sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Francisco e os povos da Terra

Francisco e os povos da Terra

Faustino Teixeira[1]


            O início do pontificado de papa Francisco, em março de 2013, significou um passo de grande importância na vida da igreja católica. Com um toque profético que encantou a muitos, deu sequência viva ao projeto do Concílio Vaticano II (1962-1965), expresso na passagem da Constituição que abordou a presença da igreja no mundo de hoje, Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1). Francisco assume sua nova responsabilidade com essa disposição de acolhida e serviço, empenhado em buscar novos caminhos para a instituição, que agora vem desafiada a “sair de si mesma e ir ao encontro” dos outros, assumindo sua vocação evangélica pontuada pelo ágape (amor).

            Em vários momentos de seu pontificado, Francisco testemunhou esse exercício pastoral alternativo, já vislumbrado em sua visita a Lampeduza, na Itália, ou na jornada brasileira, com uma atuação corajosa e aberta. Uma sintonia fina une o papa Francisco com os movimentos sociais e com a causa dos pobres e excluídos. O que se viu em Roma, em outubro de 2014, no encontro histórico de Francisco com representantes de quase cem entidades dos movimentos populares de todos os continentes foi algo inaugural. Um momento histórico que jamais tinha ocorrido na vida da igreja católica nesta proporção. Como sublinhou com acerto Ignacio Ramonet, foi uma “assembleia mundial dos povos da Terra”; um momento solene de acolhida e hospitalidade eclesial, quando então se pôde ouvir a voz e o clamor dos pobres em favor de um mundo melhor.

            O discurso do papa Francisco, ocorrido em 28 de outubro de 2014, conseguiu recolher com fidelidade as demandas suscitadas no evento, como os próprios participantes reconheceram na declaração emitida ao final: Carta dos excluídos aos excluídos. Disseram: “A claridade e contundência de suas palavras não admitiram duas interpretações e reafirmam que a preocupação pelos pobres está no centro do Evangelho”. Foi mesmo o que afirmou Francisco naquele momento, vislumbrando no acontecimento um grande sinal: “Vocês vieram colocar na presença de Deus, da Igreja, dos povos, uma realidade muitas vezes silenciada. Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela”. Trata-se de uma luta sagrada, em favor de direitos sagrados, que realçam o amor pelos pobres, que está no cerne do evangelho. Essa atenção para com os pobres guarda uma motivação teológica, como lembrou o Documento de Puebla, em janeiro de 1979: “Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os ama” (n. 1142).

            Três grandes anseios estavam presentes neste evento histórico: a luta em favor da terra, do teto e do trabalho. Um anseio essencial por “direitos sagrados”, que tocam o cerne do projeto evangélico. Em seu discurso, Francisco dá voz aos segmentos que expressaram no evento seu descontentamento com as arbitrariedades e desmandos que ocorrem nesses três campos. Questões relacionadas à apropriação de terras e de águas, a violência dos agrotóxicos e a chaga do desmatamento. Sublinhou o drama do desenraizamento de tantos irmãos camponeses, colocando em risco a relação vital e espiritual com a terra; e também a dor dos que sofrem com a falta de moradia: “Hoje, vivemos em imensas cidades que se mostram modernas, orgulhosas e até vaidosas. Cidades que oferecem inúmeros prazeres e bem-estar para uma minoria feliz... mas que se nega o teto a milhares de vizinhos e irmãos nossos”. E para complicar o quadro, a grave questão da falta de trabalho, o desemprego dos jovens, a exclusão dos direitos trabalhistas e a irradiação da informalidade. Há também o fenômeno do trabalho escravo, da exploração e opressão. E aqueles que não conseguem alguma “integração” na lógica do mercado acabam sendo descartados, como tantos idosos que deixam de ser “produtivos”. Firma-se então uma “cultura do descarte”, com a presença dolorosa de excluídos “sobrantes”, ou então de desempregados, que na Europa chegam à faixa de 40% entre os jovens.

            Não faltou coragem ao papa Francisco para identificar nessa situação a presença de um mecanismo nefasto, em cujo centro do sistema econômico aparece o novo deus dinheiro, com exclusão violenta do ser humano. É o que ele já tinha reconhecido na sua exortação apostólica de novembro de 2013, Evangelii Gaudium (A alegria do evangelho). Foram contundentes as críticas dos participantes do evento, retomadas por Francisco, a respeito da grande ofensiva do capital nacional e internacional, e seus efeitos nocivos sobre os recursos naturais em todo o planeta. Falou-se igualmente das crises climática, energética e alimentar.

            Em momento forte de seu discurso, Francisco sublinhou com ênfase a questão ecológica: “Não pode haver terra, não pode haver teto, não pode haver trabalho se não temos paz e se destruímos o planeta”. Convoca, assim, todos os povos da terra para lutarem em favor dessa causa fundamental, de preservação desses dois dons preciosos: a paz e a natureza. Rechaça, de um lado, os passos da guerra, que hoje vem sendo travada em cotas; e de outro, as garras de um sistema econômico que sobrevive no projeto nefasto de saquear a natureza a todo custo. E os povos,  com prejuízo dos mais pobres e excluídos, acabam sendo envolvidos nessa globalização da indiferença. Sua crítica é contundente: “As mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, o desmatamento já estão mostrando seus efeitos devastadores nos grande cataclismas que vemos, e os que mais sofrem são vocês, os humildes, os que vivem perto das costas em moradias precárias, ou que são tão vulneráveis economicamente que, diante de um desastre natural, perdem tudo”.

            Um dos grandes cientistas brasileiros, Antonio Donato Nobre (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – IMPE), adverte para a violência ecológica que vem ocorrendo hoje na Amazônia com o violento desmatamento. Só nos últimos quarenta anos, assinala, foram destruídas 42 bilhões de árvores, três milhões por dia, o equivalente a três Estados de São Paulo ou duas Alemanhas.

            Esses são grandes desafios colocados aos movimentos sociais, e que estiveram no centro das discussões do encontro de Roma em outubro de 2014. Apesar do reconhecimento de certa fragilidade das organizações populares, percebeu-se, com clareza, que o verdadeiro movimento transformador parte sempre de baixo, e nem sempre pelos caminhos lógicos da democracia formal. As crises, conflitos e perseguições por que passam os movimentos sociais não se revertem necessariamente em desânimo ou capitulação. Há um traço de resiliência nos movimentos de base que impressiona: o poder de uma solidariedade e de uma “artesanalidade” nas formas de resistência que surpreendem e encantam.

(Publicado em Le Monde Diplomatique, 06/01/2015:



[1] Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – MG.

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