OS 25 ANOS DO
PONTIFICADO DE JOÃO PAULO II
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
O pontificado de João Paulo II
afirma-se como um dos mais longos de
toda a história do cristianismo. Ao
eleger-se papa em 16 de outubro de 1978,
o cardeal polonês Carol Józef Wojtyla
adotou o nome de João Paulo II para expressar o compromisso de
continuidade com os três últimos papas e o trabalho de renovação conciliar.
Após quebrar a duradoura cadeia de papas italianos, João Paulo II dará início a um papado de
grande projeção universal, com marcada influência nos rumos da história
contemporânea. Para ele, o grande desafio do papado era assumir uma “geografia
universal”, fazendo-se presente em cada rincão do planeta. Para o reforço na
visibilidade planetária da igreja
católico-romana foram de grande importância suas viagens pastorais. Foram mais
de 100 peregrinações em várias partes do mundo, além de quase 150 realizadas só
na Itália. Nelas o papa revelou sua extraordinária capacidade de comunicação e
seu potencial de liderança moral. Apesar das resistências da cúria romana, o
papa justifica a importâncias de suas viagens. Em discurso aos bispos da
Indonésia, em outubro de 1989, assinala que a melhor realização de sua missão
“é viajar, fazer experiência, encontrar-se, pôr-se em contato”. Com seus
inúmeros deslocamentos, o papa transformou a cenografia do cristianismo,
inaugurando novos e amplos espaços de encontro com o povo. As praças,
esplanadas, e estádios foram os locais
preferidos para a acolhida dos milhares de fiéis, curiosos e sobretudo os
jovens interessados em conhecer a figura carismática do papa. Sentia-se
sobretudo à vontade com os jovens, aos quais dedicou especial atenção.
Nos encontros mundiais da juventude, como o de Paris em 1997, rompeu com
os protocolos oficiais, na arte do
improviso e do diálogo festivo e informal com os peregrinos. Ao falar para
cerca de um milhão de jovens no hipódromo de Longchamp em Paris, o papa
indica que eles são um sinal de esperança para o mundo, pois trazem consigo um
ideal de vida e uma sede de felicidade, contrastando com a dinâmica habitual da
busca da riqueza, do bem-estar e da honra. A análise dos eventos mostrou com
clareza que muito mais importante e decisivo que os conteúdos dos discursos
apresentados foi a figura carismática do pontífice. Se, muitas vezes, os
documentos traduzem reticências, os gestos ampliam os horizontes revelando
aberturas inusitadas. Um slogan tornou-se popular entre os jovens por
ocasião de uma visita do papa aos Estados Unidos: “Nos agrada o cantor, mas não
a canção” (“We like the singer, but not the song”). Outro traço do pontificado
é a grande quantidade de documentos produzidos ao longo dos últimos 25 anos.
Trata-se de uma pletora de discursos, abrangendo um vasto campo de conteúdos.
Destacam-se as 14 encíclicas, as 15 exortações apostólicas, as 11
constituições apostólicas e as 42 cartas
apostólicas. Somam-se ainda mais 3 livros publicados respectivamente nos anos
de 1994, 1996 e 2003. Inúmeras foram também as beatificações e canonizações
ocorridas durante o pontificado. Foram proclamados cerca de 1315 beatos e mais
de 476 santos.
Não há como avaliar concretamente os 25 anos de pontificado de
João Paulo II sem antes situar a realidade do catolicismo romano no contexto
atual de globalização e pluralização religiosa. O fenômeno da globalização
provoca a radical transformação dos contextos locais e mesmo pessoais da experiência, incidindo também sobre os
sistemas religiosos. Ocorre com a globalização uma fragilização dos sistemas
simbólicos de crença e pertencimento, convocados permanentemente à exposição e
justificação de sua legitimidade. Com a facilidade de comunicação favorecida
pela globalização, as diferenças de crenças tornam-se mais diretamente
visíveis: prontas para a suspeita ou, no melhor dos casos, para o diálogo.
Junto com a globalização verifica-se igualmente a afirmação do pluralismo
religioso. Segundo os dados apresentados pela Enciclopédia Britânica, no livro do ano de 2003, o
cristianismo continua sendo o bloco religioso mais importante da humanidade,
com cerca de 2 bilhões de adeptos, ou seja, 32,9% do total dos 6,2 bilhões de
habitantes do planeta. Os cristãos, repartidos desigualmente pelos vários
continentes, encontram nas duas Américas sua melhor representatividade, com
cerca de 38,01% dos fiéis. Os adeptos das outras tradições religiosas somam um pouco mais de dois terços da
humanidade, abrangendo 67,1%. O que se verifica atualmente é um progressivo
declínio do cristianismo, se comparado com o crescimento do islamismo a nível
mundial. O islamismo conta hoje com 1,2 bilhões de fiéis, sendo a segunda
religião mais numerosa do mundo. Em crescimento admirável, o islamismo
triplicou o número de adeptos entre 1960 e 2003, aumentando sua participação
relativa de 14,5 para 19,8%. É a religião que mais cresce no mundo, com
presença decisiva na Ásia (70%) e na África (26,9%). Pode-se também registrar a
presença do hinduísmo, religião tipicamente asiática, com cerca de 828 milhões de
adeptos. Esta progressiva pluralização religiosa tem suscitado preocupação no
âmbito do catolicismo romano e reforçado a busca e afirmação de uma identidade
religiosa mais coesa e segura, como
garantia de manutenção de uma plausibilidade
ameaçada.
Em todo o período que cobre o
pontificado de João Paulo II percebe-se uma preocupação em favor da afirmação
identitária católica e de busca de
clareza da fé. Como reação ao diagnóstico da crise de valores da modernidade e
ao risco de fragmentação da identidade católica, busca-se apresentar um
catolicismo firme e unido, instrumentado por clara doutrina moral e
social. O pontificado do papa
Wojtyla é desde o início movido pelo ideal
de reorientação e restauração da igreja católico-romana e de busca de um novo
equilíbrio eclesial. A tônica vigente é
a da “visibilidade planetária”, enquanto
expressão de uma lúcida estratégia de retomada de vigor do catolicismo-romano e
de seus valores na contra-mão do clima
pós-moderno de dispersão e relativização. Haverá no pontificado um reforço da
evangelização explícita, com ênfase no anúncio e na proclamação clara de Jesus
Cristo como único salvador e da igreja como instrumento normal de salvação.
Como contraponto ao diagnóstico do risco de uma dinâmica testemunhal fundada na
afirmação secularizada dos valores humanos e deslocada da vinculação eclesial e
de um enfraquecimento do dinamismo missionário, ocorrerá uma concentração no
anúncio explícito. Há que reconhecer que, em casos concretos, esta perspectiva
acabou provocando uma tal concentração no mediador Jesus Cristo que relegou a
segundo plano as exigências de seu seguimento na história.
Não é facil a tarefa de caracterizar o
pontificado de João Paulo II. As tentativas de enquadramento numa ou outra
perspectiva acabam resultando limitadas ou empobrecedoras de uma dinâmica que
resulta bem mais complexa e tensionada. O olhar mais atento indica a presença
de oscilações e ambiguidades. Temos de um lado os gestos proféticos de
um pontífice animado pela luta em favor da paz, dos direitos humanos, da
liberdade religiosa e do diálogo entre as religiões e, de outro, uma dinâmica
institucional cerceadora de valores
que são fundamentais e que reforçam o centralismo romano e a salvaguarda da
doutrina mais conservadora.
Começando pela dinâmica
institucional, há que sublinhar em primeiro lugar as escolhas
institucionais que marcam o pontificado.
Tais escolhas vão na linha do reforço do
centralismo romano. A definição dos cargos mais importantes da cúria romana
recaiu sobre cardeais reconhecidamente zelosos e preocupados com a manutenção
da doutrina mais tradicional: Angelo Sodano (Secretário de Estado), Giovanni
Battista Re (Prefeito da Congregação para os Bispos) e Joseph Ratzinger
(Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé). Na visão de Marco Politi, um
dos vaticanistas mais reconhecidos e
articulista do jornal italiano La Repubblica,
João Paulo II sempre delegou aos homens de fidelidade do aparato curial
as gestões de governo no Vaticano. Boa parte da dinâmica institucional , das
escolhas institucionais e das práticas
correlatas são definidas por este núcleo
forte da cúria, que depois as submete à
aprovação do pontífice.
No repertório restritivo da dinâmica
institucional podem ser destacados
alguns elementos. Deve-se, inicialmente, sublinhar o reforço do movimento
centralizador e a inibição da atuação das igrejas particulares e de sua ação
pastoral. Durante o pontificado do papa Wojtyla a relação de Roma com as
igrejas locais será marcada por tensões
e conflitos, sobretudo com os episcopados mais progressistas, como os do Brasil
e Estados Unidos. Os bispos mais ativos de inúmeras conferências
episcopais têm sublinhado a crescente
dificuldade e incompreensão por que passam as igrejas locais mais comprometidas
com a renovação provocada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Outra questão
refere-se às dificuldades relacionadas
ao diálogo intra-eclesial. Nos últimos
25 anos de pontificado ocorreram uma série de restrições à atuação pastoral
e(ou) acadêmica de teólogos (as), bispos, religiosos (as) e leigos . Uma parte significativa das
nomeações episcopais ocorridas no
pontificado indicam um claro enquadramento na dinâmica de reorientação eclesial
determinada por Roma. Aqueles que não se encaixam no processo restaurador
encontram dificuldades e falta de apoio.
Inúmeros teólogos têm encontrado resistência na sua atividade acadêmica, em razão de
enunciarem a doutrina de modo diverso da visão oficialmente seguida. É o caso
de teólogos como Jacques Dupuis, Edward Schillebeeckx, Hans Kung, Leonardo
Boff, Charles Curran, Bernhard Haring, Marciano Vidal e outros. Alguns deles
foram objeto de notificações críticas da Congregação para a Doutrina da Fé,
outros sofreram punicões específicas como o silêncio obsequioso ou foram
impedidos de continuar lecionando em Faculdades católicas, com a retirada da
concessão da autorização para o magistério (missio canonica), o que
significou um pesado atentado à liberdade de pesquisa e de magistério.
A ação de controle aconteceu em três âmbitos
específicos: na teologia da libertação, na teologia das religiões e na teologia
moral. Durante a viagem do papa ao México, em janeiro de 1979, por ocasião da
Conferência Episcopal de Puebla, ele já havia chamado a atenção para alguns
riscos presentes na teologia da libertação e na práticas pastorais a ela
relacionadas, em particular a forma de compreender a libertação e o risco de
favorecimento de uma oposição entre a igreja institucional e a igreja popular.
O tema será objeto de duas instruções da Congregação para a Doutrina da Fé. A
primeira instrução, mais dura, foi publicada em 1984, num período
particularmente difícil para a teologia da libertação, marcado pela
insvestigação e processo contra alguns dos teólogos latino-americanos mais
destacados, como Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez. A instrução teve por
objetivo chamar a atenção dos bispos, teólogos e fiéis sobre os riscos e
desvios presentes em certas formas de teologia da libertação, consideradas mais
vulneráveis aos apelos da secularização e do pensamento marxista. A teologia
das religiões será também motivo de preocupação do magistério eclesiástico. A
abertura teológica ao pluralismo religioso será questionada por trazer consigo
o risco do relativismo e do indiferentismo, suscitando abalo na convicção
cristã da unicidade de Jesus Cristo e do mistério da igreja. Teme-se em
particular a desorientação que tais posições teológicas podem suscitar nos
fiéis católicos. Estarão na mira do controle eclesiástico os teólogos indianos,
americanos e europeus que se dedicam ao tema. Quanto à teologia moral, o
próprio cardeal Ratzinger sublinhara em seu livro entrevista, publicado em 1985
(Rapporto sulla fede), que ela havia se tornado o “lugar principal das
tensões entre o Magistério e os teólogos”. Inúmeras dificuldades têm ocorrido
neste âmbito da moral católico-romana, muitas vezes em tensão com a
sensibilidade ética atual. Na moral social verifica-se sintonia com o tempo e
uma maior abertura, mas na moral sexual predominam ainda as normas absolutas, livres
do risco da hermenêutica e em descompasso com as novas questões apresentadas
pela realidade ética do tempo.
Além dos teólogos, algumas congregações religiosas
sofreram também dificuldades no seu exercício pastoral, por não estarem
plenamente enquadradas, como é o caso da ordem dos jesuítas, franciscanos,
carmelitas e dominicanos. A intervenção crítica nas ordens religiosas ocorreu
sobretudo nos dez primeiros anos de pontificado de João Paulo II, como
precaução contra inovações em curso tidas como radicais. Na mesma linha de
restauração situa-se o enfático apoio concedido aos novos movimentos
religiosos, como a Comunhão e Libertação e a Opus Dei, esta última obteve neste
pontificado a prerrogativa de “prelazia pessoal”, ou seja, um tipo de diocese
não territorial, e sim pessoal, com ação transversal às dioceses comuns. Um
sinal de apoio e reforço à Opus Dei foi a beatificação de seu fundador, José
María Escrivá de Balaguer, ocorrida em 1992. Trata-se de uma das mais
controvertidas beatificações do pontificado, tendo significado um record
moderno, pois ocorrida a apenas dezessete anos depois de sua morte.
Para completar
o quadro, pode-se também mencionar outras questões restritivas como as
resistências ao processo de inculturação da liturgia, o impedimento de acesso
ao sacerdócio de homens casados, a proibição da ordenação das mulheres e a
recusa de acesso à comunhão eucarística de pessoas divorciadas e novamente
casadas. Instaura-se sobretudo neste campo da moral uma delicada questão
relacionada à comunicabilidade da igreja católico-romana. Está ocorrendo em
âmbito mundial um descompasso entre a mensagem moral tradicional e a
sensibilidade ética atual, ocasionando
incompreensões e, sobretudo, descompromisso no enquadramento das exigências
comportamentais.
Esta dinâmica institucional restritiva
vem, por sua vez, contraposta por sinais e gestos proféticos de João Paulo
II, que apontam para insólitos horizontes de abertura. O papa adota em seu
pontificado um novo estilo, marcado pelo carisma pessoal, pela itinerância e
pelo sonho ecumênico e inter-religioso. É um papa que se comunica, que marca
presença na mídia, que se envolve com a pessoas; um mestre que se destaca por
meio da palavra pessoal e do improviso, mais do que pelos documentos escritos.
O novo estilo colide com a dinâmica de funcionamento tradicional da cúria
romana. Aparece aqui novamente a questão da aporia do pontificado e a
complexidade de sua captação analítica. Não há como desvincular o pontífice da
dinâmica institucional do pontificado. Foi o papa quem nomeou alguns dos
importantes e decisivos nomes curiais, responsáveis
pelo processo de restauração eclesial em curso. Mas de fato, algumas
importantes análises sublinham a
realidade de uma certa “solidão institucional” do papa, que também sofre
resistências do aparato que ele mesmo
montou, sobretudo em áreas específicas como a do diálogo inter-religioso.
Os gestos de abertura do papa incidem
sobre duas questões particulares: o testemunho em favor da paz e a abertura
ecumênica e inter-religiosa. Não há dúvida de que seu legado fundamental estará
definitivamente ligado a tais gestos, muito mais decisivos do que todos os
documentos lançados no seu pontificado. Entretanto, alguns de seus documentos e
discursos estão marcados por grande vigor profético, acompanhando a intuição
dos gestos. Com respeito à questão da paz, João Paulo II tem assumido um
papel de liderança moral mundial, junto com outras autoridades religiosas como
o Dalai Lama. A sua indicação para o prêmio nobel da paz, em 2003, foi
expressão de seu importante papel neste momento histórico. Nenhum papa tratou o
tema com tanto vigor como ele. João
Paulo II tem assumido de forma corajosa a luta em favor dos direitos humanos,
da afirmação da justiça e a interpelação pela paz mundial. Em mensagem para a
celebração do dia mundial pela paz, no início de janeiro de 2003, sublinhou:
“Gestos de paz nascem da vida de pessoas que cultivam constantemente no próprio
espírito atitudes de paz. (...) Gestos de paz são possíveis quando as pessoas
têm em grande apreço a dimensão comunitária da vida, podendo assim perceber o
significado e as consequências que certos acontecimentos têm para a sua própria comunidade e para o
mundo inteiro. Gestos de paz criam uma tradição e uma cultura de paz”. Na mesma
mensagem reconheceu o papel essencial a ser assumido pelas diversas religiões
no fortalecimento dos gestos de paz e consolidação das condições para a paz. Em
encontro inter-religioso realizado em Jerusalém em março de 2000, o papa havia
acentuado que a autêntica experiência religiosa não se poderia compactuar com a
violência, mas ser um instrumento de atenção e cuidado para com todos seres
humanos. Afirmou que “a religião é inimiga da exclusão e da discriminação, do
ódio e da rivalidade, da violência e do conflito. A religião não é nem deve
tornar-se um pretexto para a violência. (...) Religião e paz caminham juntas”.
Não pode haver paz no mundo sem a paz entre as religiões, é o que se diz de
forma cada vez mais contundente na atual reflexão teológica sobre o pluralismo religioso. O
papa manifestou radical oposição, e quase solitária, à intervenção armada
liderada pelos americanos no Golfo Pérsico em fevereiro de 1991. Foram duras as
suas palavras na ocasião em carta ao presidente americano George Busch: “Não
podemos nos iludir que o emprego das armas, e sobretudo dos armamentos
sofisticados de hoje, não provoque, além
do sofrimento e da destruição, também novas e talvez piores injustiças”.
Durante os mais recentes episódios de intervenção americana no Afeganistão e no
Iraque, ocorridos em 2002 e 2003, a atuação crítica de João Paulo II foi
igualmente corajosa e incisiva, e assim
tem sido sua atuação de defesa permanente da paz. Em sua viagem ao Azerbaijão,
em maio de 2002, clamou: “Basta com a guerra em nome de Deus! Basta com a
profanação do seu santo Nome. (...) Enquanto eu tiver voz, bradarei ´Paz, em
nome de Deus!´. E se a palavra se associar a outras palavras, nascerá um coro,
uma sinfonia, que contagiará os espíritos, extinguirá o ódio e chegará a
desarmar os corações”. Numa de suas declarações mais contundentes sobre a
guerra, durante a visita à cidade de Contry, na Grã-Bretanha (1982), afirmou:
“A guerra deveria fazer parte do trágico passado da história: não deveria
encontrar lugar nos projetos do homem quanto ao futuro”.
Nos 25 anos de pontificado, João Paulo
II agiu de forma crítica contra o risco dos imperialismos e neocolonialismos.
Lançou sua voz contra as arbitrariedades presentes tanto no socialismo real
como no capitalismo selvagem. Nas três encíclicas onde aborda a questão social,
Laborem exercens (1981), Sollicitudo
rei socialis (1987) e Centesimus
annus (1991), questiona o alargamento do fosso entre os países ricos e
pobres, a dívida externa, a prevalência do capital sobre o trabalho, a crise do
desemprego, a corrida armamentista, a avidez pelo lucro e o poder e a negação
dos direitos humanos. Indica de forma profética que na raiz do mal moral que
mina o desenvolvimento dos povos está a presença de “estruturas de
pecado”. Questiona a idéia do
capitalismo como único modelo de organização econômica e propõe o destino
universal dos bens e a salvaguarda de uma autêntica ecologia humana.
Os passos mais decisivos de abertura de
João Paulo II acontecem no campo do diálogo inter-religioso. O evento
que serviu como paradigma desta abertura foi a Jornada Mundial de Oração pela
Paz, realizada no ano de 1986 na cidade de Assis (Itália). A idéia do grandioso evento nasceu durante a
viagem de João Paulo II na Índia, ocorrida no mesmo ano. Sua intenção era
convocar as diversas lideranças religiosas mundiais para uma jornada que
pudesse significar um sinal eloquente em favor da paz. O evento de Assis
resultou numa iniciativa histórica de grande alcance, um gesto sem precedente,
extraordinário e único, portador de um explosivo poder simbólico. Ali estavam
presentes representantes de 32 organizações cristãs, 2 judaicas e 32 de outras
tradições religiosas. Ao comentar o
evento em sua carta encíclica sobre o empenho ecumênico (Ut unum sint),
João Paulo II assim se expressou: “Os cristãos das várias Igrejas e Comunidades
eclesiais invocaram, a uma só voz, o Senhor da história pela paz no mundo.
Naquele dia, de modo distinto mas paralelo, rezaram pela paz também os hebreus
e os representantes das religiões não cristãs, numa sintonia de sentimentos que
fizeram vibrar as cordas mais profundas do espírito humano”. Gestos como estes,
de abertura dialogal, vem pontuando toda a trajetória de João Paulo II nestes
últimos 25 anos, tensionando com a tradicional visão eclesiocentrada vigente em
Roma. Entre os gestos mais significativos podem ser elencados: o encontro em Istambul com o Patriarca
Dimitrius de Constantinopla (1979), com o Primaz anglicano em Canterbury,
Robert Runcie (1982); com o patriarca supremo dos budistas tailandeses, em
Bangcoc (1984); com os jovens muçulmanos em Casablanca no Marrocos (1985); a
visita à sinagora de Roma (1986), a primeira a ser realizada por um papa na
história; a visita na Índia ao monumento em homenagem a Gandhi, onde sinaliza –
retomando o próprio Gandhi - que
“nenhuma cultura pode sobreviver se é exclusiva”; a abertura da porta santa
realizada em companhia com o primaz anglicano e o metropolita do patriarcado
ecumênico de Constantinopla (2000); a viagem à Terra Santa (2000), das mais
ricas em valores simbólicos; a visita à mesquita de Damasco (2001), igualmente
única na história, acompanhada pela atitude de tirar os sapatos.
Dentre os gestos mais bonitos estão aqueles que vieram
seguidos pelo pedido de perdão. O
vaticanista Luigi Accattoli destacou em seus livros a riqueza destes gestos do
papa Wojtyla. Os pedidos de perdão vêm acompanhando o papa em toda a trajetória
de seu pontificado. Podem aqui ser mencionados o pedido de perdão aos irmãos
escravos (África, 1985), aos ameríndios (EUA, 1987), às mulheres (carta de
1995) e aos povos do continente americano, sobretudo os índios e escravos, que
sofreram a injustiça e violência decorrentes do ímpeto missionário (Santo
Domingo, 1992). Os gestos mais contundentes acontecem no campo da relação com
as religiões. Durante sua visita na cidade de Olomuc, na República tcheca, em
maio de 1995, o papa assinala: “Hoje, eu, papa da Igreja católica, em nome de
todos os católicos, peço perdão pelas injustiças infligidas aos não-católicos
ao longo da história atribulada desses povos e, ao mesmo tempo, garanto o
perdão da Igreja católica pelo mal que os seus filhos sofreram”. Na consciência
de tais injustiças o papa irá identificar, na Tertio millennio adveniente,
um afastamento da igreja com respeito ao “espírito de Cristo e de seu
Evangelho”. Uma triste situação onde o que se oferece não é o “testemunho de uma
vida inspirada nos valores da fé, (mas) o espetáculo de modos de pensar e agir
que eram verdadeiras formas de antitestemunho e de escândalo”. Outros gestos de grande força simbólica
ocorreram nas diversas visitas realizadas junto à comunidade judaica. Na já
mencionada visita à sinagoga romana, em 1986, o papa chama os judeus de “irmãos
prediletos” e “irmãos mais velhos”. Em comovente homenagem prestada junto à
lápide judia no campo de Auschwitz, por ocasião de sua primeira viagem à
Polônia, em junho de 1979, bradou: “Exatamente esse povo, que recebeu de Deus o
mandamento de ´não matar´, experimentou em si mesmo, em medida ímpar, o que
significa matar. A ninguém será lícito passar diante desta lápide, com
indiferença”. Pode-se ainda mencionar o pedido de perdão do papa aos ortodoxos
no aerópago de Atenas (2001) e o seu silencioso gesto ecumênico diante do
monumento dos mártires calvinistas
vítimas das autoridades católicas no passado, quando em visita à cidade
antiga de Presov, na Eslováquia, em julho de 1995.
Em seu pontificado, João Paulo II tem
assinalado como prioridades o desafio ecumênico e o diálogo inter-religioso.
Quanto ao primeiro, dedicou uma de suas encíclicas mais ricas e abertas, a Ut
unum sint (1995). Identificou nesta encíclica o ecumenismo como um empenho
“irreversível” assumido pela igreja católica romana, tendo por objetivo o
“restabelecimento da plena unidade visível de todos os batizados”. Esta
comunhão não significa a realidade de uma igreja única, mas de uma unidade que
preserva a diversidade, ou uma “diversidade reconciliada”, como gostam de
expressar os que estão engajados no movimento ecumênico. Em favor da abertura de novos canais de
entendimento, o papa abre nesta encíclica a possibilidade de uma nova forma de
exercício do primado, que responda à aspiração comum ecumênica. Para reforçar
este ponto prioritário de sua agenda, João Paulo II designou o cardeal Walter
Kaspers, para presidente do Conselho para a Unidade dos Cristãos, sensível e comprometido com a questão
ecumênica. Permanece, porém, em aberto o desafio de maior união com as igrejas
do Oriente, uma das grandes esperanças do papa. Perdura ainda, como sublinhou o
vaticanista Luigi Accattoli, um “certo fracasso ecumênico no Oriente”. A
retomada do nacionalismo russo após a derrocada do comunismo, acabou
dificultando as relações do pontífice com o patriarca Alexis II, líder máximo
da Igreja ortodoxa na região, e que tem se oposto à visita do papa na Rússia,
um de seus maiores sonhos. Em sua carta
apostólica apresentada no final do grande jubileu do ano 2000, Novo
millennio ineunte, o papa afirmou: “Olho com grande esperança para as
Igrejas do Oriente, esperando que se retome plenamente a permuta de dons que
enriqueceu a Igreja do primeiro milênio”.
Junto ao empenho ecumênico, insere-se o
grande desafio do diálogo inter-religioso. Para João Paulo II trata-se de um
desafio fundamental deste novo século. O diálogo inter-religioso vem
compreendido como um “intercâmbio de dons”, que exige reciprocidade. Ele não
pode prescindir do testemunho comum e da afirmação da identidade. Mas deve
igualmente disponibilizar os interlocutores para a acolhida e a escuta do
outro. O outro é alguém capaz de favorecer uma visada singular do mistério que
habita a identidade, possibilitando “compreender mais profundamente” a mensagem
que traduz sua realidade. Em agosto de
1985, João Paulo II dirige-se pela primeira vez a um numeroso grupo de
muçulmanos, ao falar para 50 mil jovens muçulmanos que participavam dos jogos
pan-arábicos em Casablanca. O encontro ficou marcado como uma das experiências
mais bonitas no diálogo do cristianismo com o Islã. O papa vem apresentado pelo
rei Hassan II, “como educador e defensor de valores comuns ao Islã e ao Cristianismo”.
Em seu discurso chama os muçulmanos de “irmãos”, mostrando mais uma vez sua
grande solidariedade e sintonia com os fiéis das grandes tradições monoteístas.
Sublinha as muitas coisas em comum que unem cristãos e muçulmanos, sobretudo o
mesmo Deus de misericórdia e compaixão, mas também os valores humanos que
encontram em Deus o seu fundamento.
Assinalou para os jovens que “os caminhos de Deus não são sempre os
nossos caminhos. Eles transcendem as nossas ações sempre incompletas e as
intenções de nosso coração, sempre imperfeitas”. Diz também que Deus chama
cristãos e muçulmanos para uma mudança de hábitos e para o respeito mútuo. Um
pouco depois, em sua visita a Madras, na Índia, em 1986, ao falar para os
representantes das várias religiões, afirmou que é mediante a abertura dialogal
ao outro, que ocorre a abertura a Deus. O papa soube reconhecer os valores
positivos das religiões tradicionais africanas, o caráter irrevogável da
religião de Israel, os nobres valores que animam o budismo, o hinduísmo e o
shintoísmo, bem como o grande patrimônio espiritual do Islã.
João Paulo II foi ousado nos seus
gestos de abertura inter-religiosa e de defesa da liberdade religiosa. Segundo
Vittório Messori, em artigo publicado em periódico italiano em maio de 2001, o
papa decidiu “forçar as coisas” , confiando mais no gesto profético e no
horizonte utópico. Seus gestos traduzem “atos de coragem solitária”, como
sublinhou o vaticanista Giancarlo Zizola.
Esta ousadia custou-lhe resistências
curiais que perduram até o presente. Há um desconforto localizado em
setores específicos da cúria romana, não sintonizados com a dinâmica
inter-religiosa impressa nos gestos papais. Verifica-se inclusive uma colisão
entre tais gestos de abertura e
documentos produzidos pela cúria, como a Declaração Dominus
Iesus ( 2000), da Congregação
para a Doutrina da Fé, que expressa uma visão bem reticente do diálogo com as
outras religiões. A cúria romana trabalha permanentemente na contra-tendência
da sensibilidade dialogal, inclusive bloqueando decisivamente as pesquisas
teológicas em favor da acolhida do pluralismo religioso.
Em síntese, o pontificado de João Paulo
II vem dialeticamente marcado por dinâmicas tensionadas. Há um caminho
institucional marcado pela centralização eclesiástica e que bloqueia as frentes
de abertura em campos diversos como a experiência da colegialidade dos bispos, da autonomia do laicato, da
afirmação das igrejas locais, da cidadania eclesial da mulher, da moral sexual
e da abertura ecumênica e inter-religiosa. Mas ocorre simultaneamente, gestos
peculiares que rompem o bloqueio e traduzem uma perspectiva diversa, ainda que
muitas vezes perpassada por contradições e ambiguidades, apontando para um
horizonte distinto de experiência eclesial.
(Este
artigo foi publicado no CD-ROOM Panorama 2004 - Barsa Planeta, que acompanha o
livro do ano da Enciclopédia BARSA 2004)
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