Ciências da Religião e Teologia
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Palavras
chave: Teologia; Ciências da Religião; Ciências Sociais; Teologia Pública;
Igreja; Sociedade; Pluralismo; Religiões; História;Vida
Introdução
As novas e provocadoras reflexões em torno de uma teologia
pública reconfiguram o complexo debate envolvendo as ciências da religião e a
teologia. Resistências quanto à presença da teologia no âmbito da universidade,
entendida como disciplina acadêmica, começam a se arrefecer, tendo em vista os
novos delineamentos proporcionados pela reflexão teológica. Como indica Rudolf
von Sinner, “falar de teologia pública é algo que serve para uma reflexão
apurada sobre o papel da religião no mundo contemporâneo, na política, na
sociedade, na academia, como reflexão construtiva, crítica e autocrítica das
próprias igrejas, comunicando-se com outros saberes e com o mundo real”[1].
Trata-se de uma reflexão que vem se firmando nos vários continentes, e também
no Brasil, com a criação de novos espaços de presença crítica da teologia, com
“propriedade científica”, incluindo um diálogo inovador na universidade, com
traços novidadeiros de interdisciplinaridade.
Configurações e desafios das ciências da religião
O campo de estudo das religiões tem
sido objeto de reflexão de dois grupos de pesquisadores, os teólogos e os
cientistas sociais. Desde a segunda
metade do século XIX surge a Ciência da Religião, entendida como “matéria
acadêmica institucionalizada nas universidades europeias”, facultando um
aprofundamento do “saber sobre as religiões”[2].
Apesar dos esforços realizados no sentido de dar coerência e consistência aos
estudos realizados nesse novo campo disciplinar, verifica-se ainda ausência de
clareza epistemológica. Na visão de Pierre Gisel, quando se diz ciência da
religião há incertezas tanto quanto ao método, quanto ao objeto. As
dificuldades já se iniciam com o nome: há uma ciranda de nomes envolvendo esse
novo campo: ciência da religião, ciências da religião, ciências das religiões. Alguns
autores preferem trabalhar com o modelo alemão, da Religionwissenschaft, privilegiando a ciência da religião em
sentido unívoco, visando captar a especificidade da religião. Com base em
“método unificador”, busca-se “um referencial único que perpasse toda a área do
conhecimento chamada religião e que chame a si a contribuição das ciências que
parcialmente delas tratam e as organize num sistema”[3].
Outros falam em ciências da religião, entendida como “campo disciplinar”, com
estrutura mais dinâmica e abertura para uma diversidade metodológica[4]. Mas
mesmo nesse caso, onde se privilegia o plural, da ciência da religião como um
“feixe de disciplinas”, permanece a questão de seu eixo organizador.
Se há complicações evidentes no
âmbito metodológico, há outras no campo do objeto de uma ciência ou ciências da
religião, que são ainda mais “desagregadoras”. Na visão de Pierre Gisel,
“não somente as religiões
constituídas são historicamente construídas
(as ciências humanas e sociais contemporâneas não cessam de sublinhá-lo contra
toda perspectiva denunciada por elas como ´essencialista`), mas o que o próprio
termo ´religioso` pode designar é uma construção cultural: o que ele
circunscreve não se encontra em todas as culturas ou em todas as civilizações,
e quando ele designa um campo próprio – como na história ocidental permeada de
cristianismo -, este campo é, de fato, um ´cenário` , no qual realidades
antropológicas e sociais mais amplas vêm se apresentar”[5].
Assim
como as ciências humanas ganham um
perfil bem diversificado no período contemporâneo, pautado por rica mobilidade
e interrogações que são transversais, o fato religioso, também objeto de sua
abordagem, perde seu caráter de “campo definido”. As variações que o modelam
apontam, sim, para “construções contingentes de ordens do mundo, feitas de
relações efetivas, concretas e simbólicas – sociais, evidentemente”[6].
Exige-se também no campo das ciências da religião essa ampliação de horizontes,
capaz de igualmente envolver em seu estudo as espiritualidades contemporâneas
pós-cristãs, onde também se inserem as chamadas espiritualidades ateias ou as
“opções espirituais” que não se restringem ao âmbito do religioso[7].
Ciências
da religião e teologia
Uma tendência que se verificou ao
longo do processo de formação e afirmação da (s) ciência (s) da religião em
âmbito geral foi a busca de emancipação da teologia. No processo de configurar
o seu caráter “científico” ou “isento de motivos apologéticos”, esse novo campo
de estudos buscou uma perspectiva diferenciada. Assim ocorreu com a afirmação
da ciência da religião na Alemanha, com as ciências religiosas ou história das
religiões (França e Itália) e também com os assim chamados “estudos da religião”
nos departamentos universitários da Grã Bretanha e Estados Unidos. Na dinâmica
de libertação de uma “feição confessional” ou normativa, os departamentos
dedicados aos estudos religiosos reagem à presença da teologia. Ela
“não deveria estar presente num
contexto universitário em que todas as alegações ´normativas` em favor de uma
disciplina – especialmente uma que parece possuir uma norma ´exclusivista`- são
suspeitas. De fato, a preferência pelo título ´estudos religiosos` em vez de
´teologia` para os departamentos universitários com frequência serve para
indicar a distância que seus proponentes desejam tomar das reivindicações
tradicionalmente normativas da teologia”[8].
No
quadro das competências atribuídas às ciências da religião estavam o estudo da
religião não-partidário e empírico, a liberdade acadêmica com respeito a
compromissos religiosos definidos, a consciência da relatividade e a
resistência aos etnocentrismos. Os
“critérios especiais” que abrigavam a reflexão teológica atritavam com a
auto-compreensão que se firmava no novo campo de estudos. O lugar específico de
presença da teologia deveria ser, na ocular desses novos cientistas, os
seminários e igrejas. Não haveria lugar para ela na “universidade secular de
uma cultura pluralista”. Foi uma perspectiva que veio se firmando em países
como a Suécia, Alemanha e França, mas também nos Estados Unidos, com
incidências reflexivas no Brasil.
Em que medida a teologia, enquanto
“organização sistemática da inteligência da fé”[9],
com sua carga de normatividade, poderia ter um lugar na academia ? Essa era a
grande questão que se colocava, e que ainda se coloca em determinados
contextos. Essa percepção restrita e convencional da teologia acabou unindo
acadêmicos e líderes de igrejas na defesa do entrincheiramento da teologia .
Trata-se, porém, como argumentam importantes teólogos, entre os quais Wolfhart
Pannenberg, de um “mal entendido” em torno do preciso lugar da teologia e de
sua função que é também, fundamentalmente, pública.
Há hoje um grupo substantivo de
teólogos que buscam reconstruir a teologia “seguindo os parâmetros das demais
ciências modernas na moderna universidade europeia”[10]. Ao
lado de Pannemberg, outros teólogos como David Tracy, J.B.Metz, Hans Küng,
Gordon Kaufman e Anders Nygren “acreditam que a teologia claramente pertence à
universidade moderna como uma disciplina acadêmica”. Há em curso todo um
engajamento em favor da “construção de propostas em favor do caráter totalmente
público, aqui integralmente acadêmico, da teologia no contexto da universidade
moderna e seu debate interno sobre o caráter de uma disciplina acadêmica”[11].
Uma
difícil e desafiante relação
Não há como negar a presença de uma
tensão entre ciências da religião e teologia. Trata-se de uma resistência de
mão dupla. Há da parte de cientistas da religião uma desconfiança permanente
com respeito à teologia, sobretudo da perspectiva vista como apologética,
normativa e missionária. Teólogos também reagem às ciências da religião por
motivos diferenciados. Ressalta-se, em geral, a dificuldade desta ciências captarem
a identidade e verdade que animam a religião[12].
Essa situação conflitiva e de tensão
“não é a mesma no mundo inteiro. Ela é nítida na Europa: não somente na França
laica (...), mas também no Reino Unido, nos Países Baixos, na Escandinávia e,
cada vez mais, nos países de cultura germânica. A situação extraeuropéia é
outra, e, além disso, diferenciada quando pensamos na América do Norte, na
América Latina, na Ásia ou na África”[13].
Os posicionamentos de teóricos são diferenciados. Tomando o exemplo brasileiro,
há autores das ciências da religião que se posicionam de forma mais crítica à
presença da teologia no campo das ciências da religião[14] e
outros que admitem sem problemas a sua presença[15],
tendo em vista a formulação inclusiva das ciências da religião como campo
interdisciplinar amplo. O que ocorre também em muitos casos é a presença de
“pactos de não-agressão” visando a viabilidade do exercício acadêmico.
Com base em sua experiência
universitária em Lousanne (Suiça), cuja Faculdade mudou de estatuto – de
Teologia para Ciências das Religiões -, Pierre Gisel indica que esta oposição
entre teologia e ciências das religiões[16]
deve não só ser interpretada, como também “descentrada”. Destaca a importância
indispensável, numa época “pós-metafísica” do incentivo à teologia fundamental,
de uma interface e interação com a história e as ciências das religiões.
Mudanças que devem ocorrer também no campo das ciências das religiões,
sobretudo de ampliação reflexiva e de integração de novas dimensões, evitando
uma concentração exclusiva em “conhecimentos descritivos isolados”. Torna-se
hoje meio obsoleto manter distinções rígidas de campos disciplinares. Há que
incentivar “interrogações transversais” e “reconfigurações dos campos”,
rompendo os ensimesmamentos indesejados tanto no âmbito da teologia, com a
fixação naquilo que é o seu “bem próprio”, como das ciências das religiões,
convocadas a superar suas desconfianças ou caricaturas pré-estabelecidas, e
disponibilizar-se a interagir com a diferença[17]. Em
rico editorial da revista dos jesuítas brasileiros sobre teologia e religião, o
desafio da superação dessa oposição veio reiterado: “Ultrapassar a oposição
entre ciências das religiões e teologia supõe um deslocamento para além da
comparação de asserções diferentes, da declaração ou não de adesão ou de
crença, da divisão entre neutralidade e engajamento, de declaração de
convicção”[18].
Por seu lado, a teologia vem desafiada a responder de forma mais convincente às
“questões humanas mais amplas”, em viva interface com as ciências do social, e
em particular com a história e as ciências das religiões. Por outro, as
ciências das religiões são também convocadas a uma ampliação de horizontes:
“não basta mostrar a diversidade ou instruir uma crítica do religioso herdado.
Deve-se também pensar naquilo que se vê. O fato de uma situação ser tida como
´construída` não significa que ela não ´exista`, e o fato de ela ser
reconhecida como contingente (´arbitrária`) não quer dizer que ela seja sem
significação”[19].
O
espaço público da teologia
Um dos imprescindíveis desafios que
se colocam hoje para a teologia é sua presença pública. Passou o momento em que
a teologia concentrava-se no espaço “meramente eclesial”. Vive-se hoje novos
tempos dialogais, onde o mister teológico, como tão bem lembrou J.B.Metz,
necessita de Entprivatisierung, ou
seja, “sair do âmbito privado intraeclesial (ou meramente magisterial) para ir
ao encontro do mundo”[20].
E essa saída pressupõe toda uma laboriosa reflexão sobre a presença do Mistério
maior no mundo e a dimensão transcendente da história. Esse “diálogo teológico
com o mundo” apresenta-se hoje como um dado irrevogável.
Em clássica obra sobre a metodologia
teológica da teologia da libertação, Clodovis Boff enfatizou que a teologia é
fundamentalmente “teologia do não teológico”. Em proposta de ampliar o campo
teórico da teologia, esse autor problematiza a ideia de uma teologia concebida
de forma estática, entendida como um depósito ou mera súmula de conhecimento. A
teologia é antes de tudo, processo dinâmico, em permanente construção, onde a
operação fundamental é a de transformar o não teológico em teológico, em razão
de seu caráter teologal. Com base em Tomás de Aquino, Clodovis sinaliza que
“não existe, em princípio, objeto ou acontecimento algum que não possa ser
teologizado. Tudo é teologizável”[21].
Não há dúvida sobre os principia fidei que conformam a
pertinência teológica, a presença da ocular da fé, que faculta o específico
modo de trabalhar teológico. Mas quando se estabelece uma separação rígida
entre o sub specie temporis, da reflexão das ciências da
religião, e o sub specie aeternitatis,
da reflexão teológica, corre-se o risco de desconhecer o impacto do mundo e da
história sobre a teologia. Há momentos ou fases distintas que envolvem o método
teológico. Se há, por um lado, a preocupação de um retorno e recuperação do
passado, que é a teologia in oratione
obliqua; há, por outro, a permanente atenção ao presente, quando a
teologia, iluminada pelo passado, enfrenta as questões fundamentais do
presente. É a teologia in oratione recta.
Mas mesmo esse retorno ao passado, esse olhar “à luz da fé” é também trabalhado
por uma operação hermenêutica[22].
Pierre Gisel lança uma importante
advertência contra certo olhar ingênuo sobre a teologia, entendida como “intellectus fidei”. Ele assinala que aí
pode se esconder uma armadilha, caso se intenda com isso “o simples alargamento
da inteligibilidade interna de uma determinada crença”, deslocada da
interrogação substantiva sobre o que aí há de humano, e também sobre a verdade
humana que envolve tal crença[23].
Em diversa perspectiva de entendimento, Gisel assinala que a teologia cristã,
ao longo de sua história, não foi sobretudo determinada pelos conteúdos da
igreja ou de sua mensagem, mas pelos desafios do mundo e do humano, na dinâmica
de sua relação com o divino. A teologia sempre esteve pontuada pelos “dados
antropológicos e socioculturais” mais amplos. Foi na época moderna que ocorreu
um certo “desvio” na compreensão teológica, que passa a assumir uma relação
mais íntima com a igreja particular, no sentido de sua convalidação e
legitimação[24].
Em ritmo de diferenciação com
respeito às teologias confessionais do início da época moderna, a teologia contemporânea busca dar ênfase à
problemática “globalmente humana”. Daí a atualidade de uma teologia pública e
seus temas correlatos: teologia política, teologia da libertação, teologia
feminista, teologia voltada para a ecologia, o bem-estar e a justiça social e
também a teologia do pluralismo religioso. O teólogo Jürgen Moltmann lança uma
interrogação pertinente em favor de uma teologia acadêmica, que seja aberta às
indagações humanas fundamentais, sem destinar-se exclusivamente aos crentes.
Sinaliza que
“Deus não é Deus apenas dos que
crêem, mas o criador do céu e da terra, não sendo, portanto, particular como a
fé humana nele, e sim universal como o sol que nasce sobre maus e bons, e como
a chuva que cai sobre justos e injustos e proporciona vida a todas as criaturas
(Mt 5,45). Uma teologia apenas para pessoas crentes constituiria a ideologia
religiosa de uma comunidade religiosa cristã ou uma doutrina secreta esotérica
para iniciados”[25].
Trata-se,
segundo Moltmann, de uma “theologia publica por causa do Reino”, de uma
“teologia da vida” animada por uma espiritualidade nova, em profunda sintonia
com o organismo Terra; uma teologia pontuada por “maravilhosa abertura ao novo
mundo penetrado pelo Espírito”, onde se redescobre a “imanência de Deus
escondida na natureza e sua presença em todas as criaturas”[26].
Essa perspectiva aberta por Jürgen
Moltmann torna-se altamente inspiradora para situar o lugar e a função da
teologia hoje no espaço público da universidade. O objeto precípuo da teologia
é “o mundo sub ratione Dei”[27].
O acento recai no mundo do humano, este é o lugar de sua atuação e presença, o
seu ponto de partida e chegada, o seu horizonte fundamental. Este mundo real é,
para utilizar uma expressão cara a Paul Tillich, o objeto de sua preocupação
última e incondicional.
O
lugar da teologia nas ciências da religião
Em clássica obra sobre a relação da
filosofia com a teologia, Wolfhart Pannenberg sublinha que a teologia “só pode
falar de modo competente de Deus e de sua revelação quando ela, ao fazer isso,
tratar do Criador do mundo e do ser humano e, portanto, relacionar o seu falar
de Deus com uma compreensão total da realidade do ser humano e do mundo”[28].
Para o exercício dessa função, ela necessita da interlocução e do aporte das
diversas ciências que tratam do humano, incluindo aí as ciências da religião.
Esse “empreendimento cooperativo” que envolve a teologia foi bem acentuada por
Bernard Lonergan em seu importante livro sobre metodologia teológica. Quando
tratou das especializações funcionais da teologia, ele abordou o tema da
comunicação, que envolve as relações externas da teologia. Inserem-se nesse
campo as relações interdisciplinares e as transposições e adaptações que se
revelam fundamentais para o exercício teológico no tempo presente[29]. Nessa
dinâmica cooperativa, situa-se o essencial lugar da relação da teologia com os
estudos conduzidos pelos scholars e
cientistas.
Seria, de fato, um grande retrocesso
– como lembra Pannenberg – a saída da teologia das universidades. Não há porque
restringir o seu espaço de atuação às instituições de ensino religiosas. Não se
desconsidera os outros espaços de conduta da teologia, como a igreja e a
sociedade mais ampla. Aí também a teologia tem uma palavra importante a dizer.
Mas há um lugar específico de sua atuação, que se destina ao mundo da academia.
Nesse sentido, a teologia vem entendida como uma disciplina acadêmica, marcada
por um traço científico singular.[30]
Há resistências tanto no âmbito da
academia como das igrejas no reconhecimento da legitimidade acadêmica da
teologia, e isto em razão dos “critérios especiais” que presidem a metodologia
teológica e as dificuldades de observância de padrões e métodos que regulam o
estudo acadêmico em geral. Numa “curiosa aliança”, certos líderes de igrejas e
críticos seculares da teologia partilham de uma convencional compreensão que
restringe à teologia um papel “estritamente confessionalista”. As lideranças
eclesiais unem-se a alguns acadêmicos “para insistir, certamente tendo as suas
próprias razões distintas, que a teologia pertence unicamente a instituições
ligadas à igreja, e não à universidade secular”[31].
Em perspectiva diversa, vários
teólogos ousam defender um papel diferente para a teologia, acreditando e
defendendo que ela pertence à universidade como disciplina acadêmica. Em defesa
do caráter público da teologia erguem-se teólogos de diferentes confissões, num
trabalho exitoso em favor da produção de um discurso teológico compatível com
os padrões da academia contemporânea. Eles buscam “demonstrar, mediante
critérios acadêmicos públicos e reflexão disciplinada (isto é, disciplinar), a
plausibilidade de suas pretensões a sentido e verdade e a relação entre essas
alegações e a tradição cristã que estão tentando interpretar”[32].
Se em linha de princípio, as
teologias fundamentais estão mais sintonizadas com a perspectiva de uma
teologia pública e com o público representado pela academia, as teologias
sistemáticas apresentam também um caráter público em razão de sua perspectiva
hermenêutica. Como assinala Tracy,
“na medida em que os teólogos
hermenêuticos articulam uma revelação da verdade da realidade de Deus embutida
na tradição para a situação contemporânea – ou seja, na medida em que eles
fornecem interpretações novas e boas dessa realidade para a presente situação
-, eles igualmente fornecem verdade teológica e igualmente empregam um modelo
de correlações mutuamente críticas entre interpretações da tradição para a
situação”[33].
Na
verdade, as teologias fundamental, sistemática e prática implicam-se
mutuamente. Não sobrevivem exclusivamente em seus próprios dominíos. A teologia
fundamental não prescinde da teologia sistemática, e esta necessita da teologia
fundamental para que seu empenho de interpretação leve também em conta a
situação contemporânea. E as duas recorrem à esfera da teologia prática para fazer
valer as raízes de suas teorias e métodos numa práxis que é mais profunda e que
traduz a razão de sua inserção no tempo[34].
No âmbito das ciências da religião,
há garantido espaço para a teologia pública e os temas que lhe são conaturais
como a teologia do pluralismo religioso, da teologia política e da libertação,
e das outras abordagens teológicas que envolvem a temática do gênero, da
ecologia e do bem bem-estar eco-humano.
Conclusão
A teologia tem um lugar garantido
nas ciências da religião, sobretudo quando entendida em sua perspectiva pública.
Sem desconsiderar os traços que garantem sua pertinência identitária, a
teologia pode e deve ocupar o seu lugar de disciplina acadêmica na
universidade. Para tanto, ela necessita,
porém, de “liberdade institucional frente à igreja, assim como de um lugar no
espaço público das ciências”[35].
A teologia vem convocada a romper com o seu entrincheiramente na comunidade de
fé e ser provocada pelos desafios do tempo atual, interessando-se e refletindo
com acuidade os grandes temas que se relacionam com o bem comum da sociedade e
da comunidade humana. A teologia precisa de liberdade acadêmica para o seu
criativo exercício hermenêutico. Precisa de abertura e despojamento para se
deixar interrogar pelos desafios da ciência. E ainda reforçar o seu espírito
crítico, capaz de reagir a determinados e problemáticos paradigmas em curso na
modernidade pós-tradicional[36].
A teologia vive um momento precioso,
de luta em favor de uma atuação crítica e livre, da busca de inserção distinta
no âmbito acadêmico. A presença e irradiação dos programas de ciências da
religião tem favorecido esse exercício novo da teologia, provocada a dizer sua palavra com o provocante sabor dos
sinais dos tempos. Em corajoso editorial publicado na revista internacional de
teologia, Concilium, os teólogos
Suzan Ross e Feliz Wilfred relatam as recentes mudanças no campo da teologia
católica, e que expressam novos horizontes:
“Apenas 50 anos atrás, a
teologia católica era uma disciplina extremamente fechada, ensinada por
sacerdotes-professores em seminários controlados seja por ordens religiosas
masculinas ou por dioceses. Os teólogos eram formados em universidades
pontifícias e faziam parte das mesmas comunidades clericais como seus bispos.
Mas o Vaticano II abriu para os leigos o acesso à teologia. As universidades
começaram a ensinar teologia como uma disciplina acadêmica, os teólogos não
mais buscaram imprimaturs para suas
obras e um laicato cada vez mais bem formado procurou investigar as ideias
teológicas que uma vez estavam muito fora de seu alcance”[37].
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[1]
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[2] F.
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p. 15.
[3]
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[4]
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[5]
P.Gisel. Teologia e ciências das religiões: por uma oposição em perspectiva. Perspectiva Teológica, v. 43, n. 120,
2011, p. 169. Ver também Id. Che cosa è
una religione? Brescia: Queriniana, 2011, pp. 8-13 e 54.
[6]
Ibidem, p. 170.
[7]
Ver a respeito: A.Comte-Sponville. O
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[8]
D.Tracy. A imaginação analógica. São
Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 45.
[9]
C.Boff. Teologia e prática.
Petrópolis: Vozes, 1978, p. 384.
[10]
D.Tracy. A imaginação analógica, p.
45.
[11]
Ibidem, pp. 45-46.
[12]
M.F.Miranda. Inculturação da fé e sincretismo religioso. REB, v. 60, n. 38, 2000, p. 282.
[13]
P.Gisel. Teologia e ciências das religiões, p. 166.
[14] É
o caso de Frank Usarski, da PUC-SP. Uma posição que é semelhante à defendida
por Michael Pye, da Universidade de Marburgo: Estudos da religião na Europa:
estruturas e projetos. Numen, v. 4,
n. 1, 2001, pp. 25-26.
[15]
M.Camurça. Ciências sociais e ciências da
religião, pp. 62-63.
[16] É
a terminologia usada por Gisel.
[17]
P.Gisel. Teologia e ciências das religiões, pp. 176-178.
[18]
Editorial - Teologia e religião. Perspectiva
Teológica, v. 43, n. 120, 2011, p. 161.
[19]
Ibidem,p. 161.
[20]
Editorial – Teologia pública. Perspectiva
Teológica, v. 44, n. 122, 2012, p. 8.
[21]
C.Boff. Teologia e prática.
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[22]
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