Thomas Merton e o canto das coisas
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Introdução
É sempre motivo de muita alegria poder escrever sobre
Thomas Merton, esse místico singular que adornou de vida e alegria a minha
jornada existencial, espiritual e acadêmica. É uma paixão antiga, herdada de
meus pais e curtida desde a adolescência. Na ampla biblioteca de minha casa em
Juiz de Fora a seção dedicada a Merton ocupava uma parte importante do arquivo
familiar. As primeiras leituras, iniciadas com a Montanha dos sete patamares, provocaram de imediato uma grande
sedução, que desde então só se aprofundou. A presença de Merton me acompanhou
durante os estudos universitários, e também na pós-graduação em teologia.
Depois, já como professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
da UFJF, pude orientar dissertações e teses sobre este místico singular, que
revela facetas das mais diversas e ricas para novos e enriquecedores trabalhos
de aprofundamento de seu penamento.
Escolhi como tema de reflexão para essa homenagem uma
questão que vem me tocando de forma muito particular nos últimos anos, e que
diz respeito ao jeito inovador e criativo como Merton viveu, refletiu e
praticou sua espiritualidade no tempo e na história. Merton aponta caminhos
novidadeiros para o entendimento desta questão, e de forma profética e
antecipadora, antes mesmo do Concílio Vaticano II (1962-1965) se firmar como
expressão de vida eclesial dialogal e inserida na dinâmica histórica.
O objetivo aqui é destacar os meandros da reflexão de
Merton sobre a vida contemplativa em sua dinâmica de acolhida dos sinais dos
tempos. Daí sublinhar o tema da sintonia espiritual com o canto das coisas, um
tema tão caro a Thomas Merton. Interessante perceber como toda a dinâmica
espiritual que marcou a trajetória desse místico trapista foi se revelando cada
vez mais terrenal, acolhedora e dialogal. Estamos diante de um místico
profundamente domiciliado na tradição cristã, que bebeu como poucos, nas fontes
mais vivas desse patrimônio de mistério, e que simultaneamente ao seu
aprofundamento espiritual, foi se abrindo a novos e desafiadores horizontes. Os
passos dessa caminhada espiritual foram muito bem destacados por um de seus
mais importantes biógrafos, William H. Shannon, que indicou claramente a
interseção dessa interlocução criadora entre o seu compromisso com a perspectiva
cristã, a ampliação de sua abertura espiritual e a receptividade dialogal a
outras grandes tradições religiosas[1].
A contemplação no tempo
Thomas Merton reconhece em página de
seu diário, de 06 de fevereiro de 1967, que suas melhores obras são aquelas produzidas após 1957, que é o ano
em que recebe Ernesto Cardenal como postulante no mosteiro de Gethsemani.
Destaca-se a obra Novas sementes de
contemplação, publicada em 1961. Ali aparece uma visão mais aberta da vida
contemplativa. Nessa obra “Merton liberta-se da moldura necessariamente
eclesial e se distancia definitivamente de uma abordagem abstrata, descritiva e
racionalizante da contemplação. Ele toma o caminho da intuição e da experiência
existencial”[2]. O monge trapista reagia não só ao
“abafamento” do tomismo, vigente em seu tempo, como à rotina formalista da
ordem em que pertencia. Seu desconforto vem expresso em várias ocasiões.
Buscava uma vida autêntica, para além da “rotina formalista, abstrata, de
exercícios religiosos”. O coração pedia algo diverso, mais aberto e menos
rígido. Chegou mesmo a propor, em julho de 1958, um projeto de mosteiro
diverso, “sem programa”, centrado na dinâmica vital; um mosteiro mais simples e
leve, sem hábito especial, aberto para as iniciativas pessoais e com interesse
mais amplo, envolvendo a abertura para a literatura, política e artes[3].
Nas descrições feitas por Ernesto
Cardenal sobre o tempo em que esteve sob a orientação de Merton, esse traço de
insatisfação aparece. O mestre dizia ao jovem noviço que a ordem trapista não
era para poetas como eles. Sobretudo em razão da rigidez e da disciplina
vigentes. Isto poderia ser adequado para alguns, mas não para eles. Acreditava,
porém, que por alguma razão Deus escolhera para eles esse caminho.
Acertaram-se, assim, numa dinâmica renovadora, que ia se firmando na orientação
levada por Merton. Sobre isso diz Cardenal: “Pouco a pouco fui me identificando
com ele em todo esse pensamento renovador, e fui superando toda a inquietação.
Estava já na conspiração”[4].
O foco de percepção sobre a
contemplação foi ganhando novas nuances no trajeto espiritual de Merton, mas a
questão sempre permaneceu central em sua vida e em sua obra. Nada mais
essencial para ele do que a vida contemplativa, um “ponto focal” para a
compreensão de toda a sua obra. Em vários de seus trabalhos essa essencial
referência vem sublinhada. A contemplação firma-se como a “via por excelência”
de integração de todos os aspectos da vida[5].
No primeiro capítulo de seu livro, Novas sementes de contemplação, Merton
esclarece o significado de contemplação:
“A contemplação é a mais alta
expressão de vida intelectual e espiritual do homem. É a própria vida do
intelecto e do espírito, plenamente despertada, plenamente ativa, plenamente
consciente de que está viva. É um espanto espiritual, uma admiração. Um temor
espontâneo, reverencial, diante do caráter sagrado da vida, do ser. É gratidão
pelo Dom da vida, pela consciência despertada, pelo ser. É a consciência viva
do fato de que, em nós, a vida e o ser procedem de uma Fonte invisível,
transcendente e infinitamente abundante. A contemplação é, acima de tudo, a
consciência da realidade dessa Fonte”[6].
Na visão de Merton, a contemplação é
algo nobre, que transcende filosofia e teologia, que extrapola nosso
conhecimento, nossas intuições ou experiências, mas que misteriosamente está
relacionada a tudo isso. Ele assinala que ela é compatível com todas essas
coisas, e mais ainda, é o seu segredo maior. Tudo o que almejamos e alcançamos
fica diminuto diante do horizonte que ela anuncia; tudo “morre” para ser
recuperado em outro âmbito, num plano de vida mais sublime. A contemplação
envolve uma alusão preciosa, de Alguém “que não tem mãos, mas é a pura
Realidade e a fonte de tudo que é real! Daí ser a contemplação um dom, uma
tomada de consciência repentina, um despertar à infinita Realidade que existe
dentro de tudo o que é real”[7].
Como explicar essa perspectiva tão
arejada sobre o tema, partindo de um monge trapista situado numa tradição tão
bem estruturada e arranjada ? É uma questão que se coloca. A resposta se anuncia
na forma precisa como Merton viveu o seu projeto contemplativo, nunca encerrado
nos muros de sua tradição. Soube manter a abertura permanente para acolher as
riquezas que se apresentavam para ele, vindas de patrimônios espirituais tão
diversificados. Sabia reconhecer, como poucos, “todas as riquezas da sabedoria
infinita e multiforme de Deus”[8]. A
contemplação é algo que toca o mundo da profundidade, despertando as
interrogações mais vivas que se irradiam desse “braseiro” dos mais finos
perfumes, para utilizar uma linguagem de Teresa de Ávila. E ali, naquele fundo
interior, há uma irmandade inter-dependente, daí se compreender, como indica
Merton, que os santos das diversas tradições, precisamente por estarem absortos
em Deus, possuíam uma viva “capacidade de ver e apreciar as coisas criadas”[9].
A peculiar sensibilidade espiritual
de Merton pode ser também explicada por alguns elementos que compõem o seu
perfil biográfico. De seus pais, herda uma sensibilidade artística: eram
pintores de paisagens. Em seu caminho de formação deixa-se habitar pela
dinâmica literária e poética, que ganha contornos particulares com o
aprendizado monástico e o influxo do Zen Budismo. São elementos que convergem
para a irradiação de uma personalidade espiritual exemplar, que se
disponibiliza para viver essa sintonia fina de atenção à presença plena do
mistério nas pequenas coisas do cotidiano. Em carta escrita por Merton a um
amigo, um pouco antes de sua aventura asiática ele assinala: “A nossa real
viagem na vida é interior: é uma questão de crescimento, de aprofundamento, e
de um abandono sempre maior à ação criativa do amor e da graça nos nossos
corações”[10].
Para Merton, a verdadeira vida
contemplativa não podia se encerrar num quietismo, mas envolvia sempre busca,
crescimento e inquietação. E sobretudo despojamento e liberdade. Dizia em
página de seu diário, em 7 de novembro de 1968:
“A vida contemplativa deve
proporcionar uma área, um espaço de liberdade, de silêncio, na qual as
possibilidades tenham permissão para aflorar e escolhas novas – além das opções
rotineiras – se tornem manifestas. Caber-lhe-ia criar uma nova experiência do
tempo, não como expediente provisório, como imobilidade, mas sim como temps vierge – não um vazio a ser
preenchido nem um espaço intocado a conquistar e violar, mas um espaço que
possa desfrutar de suas próprias potencialidades e esperanças – sua própria
presença ante si mesmo. Um tempo bem pessoal,
contudo não dominado pelo ego e suas exigências. Aberto portanto aos outros –
um tempo compassivo, enraizado na
percepção da ilusão em comum e a fazer-lhe crítica”[11].
Essa
inquietação espiritual acompanha Merton desde o tempo de sua conversão e
batismo, como ele mesmo relata em sua obra O
signo de Jonas, de 1953. Dizia que a vida de todo monge vinha marcada por
esse sinal, impresso a fogo na raiz mesma do ser, pois como Jonas, a viagem
para o horizonte destinado por Deus seria vivida “no ventre de um paradoxo”[12].
Thomas Merton era essa turbulência existencial e afetiva, e
sua vida espiritual veio adornada por essa tensão construtiva. Dizia em página
de seu diário, em agosto de 1961, que a vida movia-se “inexoravelmente em
direção à crise e ao mistério”. Tinha dificuldade de se definir como pessoa.
Entendia-se como uma “colcha de retalhos”, pontuada por inúmeras dúvidas,
obsessões e perguntas. Sentia-se gravitar “em torno do silêncio, das matas e do
amor”[13].
Marcado pelo seguimento de Jesus, que se definia como caminho, Merton também
entendia a sua peregrinação como projeto permanente de indagação e busca. Em
linda oração inscrita na obra Na
liberdade da solidão, de 1958, dizia:
“Senhor, meu Deus, não tenho ideia de aonde estou indo. Não vejo o caminho adiante de mim. Não posso saber com certeza onde terminará. Nem sequer, em verdade, me conheço. E o fato de eu pensar que estou seguindo tua vontade, não significa que realmente o esteja. Mas acredito que o desejo de te agradar te agrada, de fato. E espero ter esse desejo em tudo que estiver fazendo. Espero jamais vir a fazer alguma coisa distante desse desejo. E sei que, se agir assim, tu hás de me levar pelo caminho certo, embora eu possa nada saber sobre o mesmo. Portanto, hei de confiar sempre em ti, ainda que eu possa parecer estar perdido e sob a sombra da morte. Não hei de temer, pois tu sempre estás comigo, e nunca hás de deixar que eu enfrente meus perigos sozinho”[14].
Vida contemplativa e alteridade
Num de seus mais belos livros, Reflexões de um espectador culpado
(1966), Merton descreve uma experiência que é única. Ele estava na cidade de
Louisville, na esquina da Fourth Avenue
e Walnut, em pleno centro comercial, quando foi tomado por um sentimento
inusitado: da impossibilidade de uma “existência santa separada”, isolada do
mundo e dos outros. Deu-se conta de que a ideia comum, partilhada no mosteiro,
de uma “separação” era uma “completa
ilusão”. Na verdade, a vida de oração e a experiência da solidão tinham uma
ligação misteriosa com a existência cotidiana e o mundo secular. Ali em Louisville
Merton capta a presença de um brilho especial no íntimo das pessoas e o
significado singular da atitude que a vida de oração pode ter com respeito ao
mundo da alteridade. Reconhece, então, que sua solidão e sua vida de oração não
constituem um dado individual, mas algo que pertence aos outros, envolvendo uma
responsabilidade em relação a isso. Ele diz:
“Aconteceu, então, subitamente,
como se eu visse a secreta beleza de seus corações, a profundeza de seus
corações onde nem o pecado, nem o desejo, nem o autoconhecimento podem
penetrar. Isto é, o cerne da realidade de cada um, da pessoa de cada um aos
olhos de Deus. Se ao menos pudéssemos ver-nos uns aos outros deste modo,
sempre. Não haveria mais guerra, nem ódio, nem crueldade, nem ganância...
Suponho que o grande problema é que cairíamos todos de joelhos, adorando-nos
uns aos outros”[15].
Thomas
Merton sublinha, assim, a presença de uma centelha divina no mais íntimo do ser
humano, que nomeia – com base em expressão da mística sufi – de “point-vierge”, um ponto vazio, “cego e suave”, livre do pecado e da ilusão:
“Um ponto de pura verdade, um
ponto, uma centelha, que pertence inteiramente a Deus, que nunca está à nossa
disposição, do qual Deus dispõe para as nossas vidas, que é inacessível às
fantasias da nossa própria mente ou às brutalidades de nossa vontade. Esse
pontinho ´de nada` e de absoluta pobreza é a pura glória de Deus em nós”[16].
Na tradição sufi, da mística
islâmica, al-Hallaj – executado no ano 922 da era cristã (309 da hégira) – foi
quem primeiro falou deste “ponto luminoso” que habita o íntimo do ser humano[17].
Trata-se de um ponto (nuqta)
singular, que configura o núcleo da luz original, expressando para os sufis o
centro nevrálgico da esfera do tawhîd
(unicidade de Deus). O estudioso francês, Louis Massignon, retoma essa questão
em sua clássica obra sobre Hallaj, falando dessa “célula secreta murada a toda
criatura”, célula “virgem inviolada”[18]. É
dele que Merton retoma a expressão, servindo de base para a sua reflexão[19].
Como trapista, Merton tinha o hábito
de acordar sempre muito cedo, e pôde identificar no irradiar da aurora a
presença desse “ponto virgem” na própria natureza. O pontinho “cego e suave”
manifesta-se também no alvorecer, naquele “momento mais maravilhoso do dia”,
quando “a criação em sua inocência pede licença para ´ser` de novo, como foi,
na primeira manhã que uma vez existiu”. O contato com a natureza acaba
revelando para Merton a riqueza desse ponto secreto que habita o íntimo de cada
um. A analogia é perfeita e reveladora: “Os primeiros pios dos pássaros que despertam
marcam o point-vierge da aurora sob
um céu ainda desprovido de luz real. É um momento de temor reverente e de
inexprimível inocência, quando o Pai, em perfeito silêncio, lhes abre os olhos”[20].
A experiência de Louisville abre um
caminho novo para Merton, de percepção viva de que a solidão deve pertencer não
apenas a Deus, mas a todas as criaturas. Não se trata de algo que se guarda
como propriedade pessoal, mas um dom que se irradia para os outros. Desvela-se
assim uma concepção rica de vida monástica, aberta à vida e à experiência do
vasto mundo, para além da clausura.
O momento kairológico do eremitério
Tendo gestado por muito tempo o
sonho de ser eremita, Merton consegue, finalmente, em julho de 1965, a licença
que buscava para dedicar-se inteiramente à vida de oração. Deixa o encargo com
os noviços para viver essa nova experiência. Quebrando uma tradição vigente na
ordem trapista, Merton passa a viver numa construção no bosque, a cerca de 1,5
km do prédio central do mosteiro. Em 11 de setembro de 1965, relata em seu
diário: “Não tenho o ´espaço` oficial do mosteiro – santificado, juridicamente
definido, cercado de elaborados costumes – como meu ambiente. Estar fora dele é
uma grande bênção. É um espaço cheio de ilusões e sob a tirania de premeditadas
invencionices. Meu espaço é o mundo criado e redimido por Deus”[21].
Merton reconhece nesse início de
experiência um “retorno ao mundo”, ao contato direto e humilde com a criação de
Deus. Também uma possibilidade única de viver o mistério da solidão, não de uma
solidão qualquer, mas de uma “solidão sonora”, para utilizar uma expressão de
João da Cruz. Passa então a se confrontar com a vida solitária e o desafio
fundamental de “estar presente” no mundo aberto de Deus. Tem consciência de
como a vida solitária é assombrosa e assustadora, uma vez que ela arranca as
máscaras e os disfarces. Ela coloca o sujeito nu diante de si mesmo, forçando
um campo de reflexão inabitual. Assinala em seu diário, em 6 de outubro de
1965:
“O que eu menos quero no mundo
é ´ser eremita`. A imagem do homem barbudo, meio cego e em lágrimas, vivendo
numa caverna, não basta (...). Venho à solidão para ouvir a palavra de Deus,
para manter-me na expectativa de uma realização cristã, para compreender a mim
mesmo em relação a uma comunidade que duvida de si e se questiona, e da qual
faço parte. Não venho à solidão para ´atingir os pícaros da contemplação`, mas
para descobrir penosamente, para mim mesmo e para meus irmãos, a verdadeira
dimensão escatológica de nosso chamado”[22].
Num
de seus livros, Merton dizia que em certos momentos ocorre a presença um “raio
de Zen no meio da Igreja”. Ali em sua ermida pode, finalmente, realizar essa
experiência de uma vida atenta e desperta. Esse ensinamento Zen já era usual
desde o tempo em que coordenava o noviciado, como lembra Ernesto Cardenal em
suas memórias. A ideia de que “a vida do contemplativo era simplesmente viver,
como o peixe na água”[23].
Agora, num espaço especial, assume radicalmente esse espírito: “O que eu faço é
viver. Como eu rezo é respirar”[24].
Em contato com a natureza, Merton
sente-se “desperto e respirando”, atento com todos os sentidos, acolhendo com
alegria a polifonia das vozes da mata. Tudo o que o envolve preenche-o de
alegria. Assinala em seu diário: “Uma coisa que o eremitério está me fazendo
ver – que o universo é minha casa e que, se não for parte dele, eu não sou
nada”[25].
Trata-se, como diz, de um lugar de gratuidade, dado sem merecimento por Deus:
“É uma delícia. Não posso
imaginar outra alegria na Terra além de ter um tal lugar e nele ficar em paz,
viver em silêncio, pensar e escrever, ouvir o vento e todas as vozes da mata,
viver à sombra da grande cruz de cedro, preparar para minha morte e meu êxodo
para o país celestial, amar meus irmãos e todas as pessoas, rezar pelo mundo
todo e pela paz e bom senso entre os homens”[26].
O
que se constata de forma mais interessante nesta experiência eremítica de
Merton, de toque kairológico, é que na medida em que ele avançava em seu
caminho de interiorização mais dilatava sua abertura aos novos âmbitos da
realidade, incluindo a abertura dialogal[27].
E o contato mais prolongado com a natureza vai permitir a Merton um
aprofundamento e enriquecimento de sua vida contemplativa. Para ele estava
claro que por traz de todas essa luzes e cores vigorava a presença altiva e
terrenal de um dom e de uma graça. Em seus diários e livros essa presença é
cantada com alegria:
“Poder-se-ia dizer que me casei
com o silêncio da floresta. A quentura escura e doce do mundo terá de ser minha
esposa. Do coração dessa quentura escura vem o segredo que só se ouve em
silêncio, mas que está na raiz de todos os segredos sussurrados na cama, em
todo o mundo, por todos que estão se amando. Assim, tenho talvez obrigação de
preservar a quietude, o silêncio, a pobreza, o ponto virginal de puro nada que
está no centro de todos os demais amores. Tento cultivar essa planta, sem
comentário, no meio da noite, e rego-a com salmos e profecias em silêncio”[28].
Merton tem ciência de que “tudo o que existe é santo”[29],
que as riquezas naturais expressam vivamente o louvor de Deus: “Hoje, Pai, este
céu azul Te louva. As delicadas flores verdes e alaranjadas das árvores Te
louvam. As colinas azuis distantes Te louvam juntamente com a aragem de suave
perfume repleto de luz brilhante. Os insetos voltejantes Te louvam. Também o
gado Te louva e as codornizes que assoviam à distância”[30].
É em meio a tudo isso que Merton se abre à Presença e ao conhecimento do
Mistério. É uma vida terrana de serenidade, desacelerada, uma vida “de baixa
definição”, pontuada pela gratuidade e bem distante das negociações e
transações que palpitam na dinâmica dos humanos. Ele assinala: “É lá embaixo do
morro que os problemas começam. Lá, sob a torre da caixa d´água, há soluções.
Aqui há matas, raposas. Não há necessidade de óculos escuros aqui. ´Aqui` nem
mesmo se esquenta com referências a ´lá` . É simplesmente um ´aqui` para o qual
não há nenhum ´lá`. Tal a frieza da vida de eremita” [31].
Uma das coisas interessantes que se pode observar nas
pessoas de forte densidade espiritual é a capacidade de atenção, delicadeza e
cuidado com tudo que os circunda. Um exemplo singular pode ser encontrado no
testemunho do buscador Henri le Saux (Abhisiktânanda) a respeito de Raimon
Panikkar numa peregrinação dos dois às fontes do Gange. Ele assinala que
durante todo o trajeto, Panikkar estava atento a tudo o que via no caminho.
Admirava cada detalhe da maravilhosa natureza, e a cada momento interrompia o
passo para contemplar os cumes das montanhas e a neve distante; mas também os
rostos de quem encontrava, com saudações de afeto e alegria[32].
Assim também com Merton, em sua estadia no eremitério. Assinala também o traço
de sua atenção e cuidado. Em seu caminho cotidiano tudo era objeto de
admiração: “Cada vez mais aprecio a beleza e a solenidade do ´caminho` que
passa pelos bosques, os estábulos, a subida pedregosa, penetra no círculo dos
altos carvalhos e das nogueiras esguias, dando a volta pelos pinheiros,
erguendo-se até o alto da colina e o espaço plano que domina o vale”[33].
Como explicar esse olhar? Como entender o mundo interior
que faculta esse olhar? Um dos grandes místicos da tradição sufi, Jalal ud-Din Rûmî (séc. XIII), dizia que a
beleza da paisagem relaciona-se com o sentimento interior. Há sempre que lavar
as mãos e o rosto nas aguas do Amado para então situar com pertinência o olhar
sobre as coisas[34].
Conforme a reflexão de Merton, esse olhar vem desenvolvido no que ele denomina
“trabalho de cela”. Trata-se de um profundo trabalho da interioridade voltado
para o aperfeiçoamento da atenção e da escuta. Um trabalho que busca sintonizar
a voz do coração com a voz do Mistério sempre maior. Diz Merton a respeito:
“Não é simplesmente uma questão
de ´existir` sozinho, e sim de fazer, com compromisso e alegria, o ´trabalho de
cela`, que é feito em silêncio e não de acordo com a escolha pessoal ou a
pressão das necessidades, mas em obediência a Deus. Como a voz de Deus não é
´ouvida` a todo instante, parte do ´trabalho de cela` é atenção, para que
nenhum dos sons dessa Voz possa ficar perdido. Quando vemos quão pouco nós
ouvimos, e quão obstinados e grosseiros são os nossos corações, percebemos como
o tralho é importante e como estamos mal preparados para fazê-lo”[35].
O
trabalho de cela é também um trabalho de quietação do coração, de relaxamento
interior, de disponibilização dos sentidos. Merton recorre também a um termo da
mística de Eckhart para expressar um de seus desdobramentos: Gelassenheit (estado de serenidade, de
abandono a Deus). Em página de seu diário, com data de 13 de novembro de 1966,
Merton assinala: “Gelassenheit –
deixar rolar e largar-se – não ser estorvado por sistemas, palavras, projetos.
E no entanto ser livre nos sistemas, projetos”[36].
Aqui tocamos num ponto essencial da mística de Merton, que traduz uma rica
herança de autores da tradição cristã, como Eckhart. Trata-se do tema do
despojamento. Não há como aperfeiçoar o olhar e os demais sentidos sem esse
movimento de desapego: recuar o eu para possibilitar o brilho do outro. Diz
Merton: “Tenho de aprender a ´largar-me` para poder me encontrar, entregando-me
ao amor de Deus”.[37] O
desapego requerido não instaura uma barreira entre as “coisas” e “Deus”, como
se fossem rivais: “Não nos desapegamos das coisas para nos apegarmos a Deus.
Melhor, nos desapegamos de nós mesmos de maneira a ver e usar todas as coisas
em e para Deus”[38]. Esse caminho do auto-esvaziamento é algo
requerido nas “mais elevadas tradições religiosas” para o alcance da realização
transcendente. É um tema recorrente na reflexão de Merton, de modo particular
em suas obras em diálogo com o Zen Budismo. E esse despojamento é mesmo
radical, a ponto de desvencilhar o sujeito de qualquer posse ou garantia, na
linha de uma pobreza radical, como igualmente sugere Eckhart num de seus
sermões alemães[39].
Um despojamento tal que libere também o sujeito de um “lugar onde Deus pudesse
atuar”[40].
Perpassa uma fina sintonia entre os dois grandes místicos, Eckhart e Merton. O
monge trapista encontra em Eckhart uma pista segura para o exercício de
purificação do coração. Sublinha que Eckhart emerge como o elo seguro para a
restauração de sua continuidade e de sua obediência a Deus, possibilitando a
presença de seu amor no mundo interior[41].
No tempo em que viveu no eremitério,
os últimos anos de sua vida, Merton recuperou o sentido mais nobre de solidão:
a solidão sonora. Trata-se de uma experiência forte e desafiadora para ele:
“Quando as cordas são largadas e o barco já não está mais preso à terra, mas
avança para o mar sem amarras, sem restrições! Não o mar da paixão, pelo
contrário, o mar da pureza e do amor sem preocupações”[42].
O passo da solidão é o momento propício para esse trabalho interior, de
purificação do coração. Para quem está preparado, tudo é uma bênção e
revelação, um momento privilegiado de paz, significado e silêncio: “A bênção de
serrar madeira, cortar grama, lavar pratos, arrumar a casa. A bênção de uma
meditação de todo ´presente` , serena, concentrada e atenta. A bênção da
presença e orientação de Deus”[43].
É também o momento favorável à abertura, já que a solidão verdadeira “abarca
tudo, pois é a plenitude do amor que não rejeita nada e ninguém, que se abre
para Todos em tudo”[44]. Na visão de Merton, a solidão envolve a
“liberação de forças ativas” do mundo interior. É quando se desce à raiz do
próprio ser e se tangencia a liberdade-realidade, quando o ser humano se
disponibiliza simplesmente a ser “levado, transportado, batido e rebatido,
movimentado”[45].
O retorno é sempre impressionante, pois envolve o vigor de um fundo da alma
exercitado, como o exemplo de Marta trabalhado por Eckhart[46].
Interessante a analogia que pode ser feita com o budismo Zen, quando se aborda
a questão do irromper no “nada da Deidade”. Essa experiência interior não é um
mero voo especulativo, mas envolve um particular cuidado com o humano real.
Como sinaliza Shizuteru Ueda, da Escola de Kyoto, a experiência de aproximação
à Deidade envolve um retorno que é qualificado espiritualmente: “O irromper
ascendente ao nada da Deidade e o retorno descendente ao mundo real torna-se,
pouco a pouco um. A vida ´sem porque` e a ´vida humana real` transformam-se em
uma vida animada, real”[47].
Conclusão
A riqueza de pistas e horizontes que
se abrem com a obra de Thomas Merton é mesmo impressionante. São portas e
janelas para temas vivos e novidadeiros. As facetas são inúmeras e a beleza
suscitada pela reflexão provocam atenção e maravilhamento. Trata-se de um dos
místicos mais criativos e instigadores do século XX, mais controversos e
desconcertantes. Busquei fixar-me mais neste artigo sobre a sua faceta
contemplativa, mas é também um místico que provoca a convocação à compaixão e a
abertura dialogal. Acompanhar o seu itinerário espiritual é uma aventura
prazeirosa e inspiradora, pois sua vida foi marcada pela busca da autenticidade
e pela sede do Mistério de Deus.
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UEDA, Shizuteru. O nada absoluto no Zen, em Eckhart e
em Nietzsche. Natureza Humana, v. 10,
n. 1, p. 165-201, jan.-jun. 2008.
(Publicado na obra: Mertonianum 100. São Paulo, 2015)
[1] SHANNON, William H. Silent Lamp. The Thomas Merton Story. New York: The Crossroa
Publishing Company, 1992, p. 279-281.
[2] PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas Merton. Contemplação no tempo e na história. São Paulo:
Paulus, 2014, p. 56.
[3] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade. Sua vida em seus
diários. Rio de Janeiro: Fissus, 2001, p. 144-145.
[4] CARDENAL, Ernesto. Vida perdida. Memorias 1. Madrid: Trotta, 2005, p. 142-143.
[5] PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas Merton, p. 50.
[6] MERTON, Thomas. Novas
sementes de contemplação. 2 ed. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 9.
[7] MERTON, Thomas. Novas
sementes de contemplação, p. 10.
[8] SECRETARIADO para os não-cristãos. A igreja e as outras religiões. Diálogo
e missão. 2 ed. São Paulo: Paulinas,
2002, n. 41.
[9] MERTON, Thomas. Novas
sementes de contemplação, p. 30. E ainda complementa: “E é porque só a ele
amavam que amavam, como ninguém, ao próximo”.
[10] Apud MONTANARI, A & RENZINI, M & ZANINELLI,
M. Thomas Merton. Il sapore della
libertà. Milano: Paoline, 2014, p. 142.
[11] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 403.
[12] MERTON, Thomas. Il segno di Giona. Milano: Garzanti,
1953, p. 3.
[13] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 343.
[14] MERTON, Thomas. Na liberdade da solidão. 2 ed.
Petrópolis: Vozes, 2001, p. 66 (em leve mudança de tradução).
[15] MERTON, Thomas. Reflexões
de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 183.
[16] Ibidem, p. 183.
[17] RUSPOLI, Sthéphane. Le message de Hallâj l´expatrié. Paris: Cerf, 2005, p. 148 e 264.
[18] MASSIGNON, Louis. La
passion de Hallâj III. Paris: Gallimard, 1975, p. 26.
[19] MERTON, Thomas. Reflexões
de um espectador culpado, p. 175; BAKER, Rob & HENRY, Gray (Eds). Merton & sufism. Louisville: Fons
Vitae, 1999, p. 63-68.
[20] MERTON, Thomas. Reflexões
de um espectador culpado, p. 151,
[21] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 296.
[22] Ibidem, p. 298-299.
[23] CARDENAL, Ernesto. Vida perdida, p. 144.
[24] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 279.
[25] Ibidem, p. 273.
[26] Ibidem, p. 272.
[27] ALLCHIN, D. et al. Thomas Merton. Solitudine e comunione. Magnano: Qiqajon, 2006, p.
7; PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas Merton,
p. 201.
[28] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 281.
[29] Enriquecedor o debate entre Thomas Merton e o poeta e
escritor Czeslaw Milosz a respeito da abordagem otimista de Merton: cf.
PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas Merton,
p. 199-201.
[30] MERTON, Thomas. Reflexões
de um espectador culpado, p. 205. Ver também: Id. Na liberdade da solidão, p. 78; Id. Diálogos com o silêncio. Rio de Janeiro: Fissus, 2003, p. 115.
[31] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 278.
[32] LE SAUX, Henri. Alle
sorgente del Gange. Pellegrinaggio spirituale. Milano: Cens, 1994, p. 51.
[33] MERTON, Thomas. Reflexões
de um espectador culpado, p. 207.
[34] RUMI, Jalal ud-Din. Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar, 1996,
p. 54.
[35] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 285. Ver
também: PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas
Merton, p. 88s.
[36] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 347.
[37] MERTON, Thomas. Novas
sementes de contemplação, p. 25.
[38] Ibidem, p. 29.
[39] ECKHART, Mestre. Sermões
alemães 1. Bragança Paulista/Petrópolis: Editoria Universitária São
Francisco/Vozes, 2006, p. 287s (Sermão 52). Ver ainda: Id. Sobre o
desprendimento. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[40] MERTON, Thomas. Zen
e as aves de rapina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 14 e
74.
[41] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 343.
[42] Ibidem, p. 270.
[43] Ibidem, p. 293.
[44] Ibidem, p. 315.
[45] Ibidem, p. 334.
[46] Na visão de Eckhart, Marta atua no tempo
“essencialmente”, com o fundo de seu ser exercitado: Sermões alemães 2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 133 ( Sermão 86).
[47] UEDA, Shizuteru. O nada absoluto no Zen, em Eckhart e
em Nietzsche. Natureza Humana, v. 10,
n. 1, jan.-jun. 2008, p. 182.
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