Francisco e os povos da Terra
Faustino Teixeira[1]
O início do pontificado de papa
Francisco, em março de 2013, significou um passo de grande importância na vida
da igreja católica. Com um toque profético que encantou a muitos, deu sequência
viva ao projeto do Concílio Vaticano II (1962-1965), expresso na passagem da Constituição
que abordou a presença da igreja no mundo de hoje, Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que
sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos
discípulos de Cristo” (GS 1). Francisco assume sua nova responsabilidade com
essa disposição de acolhida e serviço, empenhado em buscar novos caminhos para
a instituição, que agora vem desafiada a “sair de si mesma e ir ao encontro”
dos outros, assumindo sua vocação evangélica pontuada pelo ágape (amor).
Em vários momentos de seu
pontificado, Francisco testemunhou esse exercício pastoral alternativo, já
vislumbrado em sua visita a Lampeduza, na Itália, ou na jornada brasileira, com
uma atuação corajosa e aberta. Uma sintonia fina une o papa Francisco com os
movimentos sociais e com a causa dos pobres e excluídos. O que se viu em Roma,
em outubro de 2014, no encontro histórico de Francisco com representantes de
quase cem entidades dos movimentos populares de todos os continentes foi algo inaugural.
Um momento histórico que jamais tinha ocorrido na vida da igreja católica nesta
proporção. Como sublinhou com acerto Ignacio Ramonet, foi uma “assembleia
mundial dos povos da Terra”; um momento solene de acolhida e hospitalidade
eclesial, quando então se pôde ouvir a voz e o clamor dos pobres em favor de um
mundo melhor.
O discurso do papa Francisco,
ocorrido em 28 de outubro de 2014, conseguiu recolher com fidelidade as
demandas suscitadas no evento, como os próprios participantes reconheceram na
declaração emitida ao final: Carta dos excluídos aos excluídos. Disseram: “A
claridade e contundência de suas palavras não admitiram duas interpretações e
reafirmam que a preocupação pelos pobres está no centro do Evangelho”. Foi
mesmo o que afirmou Francisco naquele momento, vislumbrando no acontecimento um
grande sinal: “Vocês vieram colocar na presença de Deus, da Igreja, dos povos,
uma realidade muitas vezes silenciada. Os pobres não só padecem a injustiça,
mas também lutam contra ela”. Trata-se de uma luta sagrada, em favor de
direitos sagrados, que realçam o amor pelos pobres, que está no cerne do
evangelho. Essa atenção para com os pobres guarda uma motivação teológica, como
lembrou o Documento de Puebla, em janeiro de 1979: “Criados à imagem e
semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem jaz obscurecida e também
escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os ama” (n. 1142).
Três grandes anseios estavam
presentes neste evento histórico: a luta em favor da terra, do teto e do
trabalho. Um anseio essencial por “direitos sagrados”, que tocam o cerne do
projeto evangélico. Em seu discurso, Francisco dá voz aos segmentos que
expressaram no evento seu descontentamento com as arbitrariedades e desmandos
que ocorrem nesses três campos. Questões relacionadas à apropriação de terras e
de águas, a violência dos agrotóxicos e a chaga do desmatamento. Sublinhou o
drama do desenraizamento de tantos irmãos camponeses, colocando em risco a
relação vital e espiritual com a terra; e também a dor dos que sofrem com a
falta de moradia: “Hoje, vivemos em imensas cidades que se mostram modernas,
orgulhosas e até vaidosas. Cidades que oferecem inúmeros prazeres e bem-estar
para uma minoria feliz... mas que se nega o teto a milhares de vizinhos e
irmãos nossos”. E para complicar o quadro, a grave questão da falta de
trabalho, o desemprego dos jovens, a exclusão dos direitos trabalhistas e a
irradiação da informalidade. Há também o fenômeno do trabalho escravo, da
exploração e opressão. E aqueles que não conseguem alguma “integração” na
lógica do mercado acabam sendo descartados, como tantos idosos que deixam de
ser “produtivos”. Firma-se então uma “cultura do descarte”, com a presença
dolorosa de excluídos “sobrantes”, ou então de desempregados, que na Europa
chegam à faixa de 40% entre os jovens.
Não faltou coragem ao papa Francisco
para identificar nessa situação a presença de um mecanismo nefasto, em cujo
centro do sistema econômico aparece o novo deus dinheiro, com exclusão violenta
do ser humano. É o que ele já tinha reconhecido na sua exortação apostólica de
novembro de 2013, Evangelii Gaudium
(A alegria do evangelho). Foram contundentes as críticas dos participantes do
evento, retomadas por Francisco, a respeito da grande ofensiva do capital
nacional e internacional, e seus efeitos nocivos sobre os recursos naturais em
todo o planeta. Falou-se igualmente das crises climática, energética e
alimentar.
Em momento forte de seu discurso,
Francisco sublinhou com ênfase a questão ecológica: “Não pode haver terra, não
pode haver teto, não pode haver trabalho se não temos paz e se destruímos o
planeta”. Convoca, assim, todos os povos da terra para lutarem em favor dessa
causa fundamental, de preservação desses dois dons preciosos: a paz e a
natureza. Rechaça, de um lado, os passos da guerra, que hoje vem sendo travada
em cotas; e de outro, as garras de um sistema econômico que sobrevive no
projeto nefasto de saquear a natureza a todo custo. E os povos, com prejuízo dos mais pobres e excluídos,
acabam sendo envolvidos nessa globalização da indiferença. Sua crítica é
contundente: “As mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, o desmatamento
já estão mostrando seus efeitos devastadores nos grande cataclismas que vemos,
e os que mais sofrem são vocês, os humildes, os que vivem perto das costas em
moradias precárias, ou que são tão vulneráveis economicamente que, diante de um
desastre natural, perdem tudo”.
Um dos grandes cientistas
brasileiros, Antonio Donato Nobre (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais –
IMPE), adverte para a violência ecológica que vem ocorrendo hoje na Amazônia
com o violento desmatamento. Só nos últimos quarenta anos, assinala, foram
destruídas 42 bilhões de árvores, três milhões por dia, o equivalente a três
Estados de São Paulo ou duas Alemanhas.
Esses são grandes desafios colocados
aos movimentos sociais, e que estiveram no centro das discussões do encontro de
Roma em outubro de 2014. Apesar do reconhecimento de certa fragilidade das
organizações populares, percebeu-se, com clareza, que o verdadeiro movimento
transformador parte sempre de baixo, e nem sempre pelos caminhos lógicos da
democracia formal. As crises, conflitos e perseguições por que passam os
movimentos sociais não se revertem necessariamente em desânimo ou capitulação.
Há um traço de resiliência nos movimentos de base que impressiona: o poder de
uma solidariedade e de uma “artesanalidade” nas formas de resistência que
surpreendem e encantam.
(Publicado
em Le Monde Diplomatique, 06/01/2015:
[1] Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – MG.
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