Bento XVI. Alcances e limites de seu pontificado
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
1. De Ratzinger a Bento XVI
O pontificado de Bento XVI foi
relativamente curto, de abril de 2005 a fevereiro de 2013, um pouco menos de
oito anos. O gesto de renúncia ao papado, concretizado em 28 de fevereiro de
2013, foi o ato mais simbólico de sua presença como bispo de Roma. É uma
novidade em tempos modernos, já que a última renúncia papal tinha ocorrido em 1415, com
Gregório XII. É sobretudo por essa
decisão de coragem que será lembrado pela posteridade, num gesto que coloca em
discussão a própria dinâmica da estrutura central do governo da igreja, aproximando
mais a posição do papa dos demais bispos.
Não há como desligar a figura e
atuação de Bento XVI do cardeal Joseph Ratzinger, que atuou como Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé por mais de 23 anos, de novembro de 1981 a
abril de 2005. O cardeal Ratzinger vinha de uma brilhante atuação teológica,
como docente de teologia dogmática e fundamental na Escola Superior de
Filosofia e Teologia em Freising e nas universidades de Bonn, Münster
, Tübingen
e Regensburg. Atuou também como perito do Concílio Vaticano II, assessorando o
cardeal Joseph Frings, arcebispo de Köln (Colônia).
Em março de 1977 vem nomeado por
Paulo VI Arcebispo de München e Freising, e escolhe como lema episcopal: “colaborador
da verdade”. Em junho do mesmo ano, torna-se cardeal, no consistório convocado
por papa Montini. Em novembro de 1981 vem nomeado por João Paulo II como
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF).
Uma correta avaliação do pontificado
de Bento XVI pressupõe a dinâmica de sua atuação desde esse período de presença
na CDF, o que soma pouco mais de três décadas. Uma importante chave de leitura
para compreender sua visão teológica e estratégia pastoral é o livro-entrevista
Informe sobre a fé (Rapporto sulla fede), publicado em 1985.
Os fundamentais traços da perspectiva restauradora levada a efeito por Bento
XVI em seu pontificado estão anunciadas nessa obra. E a restauração vem
entendida por ele como “a busca de um novo equilíbrio” , uma nova disciplina
para a igreja católica, depois dos “exageros” do pós-concílio, em particular a
“abertura indiscriminada ao mundo” e as “interpretações muito positivas de um
mundo agnóstico e ateu”. Reagindo contra as posições que falam de um “antes” e
um “depois” na história da igreja, defende a perspectiva que vê no Vaticano II
não uma ruptura com o passado mas uma “continuidade do catolicismo”. Em sua ocular,
o concílio não buscava mudar a fé, mas “reapresentá-la de modo eficaz”. Essa
defesa da tradição vai ser um mote permanente do posicionamento do cardeal
Ratzinger em sua atuação na CDF.
Em seu Informe sobre a fé, o cardeal Ratzinger busca pontuar as razões que
motivaram a crise da igreja no pós-concílio. Chega mesmo a falar em “processo
progressivo de decadência” eclesial, que a seu ver provocaram equívocos em
vários campos ou áreas. No âmbito da concepção eclesial, com a forma
problemática de entendimento da igreja como povo de Deus, em sentido
democratizante. Na esfera da colegialidade, com o reforço teológico indevido
das conferências episcopais. No campo da teologia, com a ênfase numa
perspectiva individualista e autonomista. Sinaliza, em particular, o cenário da
teologia moral, identificada como o ponto nodal da tensão entre o magistério e
os teólogos. Outros problemas são visualizados em âmbito da catequese, da
liturgia e do entendimento da relação do cristianismo com as outras religiões.
Sob a batuta do cardeal Ratzinger, a
CDF agiu rigorosamente em favor desse projeto restaurador. Na busca de um novo
enquadramento teológico, a CDF agiu criticamente contra teólogos que atuavam em
áreas consideradas problemáticas, como a teologia moral, a teologia da libertação
e a teologia das religiões. Muitos teólogos foram advertidos ou suas obras
notificadas nesse período. A título de exemplificação: Leonardo Boff (1985),
Charles Curran (1986), Edward Schillebeeckx (1986), Matthew Fox (1988), André
Guindon (1992), Tissa Balasuriya (1997),
Antonii de Mello (1998), Jeanine Gramick e Robert Nugent (1999), Reinhard
Messner (2000), Jacques Dupuis (2001), Marciano Vidal (2001) e Roger Haight
(2004). Duas instruções são também publicadas em torno da teologia da
libertação: Instruções acerca de alguns aspectos da “Teologia da libertação” e
Instrução acerca da liberdade cristã e a libertação (1984 e 1986). Uma ação
disciplinar envolveu igualmente o bispo Pedro Casaldáliga, da Prelazia de São
Felix do Araguaia, que se recusou a assinar um documento que limitava sua ação
pastoral (1988).
Para fortalecer a unidade doutrinal
da fé católica, nasceu também a proposta de elaboração de um Catecismo da igreja católica. O projeto
surge em 1985 durante o sínodo extraordinário de bispos, comemorativo dos vinte
anos do Concílio Vaticano II. Ratzinger
atuou na presidência da comissão encarregada de preparar o catecismo. O
trabalho, iniciado em 1986, durou seis anos, sendo concluído no trigésimo
aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, em outubro de 1992. O
catecismo tinha como objetivo “apresentar uma exposição orgânica e sintética
dos conteúdos essenciais e fundamentais da doutrina católica” sobre a fé e a
moral. Como seus destinatários, os responsáveis pela catequese.
O documento talvez mais polêmico
assinado pelo cardeal Ratzinger durante a sua presença na CDF foi a Declaração Dominus Iesus, publicada em agosto de
2000. Como tema, a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e a
Igreja. As repercussões do documento foram muito negativas, sobretudo nas
instâncias que trabalham o ecumenismo e o diálogo interreligioso. Significava,
na verdade, um entrincheiramento identitário e um enquadramento do pluralismo
religioso, destituído de sua valorização de princípio. As outras tradições
religiosas são relegadas à condição de menoridade, e seus membros confinados a uma “situação gravemente
deficitária” com respeito aos adeptos da igreja católica, detentora da
plenitude dos meios de salvação.
2.
Bento XVI e a defesa da tradição
É nesse anteparo restaurador que se
situa a eleição de Joseph Ratzinger como papa Bento XVI, em abril de 2005. Não foi
algo assim inesperado, mas o remate de um projeto de afirmação identitária em
curso na igreja católica desde o final do pontificado de Paulo VI e início do
pontificado de João Paulo II. O renomado vaticanista, Giancarlo Zizola, em sua
obra Benedetto XVI. Un successore al
crocevia (2005), reconhece como plausível a interpretação de que a escolha
de Ratzinger para o papado “vinha preconizada para coroar o grande ciclo da
restauração iniciada sob Wojtyla”. O tom
da perspectiva a ser instaurada – de continuidade -, já se delineia na homilia
da Missa pro elegendo pontifice,
proferida por Ratzinger enquanto decano do colégio cardinalício. Ele fala da
“ditadura do relativismo” que abala, como ondas agitadas, o pensamento de
muitos cristãos. E lança o desafio de uma “fé clara” e do caminho de um
humanismo verdadeiro, que não pode acontecer fora da perspectiva crística.
Como acentuou o vaticanista John L.
Allen Jr, Bento XVI firmou como prioridade de seu pontificado a retomada dos
“elementos fundamentais do anúncio evangélico e da tradição cristã”, visando
reconduzir os católicos aos fundamentos essenciais de sua fé (Allen Jr, 2008,
p. 5). Como já havia anunciado antes, no seu Informe sobre a fé, o papa buscava acentuar o sentido da “diferença
católica”, ou seja, uma política da identidade e do anúncio. Ainda no primeiro
ano de seu pontificado, em discurso proferido aos cardeais, arcebispos e
prelados da cúria romana, em dezembro de 2005, Bento XVI retoma o eixo
recorrente da autêntica recepção do Concílio Vaticano II. Sinaliza que essa recepção ocorreu de forma
“bastante difícil” em grandes partes da igreja. Fala então numa “correta
hermenêutica” conciliar, que implicaria renovação, mas em linha de continuidade
e não de distanciamento ou ruptura com a tradição. Reitera que o
“sujeito-Igreja” concedido pelo Senhor, está em crescimento no tempo, mas
“permanecendo porém sempre o mesmo”.
Em linha de continuidade com sua
atuação na CDF, o papa Ratzinger mantém-se um firme defensor da “doutrina pura
e íntegra, sem atenuações nem desvios” e confirma seu projeto no pontificado
como uma obra de continuidade na defesa desse patrimônio doutrinal. A busca
incessante da verdade, lema de seu episcopado, continua a valer com cada vez
mais intensidade. Na carta apostólica, Porta
fidei, sobre o ano da fé, publicada em outubro de 2011, Bento XVI convoca
os católicos ao aprofundamento de sua fé cristã, tendo como importante subsídio
o Catecismo da igreja católica.
Sublinha que este catecismo “constitui um dos frutos mais importantes do
Concílio Vaticano II”.
O controle sobre o mundo teológico
continua ativo em seu pontificado. Novos teólogos serão objeto de investigação
e notificação por parte da CDF, entre os quais Jon Sobrino (2006) e Margaret
Farley (2012). E como novidade, a avaliação crítica-doutrinal, envolvendo uma
conferência nacional de religiosas: Leadership
Conference of Women Religious (LCWR), publicada pela CDF em abril de 2002.
Abre-se um novo precedente, de crítica que se volta não só a teólogos, mas a
uma instituição, no caso uma instituição que congrega 55.000 religiosas
norte-americanas.
Não há como negar a força
argumentativa e a robusta reflexão teológica que anima as três grande
encíclicas do papa Bento XVI: Deus
caritas est – sobre Deus como amor (2005), Spe salvi – sobre a esperança cristã (2007) e Caritas in veritate – sobre o desenvolvimento humano integral na
caridade e na verdade (2009). Como mostrou com acerto o filósofo jesuíta, João
A. MacDowell, em reflexão na revista Cult de março de 2013, “Bento XVI não é um
homem de ação, um revolucionário, um reformador. É antes de tudo um pensador,
um teólogo que filosofa à luz da revelação divina”. Singulares foram também
alguns diálogos que ele encetou com a filosofia contemporânea, sublinhando a
essencial relação entre fé e razão. Pode-se mencionar também sua trilogia sobre
Jesus, intencionada a “reanimar a
identidade cristã” num tempo marcado pelos ventos secularizantes e pela perda
da plausibilidade e referência de Deus na vida pública.
3. Os impasses na condução estratégica
Apesar de sua sólida reflexão
teológica, o papa Bento XVI não se mostrou um bom administrador em sua atuação
como papa. Alguns vaticanistas experientes, como Marco Politi, sublinham as
grandes dificuldades e incertezas do papa na condução estratégica de seu
pontificado. Joseph Ratzinger revelou-se um papa competente no âmbito da
teologia, uma personalidade de relevo espiritual e intelectual, mas um líder
frágil no campo do geopolítica. Um papa rigoroso em suas análises,
intransigente na defesa da fé e da doutrina, mas hesitante na lida eclesial
interna e no campo dialogal mais amplo.
Equívocos no campo da condução
estratégica do pontificado foram inúmeros. É o que mostra Marco Politi em sua
obra: Joseph Ratzinger: crisi di un papato (2011). Segundo este vaticanista, é
como se uma “mão invisível” atuasse permanentemente, levando ciclicamente a
novas e vivas polêmicas. Revelou-se quase uma praxe do pontificado: depois de
passos em falso, a busca de intervenções equilibradoras. Em muitos casos,
impasses substantivos são interpretados como “erros de comunicação”. Isso
ocorreu, por exemplo, no polêmico discurso na Universidade de Regensburg, na
Alemanha, em setembro de 2006. A intenção do papa era evidenciar a importância
da relação entre fé e razão. Daí o tema da exposição: “Fé, razão e
universidade”. Ele defende no discurso a importância de uma fé acompanhada de
racionalidade para evitar o risco do fundamentalismo religioso. Se, de um lado,
a fé é um elemento importante para a razão, como prevenção do ceticismo; a
razão, por outro, deve igualmente acompanhar a fé, como barreira protetora
contra o extremismo e a violência fundamentalista. O trecho que abriu espaço
para a polêmica retrata o diálogo entre um imperador bizantino do século XIV e
um estudioso persa, e a crítica tecida pelo imperador a Mohammad e o Islã. O
trecho citado provoca uma tensão inusitada, derrubando em pouco tempo todo o
trabalho dialogal com o islã realizado nos vinte anos de pontificado de João
Paulo II. O curioso nisso tudo é que alguns vaticanista, entre os quais Politi,
chegaram a alertar o responsável pela sala de imprensa, padre Lombardi, sobre o
risco da citação presente no texto, e de suas possíveis repercussões negativas,
sem conseguirem resultado positivo. A operação desastrosa do discurso só começa
a ser reparada com a intervenção do secretário de Estado, cardeal Bertoni, dois
dias depois do episódio. E também com a retificação do próprio papa em
audiência geral na praça de São Pedro, com mais de uma semana de atraso. Um
tema tão fundamental como o diálogo com o islã, não tinha a devida cobertura
estratégica. Vale lembrar que um pouco antes da visita a Regensburg, o papa
Ratzinger, num ato inesperado, tinha exilado para o Egito o então presidente do
Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, Michael Fitzgerald – grande
conhecedor do Islã – e subordinado o mencionado dicastério ao Conselho para a
Cultura. No ano seguinte, em junho de 2007, reparando o passo em falso, o
Conselho para o Diálogo ganha novamente autonomia, com a presidência do cardeal
Jean-Louis Tauran, excelente diplomático e versado nas questões envolvendo o
mundo árabe.
Outro momento delicado do pontificado
de Bento XVI ocorreu com a retomada da missa tridentina, através de um motu próprio, Summorum pontificum (julho de 2007), visando uma reaproximação com
a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, o movimento cismático anticonciliar dos
seguidores de Marcel Lefebvre. Para o observador atento, há uma nítida relação
entre o motu próprio e o discurso de Bento XVI proferido em dezembro de 2005
para a cúria romana, onde trata das hermenêuticas em tensão. A retomada da
missa tridentina traduz em verdade a defesa de uma “hermenêutica de
continuidade”, defendida por Bento XVI. Essa retomada litúrgica tradicional
significou, na prática, um duro golpe na reforma litúrgica do Vaticano II, bem
como uma carta branca concedida aos ultra-tradicionalistas lefebvrianos, condenados
em 1988. Junto com o motu proprio, a
retomada da oração da sexta feira santa, que originalmente falava nos “pérfidos
judeus” (perfidi giudei). O papa João
XXIII tinha abolido essa menção dos missais e Paulo VI tinha proposto uma
fórmula mais amena para essa oração aos judeus. Não se falava em conversão dos
judeus, mas na importância deles progredirem no amor a Deus e na fidelidade à
sua aliança. Bento XVI prefere adotar uma fórmula intermediária, que não
salvaguarda a irrevogabilidade da primeira aliança. Na oração escolhida,
indica-se a necessidade de um reconhecimento judaico da salvação universal
operada por Jesus Cristo. A posição adotada provoca tensões com o mundo
judaico, particularmente com a comunidade judaica italiana. Tensão semelhante com a comunidade judaica
tinha também acontecido por ocasião da visita de Bento XVI ao campo de
concentração de Auschwitz, na Polônia, em maio de 2006, quando o papa tinha
omitido em seu discurso a palavra Shoah,
mencionando apenas a expressão holocausto. Sabe-se que para os judeus, a
expressão Shoah é bem mais
significativa para traduzir a ideia da catástrofe destrutiva que envolveu o
genocídio nazista. Com o recurso a uma leitura deficiente da história, o papa
Bento XVI buscou também deslocar a responsabilidade da igreja católica no
dramático episódio nazista, como se ele fosse totalmente “estranho” ao
catolicismo alemão da época. Isso também provocou muitas reações. Novas tensões
ocorrem com a remissão da excomunhão de quatro bispos lefebvrianos, por ordem
de Bento XVI, em janeiro de 2009, sendo um deles – Richard Williamson, um claro
representante da extrema direita católica e porta-voz de um antissemitismo
explícito. Chegou inclusive a negar a presença das câmaras de gás no extermínio
judaico. Como nos casos anteriores, para corrigir os passos em falso, novas
intervenções de socorro das autoridades romanas. As autoridades ou seus
representantes são, às vezes, forçados a “defender continuamente trincheiras
indefensáveis”.
A mecânica dos passos em falso
aparece em outras ocasiões, como na infeliz nomeação de Gerhard Wagner, como
bispo auxiliar de Linz, na Áustria, em fevereiro de 2009. As reações contrárias
nos meios de comunicação daquele país foram imediatas, em razão do conservadorismo
vivo e ameaçador defendido pelo nomeado. O bispo acaba sendo em seguida
dispensado. E também na infeliz declaração de Bento XVI, em sua viagem à
África, em março de 2009. Durante o voo, em resposta a uma pergunta sobre a
difusão da AIDS feita pelo jornalista francês, Philippe Visseyrias, o papa
assinala que resistência a tal difusão não se dá com a distribuição de
camisinhas, mas tal distribuição, ao contrário, “aumenta o problema”. A
declaração do papa surtiu o efeito de um verdadeiro “tsunami midiático”, exigindo explicações do
representante da sala de imprensa vaticana, padre Lombardi.
Os vaticanistas dividem-se com
respeito aos campos de tensão entre Bento XVI e a cúria romana. Alguns, como
John Allen Jr, Sandro Magister e Marco Politi, falam de obstáculos bem precisos
enfrentados pelo papa em certas questões de conduta na política vaticana.
Outros, como o historiador Alberto Melloni, tendem a reagir contra um pretenso
isolamento do pontífice. É um tema delicado abordado por Paolo Rodari e Andrea
Tornielli na obra Attaco a Ratzinger
(Milano: Piemme, 2010, p. 242-244). Melloni argumenta, com razão, que os vinte
e três anos de convivência de Ratzinger com a cúria romana, deixaram vínculos
que não se perdem. É correto, porém, sublinhar que tensões existiram, sobretudo
com figuras curiais de relevo no pontificado de João Paulo II, como os cardeais
Darío Castrillón Hoyos, Angelo Sodano e Stanislaw Dziwisz. Desencontros vão
retornar com intensidade por ocasião das
explosivas revelações em torno da problemática da pedofilia na igreja católica.
É particularmente nesse campo que as diferenças entre Bento XVI e segmentos da
cúria romana vão emergir com mais destaque, traduzindo também modos de conduta
diversos com respeito ao governo na igreja. Segundo Politi, “Ratzinger
experimenta o fracasso de decisões que imaginava profícuas, dá-se conta da
ineficiência de quem na cúria deveria sustentá-lo e assiste impotente a uma
revolta que se propaga nos meios de comunicação. Coisa ainda mais amarga, é
obrigado a abrir os olhos para a rachadura radical do mundo católico com
respeito à sua linha” (Politi, 2011, p. 160). Num dos mais corajosos documentos
de seu pontificado, a carta pastoral aos católicos da Irlanda (março de 2010),
reage com “pavor” e “sensação de traição” às notícias veiculadas sobre o abuso
de crianças e jovens por parte de membros da igreja na Irlanda. Reconhece a
gravidade da situação, que revela “graves pecados” no seio da igreja. Sublinha
a importância de “examinar com atenção” as denúncias em curso, e desqualifica a
tendência na sociedade de favorecimento do clero, vista como “uma preocupação
inoportuna pelo bom nome da Igreja e para evitar escândalos”. Sua proposta é
audaz: “agir com urgência”. Aos sacerdotes e religiosos envolvidos, sublinha
que traíram a confiança neles depositada pelos jovens, e assinala que deverão
“responder diante de Deus” e dos “tribunais devidamente constituídos”.
Situações assim delicadas envolveram também líderes de movimentos muito
estimulados e consagrados na ocasião, como Marcial Maciel Degollado, fundador
dos Legionários de Cristo, acusado de abusos sexuais. As investigações contra
ele, autorizadas pela CDF, têm início – com atraso - em maio de 2006, com muita
oposição da cúria romana, onde tinha defensores. Quebra-se, com muita
dificuldade, essa tradicional “cultura do silêncio”. Na ocasião, vem convidado
a renunciar a todo ministério público e devotar-se a uma “vida reservada de
oração e penitência”. Depois de sua morte, ocorrida em janeiro de 2008, outros
escândalos envolvendo sua pessoa são revelados. Em maio de 2010, conclui-se a
investigação sobre ele, com a confirmação de sua conduta imoral e de seus
“gravíssimos comportamentos”.
Junto com a crise em torno da
pedofilia, a intransparência do banco vaticano e as polêmicas revelações do
Vatileaks, no início de 2012, envolvendo documentos secretos do vaticano com a
comprovação de uma ampla rede de corrupção, nepotismo e favoritismo. O mordomo
de Bento XVI, que servia o papa desde 2006, vem responsabilizado pelo vazamento
dos dados. Os documentos divulgados não tratavam só de questão financeira, mas
também de “lutas fratricidas” entre cardeais da cúria romana, de sua crescente
ambição e luta pelo poder.
A conjugação desses complexos
fatores, que se somam à frágil saúde de Bento XVI, resultaram na decisão em
favor de sua renúncia. Ela foi talvez sua “única grande reforma”, como
sublinhou Marco Politi. Não significou um gesto qualquer, mas um ato de governo
de grande alcance, um ato singular de “magistério espiritual”. Daí ter
provocado novamente a irritação da ala conservadora da igreja. Um ato que
guarda consigo um significado preciso, de “dessacralização” de um cargo, tido
como vitalício, e de visualização de seu limitado alcance. É um gesto que abre
uma nova discussão na igreja católica, sobre o modo de estruturação de seu
governo central, abrindo também espaço para sinalizar os limites da própria
instituição e convocando ao desafio de reinvenção da igreja, de um novo tônus
espiritual, fundado na convocação evangélica.
Referências
Bibliográficas:
ALLEN
JR, John L. Le 10 cose che stanno a cuore
a papa Benedetto. Milano: Ancora, 2008.
FOX,
Matthew. La guerra del papa. Perché
la crociata segreta di Ratzinger ha compromisso la Chiesa (e come questa può
essere salvata). Roma: Fazi, 2012.
MELLONI,
Alberto. L´inizio di papa Ratzinger.
Torino: Giulio Einaudi, 2006.
MESSORI,
Vittorio. Rapporto sulla fede.
Cinisello Balsamo: Paoline, 1985 (A colloquio con Joseph Ratzinger)
POLITI,
Marco. Joseph Ratzinger. Crisi di un
papato. Roma/Bari: Laterza, 2011.
RODARI,
Paolo & TORNIELLI, Andrea. Attaco a
Ratzinger. Accuse e scandali, profezie e comploti contro Benedetto XVI. Milano:
Piemme, 2010.
ZIZOLA,
Giancarlo. Benedetto XVI. Un
sucessore al crocevia. Milano: Sperling & Kupfer, 2005.
(Publicado
no livro: Afonso Soares & João Décio Passos (Orgs). Francisco: renasce a
esperança. São Paulo: Paulinas, 2013)
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