Dialogar para não
deixar morrer
Faustino Teixeira
1) Na era da informação e das liberdades individuais,
como é possível que grupos ainda adotem posturas de intolerância religiosa?
O
avanço da informação, da globalização e da pluralização não traduzem,
necessariamente, uma perspectiva de diálogo e abertura para o outro. Essa é uma
visão ingênua da realidade. Na verdade, como bem mostrou o sociólogo Peter
Berger, o pluralismo moderno desestabiliza as auto-evidências das ordens de
sentido que orientam a vida das pessoas e isso provoca insegurança e temor. Como
reação, os vários projetos restauradores em favor da “cura” do mundo, entre os
quais os fundamentalismos com suas diversas feições. O pluralismo provoca temor
nos grupos fundamentalistas por colocar alternativas diante dos olhos, por
favorecer caminhos distintos e críticos. Na base da intolerância está a
dificuldade radical em reconhecer o valor da diversidade das culturas, de entender
essa diversidade como um “fenômeno natural”. O que em geral ocorre é uma reação
negativa a essa diversidade, como se fosse algo escandaloso ou mesmo nefasto.
Por isso a tolerância é um fenômeno “custoso”, como mostrou Paul Ricoeur, pois
encontra grandes resistências numa atitude que é prévia: “o impulso de impor ao
outro nossas próprias convicções”. Há, portanto, algo de “potencialmente
intolerante” nas convicções. E junto com o toque das convicções a afirmação de
uma certa arrogância identitária. As pessoas ou grupos começam a se achar
“especiais em relação aos outros seres humanos” e com isso começam a excluir os
outros que não participam da mesma convicção. Tudo contribuindo para um
processo de monopolização do valor que acaba reforçando uma falsa “excepcionalidade”.
Os conflitos étnicos e religiosos que estamos assistindo em nosso tempo são
expressões vivas de um etnocentrismo problemático e perigoso.
2) Em sua opinião, o Brasil tem avançado neste
quesito? O que poderia ser feito?
Um
dos traços que sempre caracterizou o Brasil foi a sincretização e a
pluralização, sobretudo no campo religioso. Conhecida é aquela expressão do
jagunço Riobaldo Tartarana no Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “Muita
religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas.”
Esse foi sempre um traço peculiar do brasileiro, que sempre encontrou formas
criativas e plurais de ampliar o campo de sua proteção, com espíritos, anjos,
entidades, santos e energias. As experiências religiosas no Brasil são bem
marcadas por essa riqueza da complementaridade. Mesmo no âmbito do catolicismo
hegemônico, mecanismos peculiares de fagocitoso são observados, indicando o
traço plural com que este catolicismo se veste no território brasileiro. Essa perspectiva, infelizmente, vem sofrendo
mudanças nas últimas décadas, com o avanço preocupante de práticas excludentes
e mesmo violentas nesse campo das convicções religiosas. Crescem os
exclusivismos religiosos com práticas de intolerância que são ameaçadoras. Em
livro publicado em 2007, sobre o tema da intolerância religiosa (Edusp, 2007),
Vagner Gonçalves da Silva advertia no prefácio para essa ameaça no campo
religioso brasileiro: “Verifica-se no Brasil nas últimas duas décadas um
acirramento dos ataques das igrejas neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras,
processo extensivo aos países latino-americanos, como Argentina e Uruguai, para
onde tanto essas igrejas como os terreiros de umbanda e candomblé têm se
expandido”. Em pesquisa de mapeamento das casas de religiões de matrizes
africanas no Rio de Janeiro, realizada entre maio de 2009 e março de 2011,
constatou-se relatos de discriminação bem precisos. A pesquisa veio publicada em
livro em 2013 (PUC-Rio/Pallas), sob a direção de Denise da Fonseca e Sonia
Giacomini. Mais da metade das 840 casas religiosas que responderam à questão
específica sobre discriminação foram alvo de alguma ação qualificada como
agressão ou discriminação. Como focos privilegiados da agressão, as casas
religiosas (29%) ou os adeptos das religiões de matrizes africanas (60%).
Dentre os tipos de agressão, um destaque especial para os ataques verbais, mas
também as pichações nos muros e também agressões físicas. O que melhor se pode
fazer diante de situações que envolvem o crescimento de intolerância, xenofobia,
etnocentrismo, é buscar os caminhos serenos do diálogo. Nunca fraquejar na
defesa fundamental dos valores da liberdade de consciência, do respeito à
alteridade e da incomensurabilidade que traduz o mundo do outro. Situações como
as de 11 de setembro de 2011 ou também como a de 7 de janeiro de 2011 em Paris
podem acabar provocando o acirramento dos ódios e a aceleração de novos canais
de intolerância, nesse caso contra os muçulmanos, identificados como inimigos
da civilização. Concordo com a posição adotada pelo Secretário Geral da Onu,
Ban Ki-Moon, em depoimento publicado depois do atentado ao jornal satírico
“Charlie Hebdo”. Ele afirmou: “O horrível ataque
contra Charlie Hebdo foi feito para dividir. Não devemos cair nessa armadilha.
Temos que nos manter firmes, no mundo inteiro, na defesa da liberdade de
expressão e da tolerância, contra as forças da divisão e do ódio.” Essa é
também a posição que partilho. No caso brasileiro, com o crescimento de
práticas de intolerância e desrespeito à alteridade, acho que a melhor posição
a ser defendida é aquela da defesa fundamental dos direitos humanos, da
liberdade de consciência e da liberdade religiosa.
3) Logo no primeiro mandato, quando assumiu em 2011,
Dilma havia mandado retirar a bíblia e o crucifixo do gabinete. Foi a primeira
vez que um presidente tomou tal atitude. Isso representou alguma mudança no
sentido de um Estado Laico?
A
questão da laicidade do estado é uma questão séria, delicada, que merece ser
trabalhada com muito discernimento e critério. Talvez um dos aspectos mais
essenciais é o que envolve o respeito ao direito de consciência de todos. Defendo
hoje com clareza cada vez maior o pluralismo de princípio, de respeito profundo
ao “destino espiritual de cada ser humano”, bem como o rechaço à inaceitável ingerência
espiritual na vida das pessoas. Já o Concílio Vaticano II, no documento que
aborda a liberdade religiosa, dizia que cada pessoa tem o dever e o direito de
buscar a verdade religiosa em acordo profundo com sua consciência (DH 3). Não
pode haver em hipótese alguma coerção nesse campo das opções religiosas. Esse é
um debate muito rico que ocorre, por exemplo, na França. Há que superar a idéia
problemática de uma “laicidade de incompetência” (laicidade em combate), que
simplesmente exclui o religioso, em favor de uma “laicidade de inteligência”
(laicidade amistosa), que reconhece a importância da presença do religioso no
campo social e que encontra o caminho mais sereno e competente para lidar com
essa realidade, no diálogo com outras espiritualidades e forças sociais que não
se definem com o referencial religioso. O caminho a ser seguido é aquele que
envolve uma “virada cooperativa na relação entre as diferentes famílias de
pensamento”. Lidar com essa diversidade, no respeito aos vários encaminhamentos
– religiosos e seculares – é o o desafio que se apresenta hoje, também no
Brasil. Uma posição que acho plausível é a defendida por Danièle Hervieu-Léger,
em favor de uma “laicidade mediadora”. Ela busca abordar de forma pertinente as
relações entre uma República laica e as forças religiosas e espirituais. O
caminho a ser seguido não é o da exclusão da diferença, mas da “cooperação
razoável em matéria de produção das referências éticas, de preservação da
memória e da construção do vínculo social”. Uma sociedade marcada por
complexidade e em processo de permanente mudança exige o exercício de relações
dialogais com esse campo plural: tudo isso é louvável e espaço de aprendizado e
enriquecimento. O que deve ser sempre evitado é o caminho da intolerância e da
exclusão. O exercício de uma laicidade autêntica deve envolver com sabedoria o
traço de contribuição democrática oferecido pelas diferentes famílias
espirituais, que acontecem enriquecendo e não ofuscando a dinâmica da afirmação
cultural e humana.
4) As religiões de matriz africana ainda são os
"bodes expiatórios" neste universo de fundamentalismo. Por quê?
No
caso brasileiro, as religiões de matriz africana vem sofrendo perseguição desde
a segunda metade do século XIX, com a afirmação de um racismo científico
acentuado. Em seguida, com o final da escravidão, o assim chamado “baixo
espiritismo” foi alvo de forte repressão institucional, até cerca de 1940. Na
documentação existente, sobretudo nos registros da imprensa, da justiça ou da
polícia, assinala-se uma forte resistência contra as práticas religiosas dessas
tradições, identificadas como curandeirismo, magia negra ou prática ilegal da
medicina. Em tempos mais recentes, sobretudo após a irradiação pentecostal – em
meados da década de 1980 -, uma nova onda de resistência e repressão aos cultos
afro-brasileiros firma-se no país. E as críticas ganham respaldo nos programas
pentecostais divulgados na extensa rede de rádios e TVs, bem como nos projetos
legislativos defendidos pela bancada evangélica. Os resultados do último Censo
demográfico, de 2010, apontam um significativo crescimento pentecostal,
envolvendo cerca de 13,3% da população brasileira. Em termos absolutos, os
pentecostais quase triplicaram de tamanho entre 1991 a 2010, saltando para 25
milhões de fiéis. Só a Assembléia de Deus responde por 1.067 adesões diárias.
Enquanto isso, as religiões de matriz africana decaem a cada década, sobretudo
após 1991, mantendo-se hoje num reduzido patamar de 0,3% de declaração de
crença. Atualmente, segundo o último Censo, a soma dos declarantes da umbanda e
do candomblé não ultrapassam a cifra de 600 mil fiéis. Como se pode observar, a
tensão inter-religiosa envolvendo pentecostais e afro-brasileiros é bem
desigual. Como vem mostrando o pesquisador Ricardo Mariano, essa desigualdade
“constitui um dos maiores obstáculos dos cultos afro-brasileiros para se
defender dos ataques de seus rivais e reagir, eficazmente, à altura deles. O
imenso contraste entre os poderes religioso, demográfico, empresarial,
midiático e politico desses grupos religiosos impossibilita falar em
´igualitarismo`”. Somos hoje, infelizmente, testemunhas de um triste espetáculo
de intolerância contra as religiões de matriz africana: com os ataques rotineiros
contra os adeptos de tais tradições e seus espaços de culto. Pichações críticas
se espalham por todo canto, bem como a virulência verbal, colocando os fiéis e
mesmo as lideranças religiosas em posição defensiva dentro do campo religioso,
em razão do constante e pesado bombardeio recebido. Em recente artigo no jornal
O Globo (Olodum e Lalibela), Marco
Lucchesi falava do preço simbólico elevado da ausência dessas tradições nas
praias cariocas na passagem para 2015: “O quase eclipse das religiões africanas,
que coloriam nossas praias, no dia 31 de dezembro, com uma carga poética
inesquecível, para quem as alcançou. Todo um arquipélago de velas brilhantes,
que pontilhavam a areia de luz e sombra, com os perfumados barcos de Iemanjá,
boa parte dos quais azulada, e os tambores cadenciados, ao mesmo tempo suaves e
vigorosos, que se confundiam com as batidas do coração”.
5) E como dialogar com grupos que simplesmente recusam
sentar-se à mesa com quem pensa diferente?
Um
conhecido teólogo protestante, Jürgen Moltmann, reconhecia num de seus textos
sobre diálogo e missão sobre essa dificuldade de intercâmbio com quem não
consegue corresponder. No seu caso, falava de impasses no diálogo com
interlocutores muçulmanos: interlocutores que exigiam tolerância para com o isl ã, mas que ao mesmo tempo, na “casa
do islã” negavam esse direito a cristaos, judeus e hindus. Questão delicada,
não há dúvida. Um dos importantes buscadores cristãos do diálogo com o islã, o
prior trapista de Tibhirine – Christian de Chergé -, que morreu mártir desta
causa, respondeu a tal questão de forma primorosa. Dizia que a verdadeira
hospitalidade dialogal não pode ocorrer na dependêcia de reciprocidade ou
outros condicionantes. O que deve mover a abertura ao outro é o dom gratuito do
amor, daí a inutilidade de qualquer exigência de reciprocidade. Como explicar,
porém, essa tremenda dificuldade de lidar com o “outro” no universo religioso
brasileiro ? Essa é uma difícil e complexa questão que nos provoca nesse
momento atual, pontilhado pela sedução fundamentalista. As pessoas resistem a
essa “auto-exposição ao outro” em razão de tudo que isso significa em termos de
questionamento de certezas reificadas e abertura de possibilidades que se
revelam ameaçadoras para aqueles que se encontram bem instalados no reino da
identidade. O diálogo é provocador, como diz Marco Lucchesi, é uma “zona de
passagem, um espaço potencial, uma cartografia inacabada, a que aderem as
partes, ciosas de sua identidade , convidadas a pensarem sob uma nova luz”. O
diálogo rompe com os proselitismos e nos lan ça num
caminho novo, de atenção e acolhida. Somos assim tocados pelo olhar do outro,
que nos indaga e nos convida a “mover os lábios”. Talvez na raiz mais remota do
diálogo está o contato com alguém que vem animado pela mais profunda
incomensurabilidade, e a relação com esse universo não pode ocorrer de forma
profunda a não ser com a presença de um ethos fluido e poroso, delicado e
disponível. O teólogo indiano, Felix Wilfred, sinaliza que uma das dificuldades
maiores nesse campo da aceitação do outro é a pretensão de absolutez que invade
o campo identitário, impedindo a percepção do traço limitado e parcial que
marca qualquer experiência religiosa. A seu ver, “o absolutismo impede a
responsabilidade de ouvir o ´outro` em tudo aquilo que constitui sua
identidade”.
6) Por fim, como você vê o Brasil daqui 20 anos?
Como
inveterado otimista, acredito na possibilidade de um horizonte diferente para o
nosso país num futuro próximo. Todos os esforços deverão ser acionados para que
o mundo da diferença seja acolhido e reconhecido na sua dignidade: seja os
povos originários, indígenas, os povos de matriz afro-brasileira e os demais
povos de Deus com suas crenças e/ou espiritualidades. Bonito será o dia em que
pudermos reconhecer com alegria a beleza daquela simples baiana, igual a
milhares de outras, que se transforma em rainha na profundidade de se ser, adornada
com as cores de Xangô ou Iemanjá. Aquele dia que, como diz Pierre Fatumbi
Verger, soubermos acolher e celebrar esse “espetáculo único, o maior espetáculo
da Terra, que é a manifestação plena da verdade que habita o ser humano”. Nesse
dia, da festa da fraternidade e da reconciliação, teremos, enfim, a vitória da
hospitalidade, com a saudação dos tambores e a comunhão da África com o Brasil,
abolindo-se o oceano e apagando-se o tempo da escravidão (R.Bastide).
(Publicada
na página do CONIC, em 21/01/2015 –
http://www.conic.org.br/cms/noticias/1007-21-de-janeiro-n-dia-nacional-de-combate-a-intolerancia-religiosa)
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