envolvem o ritmo humano, como as energias da
libido e do afeto. Como indica Boff,
“O modelo estabelecido de medicina
não detém, por certo, o monopólio da cura e da compreensão da complexa condição
humana, ora sã, ora enferma. É aqui que encontra o seu lugar, dentro do campo
da medicina científica, a espiritualidade. Esta reforça na pessoa, em primeiro
lugar, a confiança nas energias regenerativas da vida, na competência do médico
e no cuidado diligente da enfermeira ou do enfermeiro. Sabemos pela psicologia
do profundo e pela psicologia transpessoal do valor terapêutico da confiança na
condução normal da vida” (BOFF, 2012, p. 221).
A
espiritualidade diz respeito ao incremento de uma dimensão fundamental, que
trata da interioridade do ser humano, e o seu cultivo resulta da expansão de
vitalidade e de qualidade de vida, resgatando sua dimensão de profundidade. Deixar-se
habitar pela atmosfera da espiritualidade é criar um espaço essencial para as
fragrâncias da profundidade. Os frutos vão surgindo naturalmente. Sobretudo a
paz espiritual, que é fonte secreta que alimenta a paz cotidiana em todas as
suas formas: irrompe de dentro e se irradia em todas as direções, qualificando
as relações e reinventando a cidadania.
Mas para isso é necessário criar as condições para esse cultivo. Um
certo “trabalho de cela” se impõe, deixando-se envolver pelo silêncio. Assim,
todos os sentidos poderão acordar para a beleza de tudo que nos circunda. Uma
espiritualidade dos sentidos vigilantes.
O reencantamento do cuidador
A espiritualidade tem a ver com
“qualidades do espírito humano”. Nem sempre estamos atentos a tais atributos,
pois eles são ofuscadas pela irradiação de contravalores associados ao mundo do
trabalho capitalista ou da racionalidade do mercado. Cresce, porém, uma
sensibilidade nova, que envolve um processo de humanização. A saúde é um campo
propício para o exercício de valores solidários e alternativos. Os “seres
sanitários”, para utilizar uma terminologia adotada por Julio Alberto Wong-Un,
ou seja, todos aqueles profissionais que atuam na área da saúde, sejam
clínicos, enfermeiros, sanitaristas e cuidadores, estão diante de um desafio
novo: o de “ser poético” no seu exercício profissional. Essa não é uma tarefa
fácil, pois fatores adversos estão em jogo, contrariando essa possibilidade: os
longos e entediantes períodos do trabalho rotineiro, somados aos baixos
salários e a carência de condições materiais para a realização de uma digna
atuação. Apesar de tudo, é possível tecer novos laços e encontrar caminhos de
realização interior, sobretudo em projetos que envolvem as comunidades, as
redes de apoio e os trabalhos em equipe. Aí é possível ver brilhar a poesia:
“Quanta beleza e quanto brilho,
quanta boniteza! Quão bom é sentir o seu olhar entusiasmado, a música da voz
querendo transmudar o mundo. Cada ato de cuidado se transforma em criação, cada
contato, conversa ou diálogo permite ir às profundezas da alegria, da
construção compartilhada de conhecimentos, de emoções e de ternuras (...). O
Olhar poético – como percepção e como via de conhecimento – realiza a alquimia
interior e a alquimia do diálogo. Em abraço amoroso, andamos nos construindo,
criando comunidade, coletivo, grupo” (WONG-UN, 2011, p. 260).
O
trabalho de reencantamento do cuidador é dos mais essenciais no tempo atual,
recuperando essa dimensão de poesia, de disponibilização para a riqueza do
canto das coisas. Não há muito segredo para isso: apenas reforçar esse estado
de atenção, o cultivo da ternura, delicadeza e gentileza. São pequenos gestos
realizados no cotidiano que sinalizam essa riqueza de um mundo interior. Como
sinalizou Boff, são “banalidades” que traduzem um alcance maior “do que a mais
preciosa joia. Assim como uma estrela não brilha sem uma atmosfera ao seu
redor, da mesma forma o amor não vive e sobrevive sem uma aura de afeto, de
enternecimento e de cuidado” (BOFF, 2012, p. 152).
Um dos exemplos mais bonitos nesta
direção foi apontado pelo filósofo Eric-Emmanuel Schmitt num dos romances de
sua “trilogia do invisível”, o volume que aborda o tema de Oscar e a Senhora Rosa. Esse livro, originalmente publicado na
França em 2002, ganhou sua tradução brasileira em 2003 (SCHMITT, 2003). O livro
trata de um menino de 10 anos, Oscar, que acaba de passar por um transplante de
medula, em razão de uma leucemia, mas a operação fracassa. Depois do ocorrido,
sua vida no hospital sofre mudança: deixa de agradar, como ele diz. Como o seu
caso não tem mais solução, médicos, residentes, enfermeiros e até os faxineiros
perdem o encanto. Falta entusiasmo na equipe que o acompanha, em particular no
dr. Düsseldorf,
para o qual Oscar significa uma “decepção”, já que não rende mais nenhuma
operação. O pensamento do médico, contagiante, refletiu-se nos demais. Como se
esta “derrota” visibilizasse para todos uma decepção. E Oscar argumenta que ele
contribuiu para tudo dar certo: “Empenhei-me de verdade na operação – fui bem
comportado, deixei que me fizessem dormir, senti dor sem berrar, tomei todos os
remédios”. E reflete: “O meu transplante foi uma decepção por aqui (...).
Agora, os médicos parecem perdidos, não sabem mais o que propor, chegam a dar
pena”. Mas é claro, diz Oscar, “médicos são inesgotáveis, cheios de ideias de
operações para fazer nas pessoas, e você não rende mais nenhuma”.
Quando tudo parecia ruir, eis que
aparece no hospital uma voluntária, Dona Rosa, que volta a encantar a vida
desse menino desenganado. Entra na sua vida com histórias que reencantam o seu
mundo. Sugere a ele: “E se você escrevesse a Deus, Oscar?”. E ele indaga: “E
pra que eu escreveria a Deus?”. “Pra se sentir menos sozinho”, responde Dona
Rosa. E aí segue o ritmo da história, simples mas comovente.
Para dar significado aos últimos dez
dias de vida de Oscar, Dona Rosa sugere uma história, com base numa lenda de
sua terra. Ela diz a ele: “A partir de hoje, cada dia seu conta por dez anos”.
Com a face iluminada, dá um beijo em Oscar e sai. A partir daí, a vida de Oscar
ganha um novo sentido. Numa das cartas, escreve a Deus:
“Deus, hoje de manhã nasci e
nem me dei conta direito desse fato; tudo ficou mais claro por volta do
meio-dia, quando tinha cinco anos, ganhei em matéria de consciência, mas não
foi para receber boas notícias; agora à noite, tenho dez anos, é a idade da
razão. Aproveito para pedir uma coisa: quando você for me anunciar algo, como
hoje ao meio dia, nos meus cinco anos, tente ser menos brutal. Obrigado”.
Oscar
chegou, finalmente, aos cem anos. Assinala em carta a Deus que tentou explicar
aos pais
“que a vida é um presente
estranho. No início, superestimamos este presente: imaginamos ter ganhado a
vida eterna. Depois subestimamos, achamos uma porcaria, curto demais, até
seríamos capazes de jogá-lo fora. Enfim nos damos conta de que não era um
presente, mas sim um empréstimo. Então procuramos merecê-lo. Aos cem anos, sei
do que estou falando. Quanto mais envelhecemos, mais devemos mostrar gosto para
apreciar a vida. O refinamento deve ser crescente”.
Aos cento e dez anos, a carta
dirigida a Deus era bem mais curta, dizia apenas: “Cento e dez anos. É muita
coisa. Acho que estou começando a morrer”. A última carta não foi de Oscar, que
partiu numa manhã, sem querer incomodar ninguém. Querendo evitar o desgaste da
dor, ou da brutalidade, preferiu celebrar esse adeus sozinho. Na verdade, diz
Dona Rosa, era ele quem zelava por todos. As palavras finais de Dona Rosa são
de agradecimento por ter encontrado esse menino em seu caminho:
“Oscar ocupou um quarto no meu
coração, e não tenho como tirá-lo de lá. Preciso segurar as lágrimas até hoje à
noite. Não quero comparar o meu sofrimento à dor, insuportável, dos pais dele.
Obrigado por ter posto Oscar no meu caminho. Graças a ele, fui engraçada,
inventei lendas, até parecia entender de luta livre. Graças a ele, ri, descobri
a alegria. Oscar ajudou-se a acreditar em Você. Estou lotada de amor: Oscar foi
generoso, tenho um estoque para o resto dos anos”.
Nos
últimos três dias de vida, Oscar tinha colocado um aviso em sua mesinha de
cabeceira: “Só Deus tem o direito de me acordar”.
Outras Donas Rosas existem
espalhadas por esse mundo afora, reencantando a vida de tantos meninos e também
adultos que passam por experiências de limite e dor. Isso poderia também
reverberar nos médicos, residentes, enfermeiros e profissionais que se dedicam
a tão importante causa, mas que poderiam adornar o seu conhecimento com essa
experiência espiritual interior. A poeta e escritora, Lya Luft, fala das
“mulheres ensolaradas”, cuja “luminosidade se espalha por toda parte. Mesmo
abaladas por alguma fatalidade, ainda que lhes falte o que para tantas sobra em
beleza ou luxo, têm em si uma espécie de obstinado sol que se desprende delas
como um perfume” (LUFT, 2001, p. 59).
Referências Bibliográficas
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Leonardo. Saber cuidar. Ética do
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Leonardo. O cuidado necessário.
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Editora Unicamp/Vozes, 2012 (edição em alemão e português – tradução e
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Publicado
na Revista de APS (NATES-UFJF), v. 17, n. 1, jan./mar. 2014, p. 120-126:
http://aps.ufjf.emnuvens.com.br/aps/article/view/2478/794
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