NOS RASTROS DO AMADO
O CÂNTICO ESPIRITUAL DE JOÃO DA
CRUZ
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
O Cântico Espiritual de João da Cruz é
certamente uma das mais preciosas narrativas da literatura mística. Por sua
extraordinária beleza e profundidade foi saudado por muitos autores desde sua
criação no século XVI. Para Octávio Paz, o Cântico traduz a experiência mística
“mais profunda” da língua espanhola[1]. Conhecidas são também as
palavras de Menéndez y Pelayo, pronunciadas em 1881, em seu discurso de entrada
na Real Academia Espanhola:
“Mas há uma poesia ainda mais
angelical, celestial e divina, que já não parece deste mundo, nem é possível
medi-la com critérios literários, pois é mais ardente de paixão do que qualquer
poesia profana, e tão elegante e delicada na forma, tão plástica e figurativa
como os mais saborosos frutos do renascimento. São as Canções
espirituais de são João da Cruz (...). Confesso que, ao simples toque, me
infundem um religioso terror. Ali passou o espírito de Deus, embelezando e
santificando tudo (...)”[2].
Há, de fato,
uma força poética nas estrofes do Cântico que produzem no leitor admiração e
espanto. Não há como se proteger ou manter distância do impacto do poema. O
estupor é contagiante, como sinalizou Damaso Alonso em seu livro sobre a poesia
de João da Cruz. Trata-se, para ele, de um poema que convoca à admiração e ao
silêncio, e que se insere entre as “mais complexas de toda a literatura
espanhola”[3].
O Cântico
Espiritual é o trabalho mais representativo e famoso de João da Cruz, tendo
sido escrito entre os anos de 1578 e 1584. É com ele que o místico espanhol dá
início à sua obra de escritor. Nasceu como um poema, e as primeiras 31 estrofes
brotaram no cárcere de Toledo, quando João da Cruz esteve aprisionado pelos
próprios confrades que reagiram ao seu trabalho de reforma do Carmelo. Estas
estrofes formam “o primeiro núcleo do poema, o chamado ´protocântico`”[4].
João da Cruz
iniciou sua vida religiosa aos 21 anos, ao entrar no noviciado dos carmelitas.[5] O período coincidia com o final
do Concílio de Trento (1563), quando então a igreja católica inaugurava os
caminhos da contra-reforma. Os estudos de filosofia e teologia são realizados
em Salamanca, que na ocasião vivia um grande esplendor. Durante sua experiência
acadêmica residiu no convento carmelita de Santo André. O rigoroso sistema de
estudos sufoca a vocação contemplativa de João da Cruz que entra em crise
profunda, aventando inclusive a hipótese de entrar para a Cartuxa. É quando
aparece em seu caminho a figura
iluminada de Teresa de Ávila, em agosto de 1567, e o convence a “buscar maior
perfeição” permanecendo na própria Ordem.[6] Nasce uma grande empatia entre os
dois, que será duradoura. Iniciam ali uma intensa colaboração em favor da
renovação do Carmelo. Em 1568, em Duruelo, João da Cruz lança um novo ramo da
família carmelita, assumindo radicalmente a linha da reforma teresiana. Na
incipiente reforma João da Cruz assumirá
inúmeras tarefas: mestre de noviços, formador espiritual e mistagogo do Carmelo
Teresiano. Esta dinâmica inovadora será, porém, interrompida com a prisão de
Toledo, em dezembro de 1577, quando João da Cruz foi seqüestrado por um
“estranho bando” de carmelitas calçados, descontentes com a Reforma, e
encerrado por nove meses num cárcere conventual. Jogaram-no em uma cela pequena e sombria. Sua
alimentação estava reduzida a pão, água e sardinhas e não lhe permitiam trocar
de roupas.[7] Seu gesto de compromisso em favor
da Reforma foi julgado como desobediência e rebeldia, e na prisão foi submetido
a um forte disciplinamento. É neste contexto de “solidão exterior” e “desolação
interior” que nasceram as primeiras estrofes do Cântico Espiritual. Como
mostrou Eulogio Pacho, as únicas ocupações do prisioneiro eram “meditar, rezar,
pensar e esperar”, e isto durante noites e dias intermináveis. E os versos do
cântico vão sendo compostos mentalmente e registrados na memória, pois não
tinha onde escrever. Luminosas imagens vão esclarecendo a “solidão sonora”
vivida no cárcere. Nos longos meses vão emergindo as “peregrinas cadências” do
Cântico. João da Cruz “sente imperiosos desejos de transmitir ao papel aquelas
melodias poéticas mas tem que forçadamente conter a febre da criação”[8]
Com a mudança de carcereiro, no quarto ou quinto mês de aprisionamento,
é que consegue maior compreensão, adquirindo papel e tinta para escrever
“algumas coisas devocionais”. E surge assim nada menos do que o mais elevado
poema da lírica espanhola.[9]
É de se admirar que versos tão carregados de serenidade e marcados por
singular atmosfera estética possam ter brotado na dura solidão e miséria de um
calabouço: “privado de todo horizonte exterior, abriram-se-lhe as profundas
entranhas do sentido com imagens de luz e espaços místicos”[10].
1. Os passos de uma gênese
A
estruturação do Cântico Espiritual levou cerca de seis anos, iniciando-se em
1578, em Toledo, e concluindo-se em 1584, em Granada. As 31 primeiras estrofes
foram feitas no cárcere de Toledo, outras três em Baeza e 5 em Granada. Uma das
estrofes, de número 11, não consta no chamado primeiro Cântico (Cântico A),
tendo sido posteriormente acrescentada[11]. O poema ganha complemento com os
comentários que foram sendo acrescentados em razão da solicitação feita pelas
carmelitas de Beas, que conheciam as canções do pequeno caderno que João da Cruz
conseguiu salvar na fuga do cárcere. As religiosas inteiravam-se da
profundidade espiritual dos versos, mas os mesmos resultavam para elas ainda
ininteligíveis. Daí a sugestão do acréscimo de um comentário feito por João da
Cruz mesmo. Já em Beas aparecem os primeiros intentos de comentários do poema.
De acordo com Eulogio Pacho, é acertado dizer que “o comentário se inicia antes
que o santo complete o poema primitivo de Toledo”[12].
Havia entre
as religiosas de Beas muita curiosidade a propósito da redação do Cântico, de
seu elevado tom espiritual. Estudiosos da obra do grande místico, como Baruzi,
indicam que a inspiração de sua obra aconteceu muitas vezes sob um “estado
teofático”, num “êxtase prolongado”. Em determinados momentos, ficava João da
Cruz “tão absorvido em Deus (...) que tinha, às vezes, que golpear a parede com
o punho para que a dor o devolvesse ao mundo sensível”[13]. Conta-se que a copista oficial,
movida por curiosidade, perguntou a João da Cruz se era mesmo Deus que havia
inspirado nele aquelas palavras que as religiosas tanto adoravam. E ele a
respondeu: “Filha, algumas vezes Deus me deu e outras buscava-as eu”[14].
Uma das
questões mais complexas para a compreensão do Cântico Espiritual é a relação
entre a poesia do Cântico e os seus comentários em prosa. De fato, a poesia de
João da Cruz guarda um vigor insólito e inaugural, que marca uma singularidade
única, luminosa e insubstituível. São canções que perdem sua pureza original
quando encorpadas pela estranha roupagem dos comentários anexados. Para a
estudiosa Luce López-Baralt, “os ensinamentos teológicos de João da Cruz em sua
prosa permanecem pálidos diante das certezas gozosas e indizíveis que consegue
comunicar com absoluta liberdade em sua poesia”[15]. Tem havido certa “divisão de trabalho”
no estudo do Cântico Espiritual: os teólogos em geral têm se dedicado mais à
análise dos comentários e os críticos literários à análise da poesia. Mas há
necessidade de uma compreensão mais global da obra, de forma a não ignorar nem
a poesia nem a prosa. E o contato mais aproximado, por exemplo, com a prosa
sanjuanista pode revelar facetas importantes para a revelação da riqueza de sua
poesia, e vice versa. Este é o caminho que será seguido neste breve artigo,
privilegiando a articulação da poesia com a prosa. Em seu rico estudo sobre
João da Cruz, Colin Thompson acentuou a importância da recuperação dos
comentários em prosa para o favorecimento de uma avaliação mais ampla da obra
literária do místico espanhol. Thompson reconhece, como João da Cruz, que a
linguagem humana é um instrumento imperfeito e limitado para poder expressar o
que é inaudito. O poema busca “alojar o inefável”, “tornar visível o que é
invisível sem dele se apoderar”. É o grande paradoxo da linguagem poética do
místico. Mas este inefável também se faz presente na prosa. Os comentários de
João da Cruz destinam-se a “explicar” as imagens do poema. Não deixam, porém,
de ser “outro tipo de testemunho balbuciante da experiência que a poesia cantou
primeiro”[16]. Esta é também a sua importância.
Para a
correta compreensão da hermenêutica do Cântico Espiritual torna-se
indispensável o manejo desta articulação entre a poesia e a prosa sanjuanista.
Há que igualmente saber desentranhar a arte de João da Cruz que habita na sua
misteriosa linguagem. Mas para tanto é necessário superar certos preconceitos
que são comuns no âmbito da academia, e deixar-se envolver por certo “estado de
receptividade”, onde se possa também “saborear” algo que é sobretudo “dom”. Se
aqueles que se aproximam da obra de João da Cruz não partilham ou não são
capazes de captar a “atmosfera” espiritual que marcou sua composição, só
poderão ali encontrar “dislates” ou disparates. Segundo Colin Thompson, “as
versões do século XX desses ´dislates` poderiam ser os críticos que só sabem
encontrar em sua poesia o desafogo de uma sexualidade reprimida ou sublimada,
ou de uma mente desequilibrada”[17]. Não é de se estranhar que o
Cântico Espiritual tenha sido dedicado a alguém que carecia de formação na
teologia escolástica mas que era experiente na teologia mística, “que se sabe
por amor” (Prólogo 2). Aos que se interessam pela leitura do Cântico
Espiritual, Colin Thompson dá uma sugestão: o leitor não deveria fixar-se na
preocupação de superar todas as dificuldades de acompanhamento das explicações
fornecidas pelo místico: “´algo`se compreenderá, pois no fim de contas ´algo`
(...), ´un no se qué`, segundo são
João, é tudo o que se pode compreender”[18].
2. Análise do Cântico Espiritual
Há duas
redações distintas do Cântico Espiritual, conhecidas como Cântico A (CA) e
Cântico B (CB), a primeira com 39 estrofes e a segunda com 40 estrofes. Uma das
notas diferenciais entre as duas versões é o acréscimo de uma estrofe no CB, a
estrofe de numero 11. As duas redações são idênticas até a estrofe 10. Com a
inserção de uma nova estrofe no CB a seqüência fica alterada, o que permanece
até a estrofe 15. Haverá depois uma transposição da ordem até a estrofe 34
(CB), quando então será retomada a seqüência primitiva, marcada pela diferença
de uma estrofe. Segundo Eulogio Pacho,“o grupo estrófico 16-34 está
reorganizado de modo que as canções em que se descreve o desposório espiritual
formem um bloco unitário e as do matrimônio, outro, o que não ocorria na
primeira escritura (CA)”[19]. A intenção de João da Cruz, com
a mudança da ordem nas estrofes do CB, é a de favorecer uma maior clareza na
apresentação do “esquema” de desenvolvimento da vida espiritual. Como mostrou
José Angel Valente, o CA reflete “a desordem vital da experiência” e o CB “o
rigor sistemático da docência”[20].
O Cântico
Espiritual, como bem sintetizou Jean Baruzi, é fundamentalmente um “canto de
amor”[21]. Já na primeira estrofe aparece a
marca de uma sede e busca amorosa, refletidas no grito da amada: “Onde é que te
escondeste, Amado, e me deixaste com gemido?” (CB 1). Todo o “mistério verbal”
que acompanhará o Cântico traduz a familiaridade do místico com a tradição
semítica, e em particular com o “Cântico dos Cânticos”, que ocupa, sem dúvida,
“o lugar principal entre todas as tradições literárias do poema, tal como os
estudiosos reconhecem com coerência”[22]. Todo o itinerário do Cântico
deságua na descrição da união divina. Como bem mostrou Henrique Cláudio de Lima
Vaz, é
“no âmbito da contemplação unitiva
que floresce, na tradição cristã, a chamada ´mística nupcial` (Braut-mystik), que a tradição, desde
Orígenes, alimentou com a interpretação alegórica de Cântico dos Cânticos, e que, através da mística medieval – São
Bernardo e a mística cisterciense -, atinge a plenitude da sua riqueza simbólica
e doutrinal em São João da Cruz e Santa Teresa”.[23]
O prólogo do Cântico Espiritual, assim
como os outros prólogos que João da Cruz escreveu para os seus tratados em
prosa, tem por objetivo ajudar o leitor a acompanhar suas exposições. Já de
início apresenta a questão da inefabilidade da experiência mística e a
dificuldade de expressá-la adequadamente através das palavras. Admite que as
Canções foram escritas com “algum fervor de amor de Deus”, mas de forma humilde
reconhece que suas palavras apenas arranham a plenitude e profusão do amor que
as inspiram. As “expressões amorosas de inteligência mística”, como ele mesmo
descreve suas Canções, não podem “ser explicadas com clareza por meio de
palavras”. E continua: “é o Espírito do Senhor, que ajuda a nossa fraqueza, no
dizer de São Paulo, e, habitando em nossa alma, pede para nós com gemidos
inenarráveis, aquilo que nós mesmos mal podemos entender ou compreender para
manifestá-lo”[24].
Para João da
Cruz, as “figuras, comparações e semelhanças” que emprega em seu Cântico são
tentativas e esboços para captar os segredos e mistérios que o Espírito dá a
conhecer. Mas tais semelhanças devem ser lidas com “simplicidade do espírito de
amor e inteligência nelas encerrado”, caso contrário soarão mais como “dislates”
ou “disparates” (Prólogo 1).[25] É verdade que a mística cristã é
uma “mística da palavra”, mas de uma palavra que é consciente dos seus limites.
Daí João da Cruz dizer que “os doutores da Igreja, por muito que digam, e por
mais que queiram dizer, jamais poderão acabar de explicar com palavras o que
com palavras não se pode exprimir” (Prólogo 1). Há caminhos de acesso a Deus
que transbordam aqueles da consciência comum ou da consciência discursiva. Há
almas que são “inflamadas” no amor de Deus e estas conseguem “acessar” os
umbrais do mistério por caminhos que são inusitados. É o caso de Ana de Jesus,
destinatária do Cântico, que supre a ausência da teologia escolástica com a
“teologia mística que sabe por amor”[26]. Para João da Cruz, o amor “é o
princípio que torna possível a união com a infinidade de Deus. O conhecimento
não pode lográ-lo: dado que o conhecimento humano é finito, deve adentrar-se na
obscuridade para renascer como fé”[27]. A necessária “simplicidade de
espírito” de que fala João da Cruz, relaciona-se com um peculiar “estado de
receptividade” que faculta a integração de todas as faculdades na dinâmica
gratuita da acolhida de um dom. Trata-se de um estado que favorece a disposição
essencial para se poder “saborear” o mistério das “verdades divinas”.
Para
favorecer a compreensão do plano esquemático do Cântico Espiritual pode-se
seguir uma organização que é usual na mística cristã, que remonta a Pseudo
Dionísio (sécs. V-VI) e foi igualmente aplicada no estudo desta obra. Trata-se
da distinção entre as três tradicionais vias do caminho místico: a via
purgativa (de purificação), a via iluminativa (de iluminação interior), a via
unitiva ( de união com Deus). Na verdade, estas três vias revelam um caminho
progressivo e ascensional. Mas não se pode encaixar este sistema didático a
todo processo de crescimento da vida interior, como se fosse algo rígido e
invariável. Em seu estudo sobre João da Cruz, Colin Thompson chamou a atenção
para a complexidade da via mística:
“São João sabia perfeitamente que
a vida interior não podia reduzir-se a um sistema básico de aplicação
universal, e de nenhuma maneira a determinado sistema produzido
retrospectivamente, desde a segurança do destino desejado, a união com Deus.
Ele mesmo nos diz em várias ocasiões que
Deus conduz almas diferentes por caminhos diferentes, o que sugere a
possibilidade de haver tantas e distintas trajetórias no caminho como as almas
que o empreendem”.[28]
A estrutura
geral do Cântico Espiritual, sobretudo em sua redação B, segue o modelo das três
vias tradicionais do caminho místico. A via purgativa encontra-se nas cinco primeiras estrofes (CB 1-5), e
marca o momento mais inicial de busca, caracterizado pela purificação da alma e
da luta contra os desvios. A via iluminativa, presente nas estrofes de 6 a 13
(CB 6-13), já expressa um maior crescimento na vida espiritual, indicando uma
proficiência na prática das virtudes. A via unitiva , que marca as estrofes de
14 a 40 (CB 14-40), é expressão superior da vida mística de união com Deus.
Neste terceiro momento, João da Cruz faz uma distinção entre desposório e
matrimônio espiritual. O desposório traduz uma promessa e disposição de união,
e se inicia na estrofe 13 (CB 13). Este momento ainda é marcado por “ausências,
perturbações e aflições” (CB 15,30). O matrimônio traduz uma purificação total,
revelando uma grande harmonia do ser humano em sua orientação para Deus, e as
estrofes que traduzem este momento são as de número 22 e 26 (CB 22 e 26).[29]
a. A via purgativa
O poema do Cântico Espiritual começa com o grito da amada:
“Onde é que te escondeste, Amado e me deixaste sem sentido” (CB 1). A amada
expõe aqui sua grande ânsia de amor, retomando a conhecida petição da esposa do
Cântico dos Cânticos: “Mostra-me, ó amor de minha alma, onde pastoreias...” (Ct
1,7). Fala-se aqui de um ocultamento do Amado, de alguém que se retrai face a
“todo humano entendimento” (CB 1,3). Não há como alcançar nesta vida a completa
visão de Deus. Não há acesso para a “substância dos segredos” senão seguindo a
via de Moisés, que se colocou na “fenda da rocha” e viu o mistério “pelas
costas” (Ex 33,22 – CB 1,10)[30]. Mas mesmo que oculto, este
mistério está gravado em cada alma. É o que sublinha João da Cruz quando indica
que o Amado mora no seio da alma (CB 1,10)[31].
Faz parte da trajetória purgativa da amada, buscar
libertar-se de seus antigos hábitos, romper com as “distrações” que a afastam
de seu objeto amoroso, alhear-se de todas as coisas e criaturas (CB 8-9). Daí a
necessidade da amada também esconder-se em sua interioridade, pois não é fora
de si que ela poderá encontrar o Amado: “Que mais queres, ó alma, e que mais
buscas fora de ti, se tens dentro de ti tuas riquezas, teus deleites, tua
satisfação, tua fartura e teu reino” (CB 1,8). O Amado habita o interior da amada,
mas ela não o percebe pois ele está escondido. Ela necessita “sair” para dentro
de si, e escondida em seu interior será capaz de encontrá-lo e senti-lo (CB
1,9)[32].
Os comentários de João da Cruz sobre a primeira estrofe do
Cântico Espiritual acabaram sugerindo para alguns a idéia de que a experiência
mística leva ao distanciamento do mundo e ao alheamento das criaturas. De fato,
João da Cruz faz menção à necessidade do “esquecimento” de todas as coisas e ao
“alheamento” das criaturas (CB 1,9) para o progresso da vida espiritual. Para
ele, não há como participar da comunhão com o Amado senão permanecendo com ele
escondido. Esta concentração no Amado é um passo específico do momento
purgativo, mas não significa um desconhecimento do valor da criação e das criaturas.
Os estudiosos de João da Cruz mostraram com pertinência esta questão. É o caso
de Jean Baruzi, que assim se expressou a respeito:
“João da Cruz situa-se na primeira
fila desses místicos que se inscrevem no universo. Não basta dizer que cantou e
analisou o encontro entre Deus e a Alma na solidão. São as coisas mesmas que,
repudiadas no início com a negação da noite, voltam a ser absorvidas na alma,
descobertas em Deus e apaixonadamente amadas em sua grandeza”[33].
A
permanência junto ao Amado é sublinhada com ênfase no Cântico. É na medida em
que a amada “está toda unida” com ele que pode então chamá-lo de Amado (CB
1,13). Esta é uma bela passagem que convoca à memória alguns importantes
místicos sufis, entre os quais o egípcio Dhū-l-Nūn (séc.IX d.C), que dizia: “Oh
Deus, diante dos outros te invoco: Oh meu Senhor! Mas na solidão te chamo: Oh
meu Amado (habīb)”[34]. Faz lembrar igualmente o belo
sermão de São Bernardo, em seu comentário do Cântico dos Cânticos: “Quando o
Esposo é presente e a esposa dirige a ele sua palavra, então vem chamado
´Esposo` ou ´querido`, ou mesmo ´aquele que é a minha alma`; falando dele aos
jovens o chama ´Rei`”[35].
A amada
enamorada anseia por seu amor, mas ele é como o cervo que escapa com rapidez,
deixando-a “com gemido”. Mas como não pode mais descansar ou achar alívio longe
de sua presença, como não pode suportar a dor de sua ausência, ela vive sob um
“contínuo gemido” (CB 1,14)[36]. Não se trata, porém, de um
sentimento que sinaliza um desespero, mas é marcado pela esperança paulina,
como descrita em Rm 8,23. A amada foi ferida de amor e “cauterizada com amoroso
fogo” (CB 1,16). São feridas singulares, que inflamam a vontade e o coração,
acendendo o radical desejo de amor: “a alma por amor é reduzida a nada, sem mais coisa alguma
saber senão amor” (CB 1,18)[37]. As feridas produzidas pelo Amado
são como “toques de amor”, que não deixam arrefecer na alma sua viva lembrança
(CB 1,17 e 19). E é animada por este “apetite” que a amada SAI em busca do
Amado, “na força do fogo produzido pela ferida” (CB 1,20). Como uma caçadora,
segue os rastros do Amado, numa direção que é única: a do amor. E a decisão de
sair guarda consigo exigências bem precisas: significa abandonar “o modo
rasteiro de amar” e voltar-se para o “elevado amor de Deus”, num estado de
permanente enamoramento (CB 1,21). Há que assinalar o fato de João da Cruz
trabalhar aqui com imagens que também estão presentes no Cântico dos Cânticos.
Como indica Thompsom, é ali que o místico encontra suas imagens fundamentais:
“um Amado ausente, uma partida, uma ferida e um grito de dor, que se assemelha
ao do cervo”[38].
Em sua saída
a amada clama aos pastores mensageiros[39] por informação mais segura do
Amado e a eles expressa a dor de uma ausência: “se porventura virdes aquele a
quem mais quero, dizei-lhe que adoeço, peno e morro” (CB 2). A insana busca
continua por montes e ribeiras. Na peregrinação da amada nada a pode desviar de
sua concentração no Amado: nem flores, nem feras, fortes ou fronteiras. A ele
está inteiramente dedicada. Não há como romper o umbral que aponta para além
mantendo-se amarrada aos “contentamentos e deleites” que a vida pode oferecer
(CB 3,5).[40] A busca espiritual exige um
desapego radical. Diz a amada: “não apegarei meu coração às riquezas e
vantagens que me oferecer o mundo” (CB 3,5)[41].
João da Cruz
assinala que nas três primeiras estrofes do Cântico há a descrição do
“exercício do conhecimento próprio” (CB 4,1), passo fundamental para o
conhecimento de Deus. Em seguida a amada volta-se para o exterior e interroga
bosques, espessuras e o prado de verduras: “Dizei-me se por vós ele há passado”
(CB 4).Volta-se para a inumerável variedade das criaturas, que compõem a terra,
a água, o ar e o fogo, para saber sobre os rastros do Amado (CB 4,2). As
criaturas são aqui vistas positivamente. Nelas a amada vê “a grandeza e
excelência do Criador” (CB 4,1). Foram plantadas pela mão do próprio Amado. As
estrofes 4 e 5 são extremamente plásticas e ricas de simbolismo. Segundo Luce
López-Baralt, elas expressam “os versos mais alucinados da literatura espanhola
do Século de Ouro”[42]. Ao falar, por exemplo, no “prado
de verduras, de flores esmaltado” (CB 4), João da Cruz quer expressar a
metáfora dos “pastos eternos dos céus”, esmaltados pelas estrelas. Ele retoma
uma imagem típica da tradição pastoril cristã, para a qual “os pastos verdes e
floridos do céu distinguem-se dos da terra por suas belezas que nunca murcham e
pela luminosidade de seus habitantes”[43].
Em resposta
à indagação da amada, as criaturas respondem que o Amado “passou por estes
soutos com ventura” (CB 5). Deixou seus rastros na beleza com que dotou todas
as coisas no ato da criação. Aqui João da Cruz, como Agostinho nas Confissões,
indica que na natureza pode-se captar a “formosura” do Amado.[44]
b. A via iluminativa
João da Cruz
reconhece na sexta estrofe do Cântico os limites das criaturas para o
desvelamento do mistério do Amado. Depois de captar a resposta das criaturas, a
amada manifesta o seu desencanto com as notícias veiculadas pelos diversos
mensageiros: “Não queiras enviar-me um outro mensageiro, que não sabem dizer-me
quanto anseio” (CB 6). Em sua explicação, o místico assinala como é parcial e
fragmentário tudo “quanto nesta vida se pode conhecer a respeito de Deus, por
muito que seja, não é conhecimento verdadeiro (CB 6,5). Não há na terra ou no
céu quem possa dar à amada a notícia que ela deseja do Amado (CB 6,7). As
criaturas deixam somente “um rastro da formosura” (CB 6,2). Na medida em que
vai avançando espiritualmente, a amada percebe que a proximidade do
conhecimento de Deus acende ainda mais fortemente a “ânsia de vê-lo”. Não há
como curar sua doença senão com “a presença e vista do Amado” (CB 6,2)[45].
Em sua busca
amorosa, a amada se dá conta que todos os relatos transmitidos pelos humanos a
respeito do Amado aprofundam nela a chaga da separação, deixando-a morrendo.
São relatos que acirram o seu enamoramento, mas não traduzem a resposta
querida, pois ficam “somente no rastro”. O que as criaturas trazem com suas
respostas são apenas frágeis esboços:
“um ´não sei que` que ficam balbuciando” (CB 7). Mas para que haja verdadeira
compreensão do Amado é necessário algo mais, uma “subida experiência”, que
escapa ao poder das palavras e do entendimento: mas que está ao alcance do
sentimento. E este sentimento é tão forte e substancioso que provoca a sensação
de morte: “e deixa-me morrendo” (CB 7). Apoderada deste sentimento, a amada
experimenta “uma impressão tão elevada do mesmo Deus, que claramente tem a
convicção de ficar tudo por entender” (CB 7,9)[46]. João da Cruz distingue três
formas de penar pelo Amado: a ferida, a chaga e o morrer de amor. No caso da
ferida, é um penar de intensidade menor, que passa mais brevemente. Já a chaga
dura mais tempo, em razão de produzir mais impressão na alma. Mas o morrer de
amor é das três a mais intensa, é como uma chaga afistulada pelo “toque de
notícia altíssima da Divindade” (CB 7,4).[47]
Os toques de
amor são como flexas que se recebe do Amado e que tocam o coração (CB 8,3). E a
amada sente-se chagada. De forma semelhante ao cervo que foi ferido com erva
venenosa, a amada também foi tocada pela erva do amor. E sua doença não tem
cura: “tudo quanto pensa, diz e faz, antes lhe serve para aumentar seu
sofrimento” (CB 9,1)[48]. O único remédio é “por-se nas
mãos de quem a feriu, para que ele, livrando-a de toda pena, acabe de matá-la
com a força do amor” (CB 9,1).
Na estrofe
seguinte, João da Cruz introduz o tema da mirada, que é essencial para todos os
enamorados, pois é através do olhar que eles intercambiam suas almas. E a amada
prossegue suas súplicas: “Extingue os meus anseios, porque ninguém os pode
desfazer; e vejam-te meus olhos” (CB 10). Os anseios identificam-se com as
inquietações que acompanham a sede de ver a Deus. Só podem ser dissipados com a
“posse do Amado”. Daí suplicar a amada pela visão face-a-face, pois Deus é “a
luz de seus olhos” (CB 10,8).
Na estrofe
que foi introduzida no Cântico B, de número 11, retoma-se uma temática
trabalhada em momento anterior (CB 6,2), onde se assinala que a doença de amor
só se cura com a presença do Amado. A amada reforça agora com mais vigor o seu
desejo: “Mostra tua presença! Mate-me a
tua vista e formosura” (CB 11). Para João da Cruz, são duas as visões que matam
o ser humano. Uma é a do basilisco, o fabuloso réptil que guarda no bafo e no
olhar o poder de matar; a outra é a visão de Deus. Enquanto uma mata com um
poderoso veneno, a outra mata com a saúde e a glória (CB 11,7). Para a amada
não é nenhum sacrifício morrer diante da formosura divina. Ela reitera: “Se
percebesse um só vestígio da beleza e sublimidade de Deus, não desejaria apenas
uma morte, como aqui, para contemplá-la eternamente, mas mil acerbíssimas
mortes...” (CB 11,7)[49]. Para López-Baralt, “a emissora
dos versos toca levemente a intuição fundamental de eros e tánatos: a posse
amorosa é tão radical que permite a intuição da perda do ser. Dito de outro
modo, o ego se apaga (ou a identidade se rende) quando se transforma no objeto
amado”[50]. E João da Cruz é bem claro a
respeito em seu comentário: “É necessário saber que o amor jamais chegará à
perfeição até que se juntem os amantes em unidade, transfigurando-se um no
outro” (CB 11,11). Comparada às demais estrofes, esta vem marcada por
diferenças que são bem definidas, como mostrou Jean Baruzi. Nela aparecem
palavras bem abstratas: presença, figura, vista, formosura. Este autor sublinha
ainda seu estranhamento com respeito à utilização que foi feita por João da
Cruz de elementos dos comentários da estrofe 6,2[51].
Na estrofe de número 12, João da Cruz
prepara o passo culminante de seu itinerário místico. Neste estágio de sua
travessia, a amada toca o limiar do mistério. Sob forte atração do centro
misterioso de gravidade, ela assemelha-se à “cera que começou a receber a
impressão do selo”, mas o desejo de proximidade acirra ainda mais sua ousadia.
Sente-se como “a imagem que levou só a primeira mão, e ficou apenas no esboço”
(CB 12,1). Neste momento jubiloso a amada “perde” a identidade. Em sua análise
do Cântico, López-Baralt, assinala que ela já vinha perdendo a corporeidade na
medida em que o poema avançava: é uma amada “que não tem rosto, nem identidade,
nem vulto corpóreo (...)”[52]. E a estrofe é bem rica para
evidenciar esta surpresa descomunal. De modo bem diverso do mito de Narciso, a
protagonista quando agora se debruça sobre a “cristalina fonte”, vê refletida não a sua imagem, mas a do
Amado. Nos “semblantes prateados” da claríssima nascente a imagem que forma é
aquela que está desenhada nas entranhas da amada (CB 12). De forma magnífica, a
estrofe consegue solucionar a pergunta feita pela amada no início do Cântico:
“Onde é que te escondeste?” (CB 1). A resposta vem agora desvelada no espaço de sua própria ipseidade, onde o
Amado se revela, ou seja, nela mesma. É algo semelhante ao que foi descrito por
Attar na sua conhecida obra “Linguagem de
Pássaros”. Depois de atravessarem os sete vales de dificuldades, os trinta
pássaros que sobraram entre todos os que partiram em busca do Simorg, o rei dos pássaros, irrompem nas
portas de seu Reino e dão-se conta que a luz do Simorg transparece no reflexo
de seus rostos[53].
Na visão de López-Baralt, o que
ocorre aqui é uma “extraordinária novidade literária” de João da Cruz, ao
sugerir este “narcisismo jubiloso”,
utilizando a metáfora espiritual e universal da água[54]. Com base em suas pesquisas sobre
a contextualidade islâmica, esta autora sublinha que em sua reflexão sobre a
“união transformante” o místico espanhol aproxima-se da radical experiência de
alguns místicos sufis, como Abū Yazid Bistami (sécs. VIII e IX dC), conhecido
pela embriaguês de suas locuções teopáticas. O transe da amada diante da
“cristalina fonte” vem descrito como uma experiência semelhante a de Bistami
que gritava: subhānī (Louve a mim),
em momento extremo de seu êxtase místico. Na expressão de sua
“auto-glorificação” o célebre místico
sufi indicava que no momento preciso da união total dissolvia-se a substância
de seu eu para somente Deus brilhar[55]. Mas segundo López-Baralt, o
místico espanhol foi mais acanhado que seus “entusiastas colegas sufis” e se
detém um pouco antes do atrevimento de um arrebato místico que o faria dizer,
como Bistami, “louve a mim”. A amada, diante da cristalina fonte, vive em
profundidade a união participante, mas não ousa dar o passo teopático mais
radical[56].
Em sua
explicação, João da Cruz assinala que os “semblantes prateados” da cristalina
fonte “cobrem o ouro dos divinos raios”
(CB 12,4)[57]. O desenho do Amado brota do
interior mesmo da amada e se reflete na claríssima nascente. Há entre os dois
uma viva “união de amor”, sendo possível afirmar
“que o Amado vive no amante, e o
amante no Amado; é tão perfeita a semelhança realizada pelo amor na
transformação dos amados, que podemos dizer: cada um é o outro, e ambos são um
só “(CB 12,7).
O mistério de Deus permanece no coração da amada como um
selo (CB 12,8). Nela está entranhado. À medida que a amada avança em sua
caminhada e se aproxima do mistério de Deus, a sede desta fonte viva se
radicaliza. E atormentada por este desejo ardente enfrenta com vigor todas as
intempéries que encontra pelo caminho: “dificuldades do mundo, fúrias dos
demônios, penas infernais, tudo seria pouco para a alma sofrer, a troco de
engolfar-se no abismo dessa fonte de amor” (CB 12,9)[58].
A experiência da amada na cristalina fonte diante da força
dos raios divinos foi impactante. Os raios de sua grandeza “foram tão sublimes
e com tanta força comunicados, que a fizeram sair de si por arroubamento e
êxtase” (CB 13,2). Era extremamente frágil e sutil a linha divisória que a
“separava” de seu amado, a “tela” que impedia o radical e doce encontro. Ao
sentir perder sua própria identidade ela roga ao Amado: “Aparta-os, meu Amado,
que eu alço vôo” (CB 13)[59]. A amada implora ao Amado apartar
de si os seus olhos divinos, porque eles a “fazem voar”, e sair de si mesma à
contemplação mais admirável (CB 12,2). Como diria o compositor brasileiro, “não
dá para segurar, explode coração!”. A sublime comunicação que ela recebe do
Amado é mais possante que a sua capacidade de acolhida. Não pode receber tal
conhecimento “sem que lhe custe quase a vida”. Ela vê-se obrigada a afastar tal
“secreta mirada”[60]. Mas o que ocorre, mais uma vez,
é a aporia recorrente no Cântico, que desvela uma simultaneidade de direções: a
amada alça vôo para dentro de si mesma, e vive a dinâmica do estupor[61]. O poeta e místico nicaragüense,
Ernesto Cardenal, expressou com clareza o significado da experiência: “não
sabemos que no centro de nosso ser não somos nós mesmos mas Outro”[62]. Neste momento, o Amado lança
pela primeira vez sua voz no poema e grita: “Regressa, ó paloma, que o cervo
vulnerado já pelo outeiro assoma na brisa de teu vôo e fresco toma” (CB 13). Como
explica João da Cruz, “em vez de satisfazer o desejo da amada, o Esposo
apressou-se em impedi-lo e em cortar-lhe o vôo, dizendo Volve-te, columba” (CB
13,2). Como ainda se encontra num estado de progressão (via iluminativa), a
amada não consegue abrigar tais comunicações divinas numa dinâmica de “paz e
suavidade” (CB 13,6). Vive ainda sob o impacto de arroubamentos diante do vigor
dos olhos divinos, que se traduzem como um “forte desconjuntamento dos ossos”
(CB 13,4). Quando o Amado intervém, interrompendo o êxtase, quer dizer à amada
que “não é ainda chegado o tempo de tão alto conhecimento” (CB 13,8).
c. A via unitiva
Um momento
culminante do Cântico Espiritual encontra-se nas estrofes 14 e 15 (CB 14-15),
que dão início ao núcleo de intensidade artística e mística do poema, quando
então irá ocorrer o êxtase transformante. Trata-se, segundo João da Cruz, de um
“alto estado e união de amor” que dá remate ao longo processo de exercício
espiritual que acompanha os momentos purgativo e iluminativo (CB 14,2). Dá-se
agora a afirmação do “desposório” espiritual, que havia começado na estrofe 13
(CB 13). Nesta nova etapa, a amada
“não faz outra coisa senão contar
e cantar as magnificências de seu Amado, conhecidas e gozadas nessa união do
desposório. Assim, nas demais canções já não se fala de penas e ânsias, como
fazia anteriormente, mas só trata da comunicação e exercício de amor suave e
pacífico, com seu Amado” (CB 14,2).
Estas duas
estrofes nucleares inserem-se entre as liras mais ricas de amor de todos os
tempos, de uma profundidade abismal, e traduzem uma experiência espiritual
única:
“Meu Amado,
as montanhas,
os vales
solitários nemorosos,
as ilhas
mais estranhas,
os rios
sonorosos,
o sibilar
dos ares amorosos;
a noite
sossegada,
nos raios suavíssimos
da aurora,
a musica
calada,
a solidão
sonora,
Na visão de
López-Baralt, estas enigmáticas liras do poeta místico desconcertam a
capacidade racional dos humanos. São versos
“fundamentalmente misteriosos para nossa intelecção estritamente
intelectual por sua ausência de verbo e sua ofegante torrente de imagens
desconexas”, animadas por “marcado ritmo
encantatório”[64]. As imagens apresentadas pelo
poeta são, na verdade, aparentemente desconexas, pois sinalizam uma outra
lógica, que é “a-racional”[65]. A força tensional dos oxímoros
enriquecem ainda mais a construção poética: “a musica calada”, “a solidão
sonora”. O que ao primeiro olhar parece absurdo revela, porém, valores que são
preciosos. O estudioso Michel de Certeau marcou em sua análise esta “audácia”
de João da Cruz: a sua capacidade de “manipulação técnica”, que aos olhares
externos pode soar como “dislates”. Como um grande poeta, o místico espanhol,
“desnatura a língua”, que abandona sua tradicional função de imitação das
coisas. Em sua prática de desapego lingüístico ele “atormenta as palavras para
fazê-las dizer aquilo que, literalmente, não dizem”[66].
A
protagonista do Cântico, que havia antes buscado o Amado pelos bosques, montes,
prados e outeiros, dá-se conta agora que ele mesmo está incorporado nessas
paisagens: “Meu Amado, as montanhas”. Na dinâmica de “imagens alucinadas”, João
da Cruz dá vida a registros que são vivamente sensoriais. Curiosamente, o monge
asceta reencontra em Deus os deleites táteis e gustativos que tanto se negou em
vida[67]. Mediante o procedimento
metafórico de equiparação do Amado com as montanhas, o místico indica que Deus
só pode ser descrito de modo alusivo, sugerido e não explicado. Para ele,
“Deus, a quem se encaminha o entendimento, ultrapassa o mesmo entendimento; e,
portanto, é incompreensível e inacessível ao entendimento; se, pois, o
entendimento vai entendendo, não se vai aproximando de Deus, mas vai antes se
apartando dele”[68]. Na visão englobante do poeta,
todas as coisas criadas são portais do Amado: “cada uma destas grandezas que se
atribuem a Deus, e todas elas em conjunto, são o próprio Deus” (CB 14,5)[69]. Mas Deus é sempre uma “ilha
estranha”, seja aos homens, anjos e santos que o contemplam. Ele sempre se
manifesta como novidade ao coração acolhedor, é um Deus que “se move”. Nesse
sentido, os seres humanos, por mais que se esforcem, “jamais acabam ou acabarão
de vê-lo; até o último dia, o do juízo, vão descobrindo nele tantas novidades a
respeito dos seus profundos juízos, e das obras de misericórdia e justiça, que
sempre lhes causa nova admiração e cada vez mais se maravilham” (CB 14,8)[70].
No momento
unitivo, a noite deixa o toque de sua obscuridade e ganha um traço tranqüilo e
sereno. É uma noite que anuncia, agora, os “levantes da aurora” (CB 15,23) que,
para João da Cruz, simbolizam a manhã da luz divina.[71] É um tempo de suavidade, de
“conhecimento sossegado” (CB 15,25), de percepção da sonoridade espiritual (CB
15,26) e de regozijo amoroso. Daí falar João da Cruz em “ceia que deleita e
enamora”. A imagem é gustativa, expressando uma ciência que é saborosa. E
trata-se aqui, como sublinha López-Baralt, não da ceia eucarística, mas do
alimento que “é o próprio Amado” (CB 15,29). Trata-se do panis angelicus, do qual nutrem-se os anjos, em sua gozosa visão
divina[72]. No momento unitivo, a amada
participa do deleite e gozo do próprio Amado, resultado de uma “divina união”.
Nas três
estrofes seguintes (CB 16-18), João da Cruz menciona as resistências impostas
ao itinerário da amada. Não há como conservar o “deleite íntimo de amor” deste
momento unitivo senão afastando os possíveis estorvos e turbações. É necessário
afastar as “raposas”, que traduzem “o conjunto de apetites e movimentos
sensitivos” (CB 16,5); deter o vento Bóreas,
o vento muito frio que murcha as flores, e que na alma produz um
semelhante efeito de secura espiritual (CB 17,3)[73]; manter também fora dos umbrais
as “ninfas da Judéia”, ou seja, as imaginações, movimentos e inclinações da
parte inferior da alma (CB 18,4)[74].
Neste
momento de união mais íntima, o Amado vem também nomeado de “Querido” (Carrillo): “Esconde-te, Querido!
Voltando tua face, olhas as montanhas” (CB 19). Trata-se agora de um “diálogo
entre iguais”, ou seja, “entre esposos convertidos não apenas numa só carne,
mas, o que é mais dramático, num só espírito”[75]. Seguindo uma lógica de
inversões, agora é o Amado que poderia exclamar: “Minha amada, as montanhas”[76]. O grande anseio da amada é
recolher o Amado no mais íntimo de si (CB 19,3), ser tocada por ele no âmago de
sua substância, ser penetrada por sua divindade. O que deseja é “conhecer a
Deus pela sua face”, e não pelas costas como Moisés (CB 19,4)[77].
Como
sublinha João da Cruz, para que alma possa atingir o alto estado de perfeição,
que é o matrimônio espiritual, deve estar purificada de todas as imperfeições
(CB 20,5-11)[78], bem como animada de “grande
fortaleza e mui subido amor para que se torne capaz de tão forte e estreito
abraço de Deus” (CB 20,1). O que vigora no estado unitivo é a presença de
“amenas liras”, que traduzem a delicada e suave presença do Amado junto à
amada. Os dissabores cessam e o que se ouve são os deleites do “canto de
sereias” (CB 21,16). A amada está protegida por um “cerco de paz” (CB 21,18).
O matrimônio
espiritual inaugura-se na estrofe 22: “Entrou enfim a Esposa no horto mais
ameno desejado”. Este novo momento expressa uma união que significa
“transformação total no Amado” (CB 22,3)[79]. Dá-se agora uma “certa
consumação de união de amor, em que a alma é feita toda divina, e se torna Deus
por participação, tanto quanto é possível nesta vida” (CB 22,3). Enquanto na
estrofe 17 a amada era o horto que atraía o desejo do Amado, agora é o Amado
que aparece como o horto desejado da amada, em cujos braços ela repousa o “colo
reclinado”[80] Como indica Lima Vaz, a página
central da literatura mística cristã encontra-se na descrição da união divina,
enquanto “união teopática”[81]. Mas não é tarefa fácil captar a
forma como se dá tal união em João da Cruz. A poesia parece mais ousada que a
prosa. Em seus comentários, João da Cruz vai frisar a idéia de união “por
participação”[82], ou então falar de “certa
consumação na união”. Tais considerações amenizam a idéia de uma unitas indistinctionis, típica da
mística presente em autores como Hadewijch de Amberes, Marguerite Porete ou
Mestre Eckhart, entre outros. De acordo com Juan Martín Velasco, mesmo
utilizando imagens pertencentes ao acervo da mística da unitas indistinctionis, como por exemplo “o centro da alma é Deus”[83], João da Cruz mantém com clareza
a idéia de que “a união do matrimônio espiritual não conduz à fusão das
substâncias, mas à conformidade das vontades”[84].
No Cântico,
o horto transforma-se em “locus paradisíaco”
onde acontecerá a união de amor. Sob o pé da macieira, a amada será desposada[85]. É o sublime momento onde o Amado
comunica seus “doces mistérios” (CB 23,1). Nesta estrofe aparece um dêitico que
terá um lugar muito importante na poesia do Cântico. Trata-se do advérbio
demonstrativo “ali”. Este dêitico, que aponta ou mostra, está sempre
relacionado a uma noção de espaço. Como aponta López-Baralt, “foi ali, nesse indeterminado e inominável ali da própria identidade da
protagonista poemática onde se deu o milagre da união transformante”[86].
Na estrofe
24 aparece a bela imagem do “leito florido”, onde a amada receberá do seio do
Amado “a comunicação de seu amor” (CB 24,3). A referencia vem tomada do Cântico
dos Cânticos: “Nosso leito está florido” (Ct 1,16)[87]. É por sua condição nupcial que o
leito encontra-se florido, e as flores expressam “o momento indescritível da
transformação teopática”[88]. É curioso observar que as
flores, antes recusadas (CB 3), tornam-se agora o adorno essencial do leito
amoroso. A mesma amada que recusava colher as flores, viverá a experiência da
união num leito florido. E igualmente sua grinalda será tecida de “flores e
esmeraldas” (CB 30)[89]. O cenário que o poeta apresenta
é marcado por rica atmosfera estética, e toda a criação resplende de brilho e
fulgor[90]. O leito da união mística é um
leito florido, tecido de púrpura e de paz edificado. Está abrigado de todos os
perigos. Assim também a amada, neste momento sublime, encontra-se segura e
defendida, pois animada pelas virtudes dos leões, que são animais de fortaleza
e ousadia (CB 24,4). Está agora “livre de toda perturbação das paixões
naturais, alheia e desprendida do bulício e variedade dos cuidados temporais
(...), goza com segurança e tranqüilidade a participação de Deus” (CB 24,5).
É nos
rastros ou pisadas do Amado que a amada vai aos poucos descobrindo o seu
mistério. Trata-se de um conhecimento “cheio de suavidade” (CB 25,3), e que
imprime na amada uma dinâmica singular, tornando-a “muito ligeira para correr
após o Amado” (CB 25,4). Também Agostinho, nas Confissões, assinala a força motora
dessa presença: “Vamos, agora age, Senhor; agita-nos, convoca-nos, dá-nos logo
tua luz, leva-nos contigo; faze sentir teu calor e tua doçura: depois vamos
todos nos amar, e correr pelos campos”[91]. Para João da Cruz, os caminhos
que levam ao Amado são diversificados. Alguns seguem suas pisadas em obras
exteriores, outros no exercício da interioridade. Neste último caso, as
“visitas íntimas do Amado” podem ocorrer como “toque de centelha” ou na
embriaguez do “temperado vinho” (CB 25, 5-6). O “toque de centelha” vem
caracterizado como um “contato muito sutil” do Amado, que incendeia no coração
o fogo do amor. Mas “a centelha toca a alma e se extingue” (CB 25,8). Já o
“temperado vinho” é um toque diferente, que dura por muito mais tempo. Este
vinho especial vem concedido “às almas já perfeitas” (CB 25,7-8).[92]
No momento
unitivo a amada encontra-se “revestida de Deus” e “banhada de divindade”, e
isto não só no âmbito da superfície, mas “no íntimo do seu espírito” (CB 26,1).
João da Cruz insere de forma rica e poética o matrimônio espiritual no “horto
ameno” (CB 22) e na “adega interior”
(CB 26).[93] É ali na “adega” que acontece a
verdadeira borracheira mística: “Na interior adega, do Amado meu, bebi” (CB 26)[94]. São palavras simples, mas de uma
densidade única. João da Cruz, em seu comentário, indica que é ali nesta adega
interior que Deus se comunica à amada, “com admirável glória, transformando-a
nele” (CB 26,4)[95]. E para expressar o que ali
ocorreu, que é totalmente inefável, a única palavra adequada que a amada encontra
para traduzir algo do mistério experimentado é: “Do Amado meu, bebi” (CB 26,4).
E como
ocorre em qualquer estado de embriaguez ou borracheira, a bebida vai tomando
conta de todas as veias do corpo e a pessoa se transforma. Assim também com a
amada, tomada pelo Amado. Embriagada pela divina comunicação, ela “se
transforma toda em Deus” (CB 26,5).[96] A força da Presença é tal que ao
sair da adega, a amada perde a consciência de tudo: “quando eu saía, por toda
aquela várzea, já nada mais sabia” (CB 26)[97]. Saciada pelo vinho da “altíssima
sabedoria de Deus”, a amada esquece todas as coisas do mundo, e até mesmo o que
antes sabia. Todo o acúmulo de seu saber apaga-se diante daquela “ciência
divina” e sobrenatural (CB 26,13). Este sentimento de “não saber” que acompanha
a união (CB 26,14), foi igualmente experimentado pela esposa do Cântico dos
Cânticos: “E sem o saber, coloquei-me sobre os carros de Aminadib!” (Ct 6,11).
No
misterioso e inespecífico lugar, definido pelo simbólico dêitico ali, o Amado
dá o seio à amada e dita-lhe ciência saborosa (CB 27). Ocorre mais uma vez uma
lógica de inversão, típica do mestre espanhol, que sublinha o lado feminino e
materno do Amado. E a “ciência saborosa” que ele oferece como dom é a própria
teologia mística, entendida como “ciência secreta de Deus” (CB 27,5)[98]. E esta experiência de
intimidade com o Amado não isola a amada
do mundo, mas a lança com força inaudita ao serviço do amor: “pois é somente
amar o meu exercício” (CB 28 e CB 28,2). Também no Cântico dos Cânticos, a
esposa senta-se na deleitosa sombra do Amado, mas logo em seguida, depois de
introduzir-se na sua adega, vê desfraldada diante de si a bandeira do amor (Ct
2,3-4). Na realidade, a conversio morum
dá seqüência à conversio cordis. Como bem expressou Juan Martin Velasco, o
estado teopático, enquanto etapa derradeira de realização da experiência
mística, não desloca o sujeito do mundo, mas “o devolve à vida diária que,
recentrada pelo exercício da opção teologal, da experiência da fé, permite-lhe
viver divinamente, com um novo valor, com um novo sentido”[99].
Se para o
olhar superficial a experiência da união pode parecer estranha, como se os
amigos de Deus estivessem “perdidos para aquilo que o mundo aprecia e estima”
(CB 29,5), para estes trata-se de uma entrega ao mais alto amor. Os verdadeiros
amantes não são vistos por aqueles que se fixam e perambulam pela praça, pois
eles superam a dinâmica dos nomes e formas (nama
rupa) que domina a lógica limitada do mundo. O que para uns significa
perda, para os amantes significa ganho. Os enamorados de Deus são como os rios
que perdem seus nomes ao chegar no mar: “andando enamorada, tornei-me perdidiça
e fui ganhada” (CB 29). O único desejo que anima a alma enamorada de Deus é
“perder tudo e a si mesma, voluntariamente, por Deus, e nisto encontra todo o
seu lucro” (CB 29,11).
Numa das
estrofes finais do Cântico Espiritual encontra-se um dos passos mais ousados
utilizados por João da Cruz para expressar a união mística: “Gozemo-nos, Amado,
e vamos ver em tua formosura o monte e o escarpado, donde mana água pura;
entremos inda mais nesta espessura” (CB 36). O místico espanhol retoma sua
magistral lição unitiva por um surpreendente caminho. A amada está agora
transfigurada em pomba e convida o Amado para o gozo mútuo. A autora Luce
López-Baralt, ao analisar esta passagem, sublinha a “valentia literária” de
João da Cruz, que retoma com fidelidade o epitalâmio ebraico, que é certamente
“o poema mais refinadamente erótico da história da humanidade”[100]. A amada convida o seu Querido
para alçar vôo em busca do “monte e o escarpado”, onde poderão adentrar-se na “espessura”. E o convite vem
motivado pelo ardente desejo de engolfar-se e “embrenhar-se mais em seu Deus”
(CB 36,11)[101]. É ali nas “mais subidas
cavernas” que se dará o encontro amoroso, e os amantes poderão sorver “o mosto
das romãs” (CB 37). Para João da Cruz, assim como dos diversos grãos das romãs
sorve-se um mesmo suco, é também das diversas maravilhas de Deus que se dá a
singular fruição e deleite de amor, oferecido pelo Espírito (CB 37,8), ou seja,
“sob a aparente multiplicidade dos grãos da fruta subjaz a absoluta e
indiscutível unidade de Deus, representada pela bebida embriagante”[102].
Na visão do
Cântico dos Cânticos, é também nas “subidas cavernas” que se aninham as rolas.
É nas “fendas da rocha, no esconderijo escarpado” que a esposa convida o Amado
para mostrar o seu rosto (Ct 2,14). É daí que João da Cruz se inspira para
falar de seu misterioso “ali”, que é o lócus
unificado da união amorosa e mística. É ali no mais escondido das cavernas que
se dará a celebração nupcial (CB 37). É ali que o Amado vai desvendar para a
amada o que “sua alma pretendia” (CB 38)[103].
E na “noite
serena” da união mística as únicas testemunhas do fervoroso encontro serão a
brisa e o doce rouxinol (CB 39). A inserção do rouxinol (a doce Filomena) neste
momento culminante do Cântico vem carregada de valor simbólico. É uma ave que
tem longa e rica história na tradição mística cristã, mas também sufi[104]. É um pássaro de canto noturno, e
sua voz “se ouve na primavera, quando já passou o inverno” (CB 39,8) e as
flores se anunciam. Nada mais deleitoso do que poder ouvir esta suave melodia
depois do rigoroso inverno[105]. A amada do Cântico, no
derradeiro momento unitivo, livre de todas a tribulações, “sente-se numa nova
primavera, com liberdade, dilatação e alegria de espírito; aí ouve a doce voz
do Esposo, que é o seu doce rouxinol” (CB 39,8). Partilha agora a presença
duradoura do Amado numa noite que é serena, uma noite mística. Neste sublime momento,
a amada está protegida de todo cerco ameaçador, “profundamente adentrada no
recolhimento interior” (CB 40,2). Está agora “sob o amparo do abraço de Deus”
(CB 40,3).
Conclusão
Não é fácil
abordar a complexidade desta magnífica obra de João da Cruz. As possibilidades
de sua interpretação são inúmeras e diversificadas. O que se buscou fazer aqui
foi apenas uma tentativa de aproximação do tema da busca do Amado, tendo como
referência algumas das estrofes mais importantes do livro. É verdade que não se
trabalhou todas as estrofes, e nem se aprofundou todas as nuances de
compreensão das estrofes analisadas. Foi mais um exercício de apresentação do
tema, temperado com alguns toques de interpretação. O trabalho foi igualmente
marcado por sensibilidade inter-religiosa, de forma a favorecer a leitura de
interlocutores de outras tradições, abrindo o apetite para o aprofundamento na
mística cristã. Sem desconhecer as diferenças que pontuam a identidade e
experiência dos grande místicos nas distintas tradições religiosas, há que
reconhecer, porém, “equivalências ocultas” (Simone Weil) e “semelhança
existencial” (Thomas Merton). E disto não há dúvida.
É
impressionante o vigor e criatividade da reflexão de João da Cruz. São mais de
460 anos que separam o seu nascimento do momento atual. E sua obra continua a
suscitar interesse e paixão. Os dados estatísticos apontam mais de 5.000
estudos publicados sobre João da Cruz ao longo do século XX[106]. E não é só questão de interesse
acadêmico. É uma obra que aponta caminhos e luzes na trajetória de crescimento
espiritual. Como indicou Collin
Thompson, João da Cruz é um autor que continua “contemporâneo” e permanece
inspirando a reflexão por sua aguda e penetrante visão[107].
Dentre as
inúmeras riquezas presentes na obra de João da Cruz, e em particular no Cântico
Espiritual, vale assinalar sua abertura ao mundo, sua sensibilidade estética e
sua delicadeza e cortesia para com todos os elementos da criação. É assombrosa
sua capacidade poética de abrir os olhos dos leitores para a beleza da
natureza, para a maravilha inaugural de suas nuances; mas também para as
paisagens interiores. É também contagiante sua liberdade de reflexão, sua
ousadia de avançar para além dos exoterismos instituídos e relativizar as
mediações humanas; uma liberdade que alonga as cordas sem quebrar o valor da
domiciliação identitária. É um mistico que coloca o leitor diante de um Deus
que é permanente surpresa, um Deus que é movimento e abertura.
Ao abordar
no Cântico Espiritual o progresso espiritual como um “itinerário do sujeito em
direção ao centro de si mesmo”, João da Cruz aponta para uma experiência
“análoga à dos mais audaciosos dos seus contemporâneos”. É o que revela a
lúcida análise de Michel de Certeau. Assim como Descartes em seu Discurso do Método busca “reconstruir a
ordem dum universo a partir duma perceptio
do infinito do eu”, assim também os grandes autores espirituais dos séculos XVI
e XVII. Eles são igualmente “inspirados pelo mesmo problema radical (o do
sujeito) e guiados pelos mesmos critérios (experiências que assinalam o
processo duma descoberta pessoal)”[108].
Quando se acompanha
a protagonista do Cântico em seu processo de descoberta pessoal, constata-se
igualmente a impressionante percepção de que no fundo do eu habita um Outro, e
que ele buscou a amada muito antes dela empreender sua jornada em sua direção[109]. A tradução viva desta gratuidade
do amor do Amado talvez seja a razão mais misteriosa da sedução de João da
Cruz. Numa de suas obras mais clássicas, Simone Weil tinha assinalado que a
amizade dos amigos de Deus é o que mantém viva a intensidade da mirada em Deus[110]. E para ela, João da Cruz foi um
desses “amigos de Deus”. O que a ela mais impressionava no místico espanhol era
sua sensibilidade ao mundo, seus formosos versos sobre a “beleza do mundo”. E
lamentava que este traço estava “quase ausente na tradição cristã”. Para ela, a
grande aporia do cristianismo era reconhecer-se, de direito, católico, mas
afastar de si as riquezas do universo[111].
A leitura de João da Cruz favorece sempre a abertura,
transmite para os leitores uma atmosfera estética de largueza, de
transparência, de gratuidade, sensibilidade, sabor e perfume. Sua poesia
sobreviveu à obscuridade da prisão, às resistências institucionais e ao clima
da inquisição. Não há rastros deste clima em sua poesia livre. Num tempo
marcado por representações sombrias de Deus, da irrupção do medo e da
culpabilidade, João da Cruz quebra esta barreira apresentando uma imagem de
Deus diferente, de um Deus amoroso e benevolente, um Deus cheio de graça e
beleza, um Deus rico de futuro.
(Publicado no livro: Faustino TEIXEIRA (Org). Nas teias de delicadeza. São Paulo:
Paulinas, 2006, pp. 57-101)
[1]
Octávio PAZ. Poesía de soledad y poesia de comunión. In: Las peras del olmo. México: UNAM, 1957, p. 103.
[2]
Apud Damaso ALONSO. La poesia di san
Giovanni della Croce. 3 ed. Roma:
Abete, 1958, p. 11; Colin P. THOMPSON. Canciones
en la noche. Estúdio sobre san Juan de la Cruz. Madrid: Trotta, p. 35.
[3]
Damaso ALONSO. La poesia di san Giovanni
della Croce, pp. 11-12.
[4]
Eulogio PACHO. Cântico espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz.
Burgos: Monte Carmelo, 2000, p. 246.
[5]
João da Cruz nasceu no ano de 1542, em Fontiveros (Ávila) e morreu em dezembro
de 1591, em Ubeda. O seu nome de família era Juan de Yepes. Teve uma infância
muito pobre. Seu pai, que era tecelão, morreu cedo (1545) e sua mãe teve que
assumir o cuidado da família. João da Cruz estudou com os jesuítas a partir de
1559. Em 1563 ingressa no convento carmelita, atraído pelo espírito
contemplativo da ordem. Assume então o nome religioso de Juan de san Matias.
Segue depois seus estudos de filosofia e teologia em Salamanca (1564-1567). O
decisivo encontro com Teresa de Ávila ocorrerá no final de 1567, quando então encontra
uma luz para a insatisfação vocacional que o dominava no período. Com Teresa,
27 anos mais velha do que ele, insere-se no projeto de reforma do Carmelo, e
inaugura em novembro de 1568 em Duruelo (Ávila) a primeira fundação masculina
do Carmelo Teresiano. É quando então assume o nome religioso que o fez
conhecido universalmente: Juan de la Cruz (João da Cruz).
[6]
TERESA DE JESUS. Fundações 3,17. Obras
completas. 2 ed. São Paulo: Carmelitanas/Loyola, 2002, p. 609.
[7]
Teresa de Ávila, em fragmento de uma carta mutilada (escrita a Gracián, 1578),
descreve as condições do cárcere. Chegara a escrever para Felipe II,
assinalando que João da Cruz estaria melhor entre os mouros, que dele teriam
mais piedade: Jean BARUZI. San Juan de la
Cruz y el problema de la experiencia mística.2 ed. Valladolid: Junta de Castilla y Leon, 2001, pp. 207-208.
[8]
Eulogio PACHO. San Juan de la Cruz.
Historia de sus escritos. Burgos: Monte Carmelo, 1998, p. 106.
[9]
Eulogio PACHO. Cántico espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, pp.
245-246; Eulogio PACHO. San Juan de la
Cruz. Historia de sus escritos, pp. 100-111; Federico RUIZ. Místico e mestre São João da Cruz.
Petrópolis: Vozes, 1995, pp. 27-30; A
poesia mística de San Juan de la Cruz. São Paulo: Cultrix, 1984, pp. 11-13;
Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche,
p. 81.
[10]
Federico RUIZ. Místico e mestre São João
da Cruz, p. 29. E o mesmo autor sublinha: “em condições de estreitamento,
obscuridade, paralisia, odor repugnante, ´numa tumba`, compôs o poema com maior
sensação de espaço largo, paisagem, movimento, perfume, da poesia espanhola”:
Apud Ciro GARCIA. Hombre. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p.743; María del Sagrario
ROLLÁN. Hermosura. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario
de San Juan de la Cruz, p. 730. João da Cruz conseguirá escapar da prisão
em agosto de 1578 e receberá acolhida no convento das carmelitas descalças.
[11]
Conforme Jean Baruzzi, esta 11ª estrofe será incluída na edição de Roma (1627):
Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el
problema de la experiencia mística, pp. 62-63.
[12]
Eulogio PACHO. San Juan de la Cruz.
Historia de sus escritos, p.187. A superiora das carmelitas de Beas, Ana de
Jesús (1582-1621), chegou a pedir formalmente a João da Cruz a redação de um comentário
completo sobre o Cântico. A ela João da Cruz destinou o Cântico Espiritual,
cujo titulo original parece ter sido: “Librico
de las canciones de la Esposa”. Ana de Jesús era uma mulher de grande
beleza, e exerceu um importante papel na
Reforma do Carmelo. Como João da Cruz, viveu fortes experiências místicas, mas
infelizmente nada deixou escrito a propósito. Cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible. San Juan de la
Cruz canta al éxtasis transformante. Madrid: Trotta, 1998, pp. 14 e 21.
[13]
Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el
problema de la experiencia mística, p. 300 e 301. Para Baruzi, “João da
Cruz experimentou um êxtase que não é freqüente no misticismo católico e que
constitui uma tenaz adesão à beleza cósmica”: Ibidem, p. 298.
[14]
Eulogio PACHO. San Juan de la Cruz.
Historia de sus escritos, p. 187.
[15]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 31. Uma posição que é partilhada por Eulógio Pacho: Cántico Espiritual. In:
Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 247. Para este autor, a experiência
radical vivida por João da Cruz vem melhor traduzida no poema. O comentário, a
seu ver, acaba encolhendo ou reduzindo a amplitude da experiência “captada”
pela poesia. É o limite da linguagem denotativa, “colocada em razão”. Daí ter
João da Cruz assinalado que sua interpretação nos comentários não pode ser
tomada como exaustiva ou definitiva: Ibidem, p. 253.
[16]
Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche,
pp. 215 e 167.
[17]
Ibidem, p. 314.
[18]
Ibidem, p. 314.
[19]
Eulogio PACHO. Cántico espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p.
249.
[20]
José Angel VALENTE. Noticia incierta. Apud Teodoro POLO. San Juan de la Cruz: la fuerza de un decir... Madrid: Editorial de
espiritualidad, 1993, p. 116.
[21]
Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el
problema de la experiencia mística, p. 617.
[22]
Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche,
p. 153. Ver também Luce López-Baralt. San
Juan de la Cruz y el Islam. Madrid: Hiperión, 1990, pp. 33-53; Id. Poesia
sanjuanista. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario
de San Juan de la Cruz, p. 1183. Mas não se pode excluir igualmente, como
vem mostrando Luce López-Baralt, uma influência literária da espiritualidade
sufi sobre a obra de João da Cruz: Asedios
a lo indecible, p. 17; Abū-l-Hasan al-Nūrī de Bagad. Moradas de los corazones. Madrid: Trotta, 1999, p. 51 (estúdio
introductorio de Luce López-Baralt).
[23]
Henrique Cláudio de Lima VAZ. Experiência
mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000, p. 72,
n. 136.
[24]
SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras completas.
Petrópolis: Vozes, 1988, p. 575 (Prólogo 1). Para o presente artigo seguiremos
esta tradução. Para o poema seguiremos também duas outras traduções, de Marco
LUCCHESI e Dora Ferreira da SILVA. Cf. Juan
de la Cruz. Pequena antologia amorosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000
(tradução e apresentação de Marco Lucchesi) e A poesia mística de San Juan de la Cruz. São Paulo: Cultrix, 1984
(tradução de Dora Ferreira da Silva). Para a edição espanhola, que será também
cotejada, cf. San Juan de la Cruz.
Obra Completa 2. Madrid: Alianza Editorial, 2003 (Edición de Luce López-Baralt
y Eulogio Pacho). No corpo do texto as citações de João da Cruz virão
acompanhadas da referencia em parêntesis, sigladas com CB.
[25]
A estudiosa Luce López-Baralt vem se dedicando a trabalhar esta questão dos
dislates em João da Cruz, e seus paralelos com os šatt dos místicos muçulmanos,
ou seja, os ditos emitidos sob os desconcertantes efeitos do transe amoroso.
Cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo
indecible, p. 29; Id. San Juan de la
Cruz y el Islam. Madrid: Hiperión, 1990,
pp. 200-202.
[26]
Prólogo 2. O conceito de “teologia mística” remonta a Pseudo Dionísio, o
Areopagita. Trata-se de um “terminus
technicus” para indicar não um tipo particular de experiência, mas “o
conhecimento (ou melhor supra-conhecimento) que diz respeito ao mistério de
Deus em si”: Bernard McGINN. Storia della
mística cristiana in occidente. Le origini (I-V secolo). Genova: Marietti,
1997, p. 231. Para Luis Aróstegui, a forma adjetival místico-mística em João da
Cruz, vem expressar um “conhecimento experiencial” e “uma vivencia de amor”. E
isto porque “a sabedoria mística ´é por amor` (CB Prólogo 2)”: Experiencia
mística. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario
de San Juan de la Cruz, p. 592.
[27]
Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche,
p. 196. Este autor toma o exemplo da relação entre os reis magos e os pastores
para clarear a distinção entre o conhecimento e o amor. Enquanto os reis magos
são movidos por uma busca intelectual, o estudo das estrelas, os pastores são
atraídos pela maravilha e o amor. Citando o poema de Sidney Godolphin, Thompson
indica que os sábios, superando todas as vias do conhecimento, entregam-se, ao
final, à experiência da maravilha dos pastores: Ibidem, p. 196-197.
[28]
Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche,
p. 301. Em sua reflexão, Thompson mostra que é incorreto supor que para João da
Cruz todos os buscadores seguem, necessariamente, uma mesma linha retilínia de a a
b, livre de curvas ou variações.
[29]
Eulogio PACHO. Desposorio espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p.
410; Id. Matrimonio espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 929; Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 202.
[30]
Assim que a Amada progredir em seu caminho espiritual vai querer romper “a
tela” do doce encontro, ou seja, em perspectiva distinta de Moisés, vai querer
“conhecer a Deus pela sua face” (CB 19,4), pedir sua “clara presença e visão de
sua divina essencia” (CB 1,4). Trata-se de uma grande ousadia da amada, já que
Moisés foi sempre o modelo para os contemplativos, por sua relação íntima com
Deus. Mas esteve sempre relacionado com a visão indireta de Deus. Não há como
ver aqui uma ressonância do Cântico dos
Cânticos: “Minha rola, que moras nas fendas da rocha, no esconderijo escarpado,
mostra-me o teu rosto...” (Ct 2,14).
[31]
Na primeira Canção da Chama viva do amor, João da Cruz também afirma com vigor:
“O centro da alma é Deus” (Ch 1,12).
[32]
É bem significativa esta imagem da “saída” da amada em busca do objeto de seu
desejo. Também o Cântico dos Cânticos expressa semelhante idéia quando diz:
“Levanta-te minha amada, minha bela, e vem!” (Ct 2,13). Toda busca mística se
inicia com uma saída. No caso revelador do Cântico Espiritual, trata-se de uma
saída para dentro, para o fundo. Trata-se de “um surpreendente regresso à
própria ipseidade” Cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios
a lo indecible, p. 33. O titulo do diário de um dos grandes buscadores
espirituais do século XX, Henri le Saux, traduz de forma muito rica a mesma
idéia: “La montée au fond du coeur” (a subida no fundo do coração).
[33]
Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el
problema de la experiencia mística, p. 665. Sobre a conclusão apressada que
alguns estudiosos ou autores podem chegar sobre a imagem negativa da criação em
João da Cruz, Colin Thompson adverte: “As criaturas assumirão, em seu devido
tempo, o lugar que corresponde como objetos livres e independentes, e no final
do caminho se afirmarão em toda a sua variedade e beleza”: Canciones en la noche, p. 262. Isto já acontecerá no Cântico
Espiritual, no momento unitivo, mas sobretudo na Chama de amor viva: a idéia de
que todos os seres criados “desvendam à alma as belezas próprias de cada um
deles, bem como suas virtudes, encantos e graças, e a raiz de sua duração e
vida”. Estes seres têm “em Deus sua vida, força e duração” (Ch 4,5).
[34]
Giuseppe SCATTOLIN. Esperienze mistiche
nell´islam. I primi tre secoli. Bologna: EMI, 1994, p. 63; Ibn ´ARABI. Les soufis d´Andalousie. Suivi de la vie
merveilleuse de Dhū-L-Nūn l´égyptien. Paris: Albin Michel, 1995, p. 265.
[35]
Bernardo di CHIARAVALLE. Sermoni sul
Cântico dei Cantici. v.2. Roma: Vivere in, 1996, p. 49.
[36]
Nas diversas tradições místicas é clássico este tema da dor relacionada à separação
do Amado. Na abertura do conhecido Mathnawī
de Rūmī (séc. XIII dC) está presente o tema do lamento da flauta de bambu, que
se queixa do seu desterro: “Desde que me separaram de minha raiz, minhas notas
queixosas arrancam lágrimas de homens e mulheres”: Djalāl-od-Dīn RŪMĪ. Mathnawī. La quête de l´absolu. Paris:
Rocher, 1990, p. 53.
[37]
Como sublinha Colin Thompson, “as feridas sofridas pela alma são ´feridas de
amor` (C1,17), como flechas de fogo cravadas na alma, mas que trazem prazer por
acender o desejo de Deus”: Canciones en
la noche, p. 219. Este autor faz uma brilhante exegese das cinco primeiras
estrofes do Cântico: cf. Ibidem, pp. 217ss.
[38]
Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche,
p. 220.
[39]
Pastores que João da Cruz identifica com os “próprios desejos, afetos e
gemidos” (CB 2,2).
[40]
Na Subida do Monte Carmelo, João da Cruz indica que é a concentração em Deus
que possibilita o ardor e o vigor da virtude. E compara com as essências
aromáticas, que quando expostas ao ar “se evaporam gradualmente, perdendo a
fragrância e a força do perfume” (S 1,10,1).
[41]
O desafio do desapego aparecerá em outros momentos da obra de João da Cruz,
como na Subida do Monte Carmelo. Em sua explicação assinala: “Enquanto houver
apego a alguma coisa, por mínima que seja, é escusado poder progredir a alma na
perfeição” (S1,11,4). E exemplifica com a imagem do pássaro amarrado por um fio
grosso ou fino: “Verdade é que quanto mais tênue for o fio, mais fácil será de
se partir. Mas, por frágil que seja, o pássaro estará sempre retido por ele
enquanto não o quebrar para alçar vôo”. Em seu curto tratado sobre o
despreendimento, Mestre Eckhart (1260-1327) fala algo semelhante: “A melhor
tabuleta para escrever é aquela em que não há nada escrito. Da mesma maneira,
precisa sair de meu coração tudo que possa se chamar isto ou aquilo, para que
Deus possa escrever o máximo nele, e o mesmo se dá com o coração desprendido”:
Mestre ECKHART. Sobre o desprendimento.
São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 21.
[42]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 36.
[43]
Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche,
p. 222. João da Cruz identifica, assim, o “prado de verduras” com o céu, pois
“as coisas nele criadas estão sempre com um verdor imarcessível; não fenecem
nem murcham com o tempo” (CB 4,4). Esta imagem de um céu verde, como lembra
López-Baralt, não é estranha aos árabes e à tradição sufi, em “cujos códigos
literários místicos o verde simbolizava sempre a mais alta espiritualidade”. Na
raiz trilítera árabe, kh-d-r, estão envolvidas tanto a noção de verde como a de
céu e paraiso: Asedios a lo indecible,
p. 37
[44]
Nas Confissões, Agostinho sublinha que a natureza responde à sua pergunta sobre
“quem é Deus ?” com a sua própria beleza. Em nota, o tradutor da edição
brasileira esclarece que Agostinho “não sentiu apenas a Beleza, não a revelou
apenas na sua arte literária e na sua teologia tão profunda e exuberante, mas
foi também o filósofo que investigou e admirou no mundo as imagens coloridas do
Supremo Ser”: Santo Agostinho. Confissões.
São Paulo: Abril, 1973, p. 199 (Confissões X, 6).
[45]
É sugestivo verificar como esta sexta estrofe do Cântico servirá para conformar
a estrofe 11, que estava ausente no Cântico A. Este tema já estava presente na
mística sufi, e de forma muito clara em Rābi´a al-´Adawiyya (séc. IX dC). Entre
os ditos desta “malata di Dio”
atribui-se um muito significativo. Ao ser indagada pela razão de seu permanente
pranto ela teria respondido: “A doença da qual lamento é de tal sorte que
nenhum médico pode curá-la. O seu único remédio é a visão de Deus”: Giuseppe
SCATOLLIN. Esperienze mistiche nell´islam,
p. 50. Ver ainda: I detti di Rābi´a.
Milano: Adelphi, 1979, p. 32.
[46]
João da Cruz mostra em seu comentário da estrofe 7 (em particular 7,9) toda a
profundidade de uma teologia apofática: “os que conhecem a Deus mais de perto
entendem mais distintamente o infinito que lhes fica por conhecer” (CB 7,9). Na
“subida experiência” da amada fica reforçada a convicção “de ficar tudo por
entender”. Em outro poema João da Cruz expressou esta idéia de forma magnífica:
“O que ali chega deveras de si mesmo desfalece; o que sabia primeiro muito
pouco lhe parece e sua ciência tanto cresce que nada fica sabendo, toda ciência
transcendendo”: A poesia mística de san
Juan de la Cruz, p. 79 (Entrei onde não sabia).
[47]
Um tema muito presente na mística sufi persa é o “morrer antes de morrer”.
Trata-se de uma condição fundamental para o renascimento espiritual. Cf. Rūmī. Mathnawī IV, 2271, 2272 e 1372. Ver
também: Nizami. Layla & Majnun.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 110.
[48]
Em outro momento do Cântico, João da Cruz assinala que a amada quando está
enamorada não consegue livrar-se do desejo de ver o Amado. Diz que o Senhor faz
com a amada algo semelhante ao que ocorre entre aqueles que jogam água na
fornalha, “para que cresça e se inflame mais o fogo” (CB 11,1).
[49]
Rūmī fala algo semelhante: “Se meu Amado apenas me tocasse com seus lábios,
também eu, como a flauta, romperia em melodias”: Mathnawī (prólogo).
[50]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 41.
[51]
Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el
problema de la experiencia mística, p. 63.
[52]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 42.
[53]
Farid ud-Din ATTAR. A linguagem dos
pássaros. 2 ed. São Paulo: Attar, 1991, p. 231.
[54]
Há que recordar que na tradição semítica a idéia de fonte está relacionada com
o olhar: a fonte como um olho-d´água. O vocábulo hebreu ´ayin designa tanto olho como fonte. E igualmente o vocábulo árabe:
´ayn (que também expressa a idéia de
identidade, substância ou individualidade): cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, pp. 45 e 49;
R.Laird HARRIS & Gleason L.ARCHER Jr & Bruce K. WALTKE. Dicionário Internacional de Teologia do
Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2001, pp. 1109-1110.
[55]
A expressão subhānī aparece
juntamente com outra clássica do sufismo, Anā´l-Haqq
(Eu sou a verdade) – do místico Hallaj (sécs. IX e X dC) – como a mais
célebre e audaciosa expressão de toda a mística islâmica. São palavras que
ilustram de forma bem clara o fenômeno conhecido como šatt: a “descida” do
divino sobre o humano: Les dits de
Bistami. Paris: Fayard, 1989, p. 189 n. 15. Em um de seus ditos Bistami
assim se expressa: “Louve a mim, louve a mim! Eu sou o meu Senhor, o
Altíssimo”: Ibidem, p. 44 (dito 35).
[56]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 50-51.
[57]
João da Cruz explica que a “substância encerrada na fé”, que ele compara ao
ouro, está ainda “vestida e encoberta com a prata da fé”. Neste tempo da
história, o “véu” do encobrimento impede a manifestação explícita do “ouro dos
raios divinos” (CB 12,4). A pista vem
encontrada em Ct 1,11: “Faremos para ti brincos de ouro com filigranas de
prata”. A esposa do Cântico, que ansiava pela posse do Amado, recebe de Deus a
promessa “de que lhe daria tanto quanto fosse possível nesta vida” (CB 12,4).
[58]
Não é sem razão que Durkheim, num outro registro de análise, tenha mostrado com
pertinência a força dinamogênica da religião. Em sua visão, “o fiel que
comungou com seu Deus (...) sente em si força maior para suportar as
dificuldades da existência e para vencê-las. Está como que elevado acima das
misérias humanas, porque está elevado acima de sua condição de homem (...)”:
Émile DURKHEIM. As formas elementares da
vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 493 (Conclusão).
[59]
Não é simples captar no poema a identidade da amada. Como mostra López-Baralt,
“ela oscila entre não ter corpo, ser pomba, retornar a um corpo humano e voltar
a ser pomba (...). Estamos diante de um poema que canta “vividuras” à margem do tempo e do espaço, e sobre tudo, à margem do
pesado lastro da matéria física”: Asedios
a lo indecible, p. 98.
[60]
E João da Cruz acrescente em seu comentário: “O grande tormento, pois, que
sente a alma na ocasião de visitas dessa espécie, e o extremo pavor que causa
essa comunicação por via sobrenatural, levam-na a dizer: Aparta-as, meu Amado”
(CB 13,4). No livro do Corão se diz que o crente verdadeiro já se estremece
quando defrontado com o nome de Deus (C 8,2).
[61]
Como mostra López-Baralt, o Amado repete à sua amada uma impossível ordem: “volte-se para mim e
longe de mim”. E indica que “só no contexto de um qalb (coração) protéico e com capacidade de movimentos invertidos o
desconcerto de tais deslocamentos, que tão bem souberam explorar os sufis, pode
ser suavizado”: Asedios a lo indecible,
p. 61.
[62]
Ernesto CARDENAL. Vida en el amor. 2
ed. Madrid: Trotta, 2001, p. 28. Segundo Baruzi, para compreender a “espinha
dorsal do sistema” de João da Cruz é necessário dar-se conta, que Deus “está
mais além de todas as nossas maneiras de ser, e entretanto encontra-se em nós
mesmos”. Mas para encontrá-lo há que “recuperar essa Luz interior” que habita
todo o humano e saber renunciar a tudo o que não seja ela. Cf. Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la
experiencia mística, p. 609.
[63]
CB 14-15. A frase inicial da estrofe 14 acabou sendo traduzida de forma
imprecisa na tradução brasileira das obras completas de João da Cruz, publicada
pela editora Vozes. Contrariando a lógica do poema acabou-se de introduzindo um
verbo que desfigura os versos misteriosos do poeta: “No Amado acho as
montanhas”. A omissão do verbo é intencional no autor, e traduz um nítido
influxo semítico.
[64]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 71. Para a autora, “este conjunto de liras
produz um efeito de melodia, de um mantra, de um conjuro ou feitiço
encantatório: são João, como muitos séculos mais tarde Rimbaud, logra conjurar
o leitor com o ritmo hipnótico de sua magia acústica”: Ibidem, p. 71. Com o
recurso de símbolos e técnicas que são impressionistas, ou mesmo surrealistas,
João da Cruz “parece antecipar a ruptura do século XX com as pautas narrativas
e poéticas tradicionais e fomentar assim um caráter aberto a múltiplas
interpretações”: Colin THOMPSON. Canciones
en la noche, p. 369.
[65]
Luce LÓPEZ-BARALT. San Juan de la Cruz y
el islam, p. 23. A autora fala no estabelecimento de uma “poética do
delírio”: ibidem, p. 52.
[66]
Michel DE CERTEAU. La fable mystique
1. Paris: Gallimard, 1982, p. 195. O que ocorre, segundo este autor, é um
“destacamento da língua de seu funcionamento natural para a modelar sobre a
paixão dos sujeitos locutores”. Ver também: Teodoro POLO. San Juan de la Cruz: la fuerza de un decir..., pp. 98-103.
[67]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 72.
[68]
Chama viva de amor 3,48. SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras
completas, p. 899.
[69]
E como sublinha López-Baralt, este estado transformante é algo bem distinto do
panteísmo, ao qual jamais cede João da Cruz: Asedios a lo indecible, p. 75.
[70]
Ver ainda, Chama viva de amor 4,6.
[71]
Para João da Cruz, a noite “torna-se um símbolo intraduzível, capaz de gerar
novas situações e emoções que se captam
paulatinamente”. Ela pode ser ambiente, guia, mediadora etc. É um símbolo que
vem atraído “para a esfera de amar: noche
amable. Sugere-se uma equação de noite e amor”: Leo SPITZER. Três poemas sobre o êxtase. São Paulo:
Cosac & Naify, 2003, p. 68. É importante também sublinhar o significado de
símbolo. Diferentemente da alegoria, “um símbolo quase nunca se realiza em sua
essência. Para que se dê um símbolo autêntico, não deve haver correspondência
exata entre os diversos planos da experiência nem estes podem substituir-se
indiferentemente um por outro”: Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p.
338.
[72]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
pp. 80-81.
[73]
E clamar pelo vento Austro, que convoca as chuvas e faz germinar a plantação
Este vento vem comparado à força do Espírito Santo, que “desperta amores” (CB
17,4).
[74]
Uma imagem tomada de Ct 8,4: “Eu vos conjuro mulheres de Jerusalém a que não
perturbeis nem façais despertar a amada”. Como assinala López-Baralt, o “jardim
aromático da alma” deve estar protegido
pela fortaleza amuralhada. E a noção de castelo em árabe, hisn, vem traduzido por fortaleza defendida e matrimônio
espiritual: Asedios a lo indecible,
p. 108. Para João da Cruz, as “distrações” que ameaçam o refúgio psíquico mais
íntimo da amada não podem tocar os seus umbrais. Ela está defendida por um
“muro” protetor.
[75]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 109.
[76]
Ibidem, p. 109. Para López-Baralt, as ações são aqui invertidas, seguindo-se
uma lógica de transformação típica do coração (qalb – taqallub). Se antes era a amada que via o Amado refletido
nas montanhas, agora é o Amado que fixando-se em sua esposa vê as montanhas: “y mira com tu haz a las montañas” (CB
19). Como explica João da Cruz, “o
olhar de Deus é amar”. Por isso a amada
pede a Deus que se “esconda” nela, voltando-se para o seu interior e dela
enamorando-se (CB 19,6).
[77]
Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche,
p. 244.
[78]
E João da Cruz menciona aqui as “digressões da imaginação” (aves ligeiras); as
“acrimônias e ímpetos da potencia irascível (leões); os “atos desordenados”
(montes, vales e ribeiras); as “afeições” da dor, esperança e paixão (águas,
ventos e ardores).
[79]
Segundo Jean Baruzi, o matrimônio espiritual significa em João da Cruz a união
de Deus com a alma (a amada), como união de exclusividade, “à margem de todo
intermediário, sejam anjos, homens, figuras ou formas”: San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p.
636.
[80]
Como indica López-Baralt, quando João da Cruz afirma que a amada penetra no
horto do Amado, quer dizer que “recebe já e partilha em plena transparência a
vida de seu amado”: Asedios a lo
indecible, p. 103.
[81]
Henrique Cláudio de Lima VAZ. Experiência
mística e filosofia na tradição ocidental, p. 72. Trata-se do derradeiro
estado da consciência mística, onde a consciência do eu vem radicalmente
transformada por um processo purificador e afirma-se o sentimento de “viver em
Deus”. Cf. Jean BARUZI. San Juan de la
Cruz y el problema de la experiencia mística, pp. 605ss; Juan Martín
VELASCO. El fenómeno místico, pp.
406-422.
[82]
CB 22,3 e Chama viva de amor, 2,34.
[83]
Chama viva de amor, 1,12.
[84]
Juan Martin VELASCO (Ed.). La experiencia
mística. Estudo interdisciplinar. Madrid: Trotta, 2004, p. 32. Este autor
prefere falar, como outros, em experiência de “imediatez mediada”. Em sua
visão, o que ocorre, na verdade, é que “nem nos momentos supremos termina de
romper-se ´a tela desse doce encontro`”: ibidem, p. 33.
[85]
Vale aqui registrar a entrada da árvore (macieira) e seu significado simbólico.
Trata-se, como mostra João da Cruz, de uma árvore redentora: nela a natureza
humana foi violada (o mito de Adão e Eva), mas também reparada (no madeiro da
cruz) (CB 23,5).
[86]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 85. Este dêitico só aparece no Cântico depois que a amada entra no
horto: “Tu foste ali comigo desposada”,
“Ali te dei a mão” (CB 23) ; “Ali me deu o seio”, “Ali lhe prometi ser sua
esposa” (CB 27); “Ali nós entraremos” (CB 37); “Ali me mostrarias”, “Ali, tu,
vida minha” (CB 38); Ali ninguém olhava” (CB 40).
[87]
Pode-se destacar também a semelhança com o “peito florido”, de que fala João da
Cruz na Noite Escura 6: “Em meu peito florido que, inteiro, para ele só
guardava...”.
[88]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 83.
[89]
Na estrofe 30, João da Cruz sublinha que a grinalda da amada será tecida com as
“flores e esmeraldas” colhidas pelas manhãs no amor do Amado.
[90]
O poeta fala de uma transformação que invade a alma contemplativa, capaz agora
de poder desfrutar no seu íntimo as “flores das montanhas”, “os lírios dos
vales nemorosos”, “as rosas perfumadas das ilhas mais estranhas”, “as açucenas
dos rios sonoros” e o “delicado perfume dos jasmins dos sussurros amorosos” (CB
24,6).
[91]
SANTO AGOSTINHO. As confissões de santo
Agostinho. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 129 (Confissões VIII, 4,9).
[92]
É sugestivo perceber que ao falar do vinho e da “suave embriaguez” para
expressar um “toque” específico do Amado, João da Cruz está trabalhando com um
“código místico estrito”, que é reconhecidamente sufi. Cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 91; A poesia mística de San Juan de la Cruz,
p. 39 (estudo introdutório de Dora Ferreira da Silva). Este tema estará muito
presente entre os místicos sufis, como em geral na poesia persa. Trata-se de um
tema que encontrou resistência tanto na tradição corânica como
zoroastriana. Os elementos, vinho,
amor, musica e apostasia, muito
presentes na poesia persa, eram tidos como mal afamados (bad-nām) na perspectiva do ethos corânico. Mesmo expressamente
proibido, o vinho estava sempre presente, como um importante traço simbólico
para marcar a embriaguez da união com
Deus. Cf. Carlo SACCONE. Il maestro sufi
e la bella cristiana. Roma: Carocci, 2005, pp. 23-24.
[93]
“A celebração do ´matrimônio` coloca-se poeticamente ´na interior adega` e no
“ameno horto desejado` (17 e 27 de CA e 26 e 22 de CB)”: Eulogio PACHO.
Desposorio espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 410.
[94]
João da Cruz retoma uma expressão do Cântico dos Cânticos: “Ele me introduziu
na sua adega, e a sua bandeira sobre mim é o Amor!” (Ct 2,4).
[95]
E aqui João da Cruz exemplifica com as imagens da vidraça que se confunde com
raio de sol que a ilumina, do carvão inflamado e o fogo e da luz das estrelas
com o sol (CB 26,4). Uma imagem que aparece igualmente na obra Noite Escura,
2,10,1: da ação “do fogo material sobre a madeira para transformá-la em si
mesmo”. E trabalha as diversas etapas desta transformação, até o momento em que
a madeira torna-se totalmente seca, depois de inflamada e transformada em fogo.
[96]
Não sem razão, Eulogio Pacho assinala que para João da Cruz a embriaguez
significa uma “graça especial dentro da fenomenologia do amor místico”:
Embriaguez. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario
de San Juan de la Cruz, p. 499. Tanto para são Bernardo de Claraval como
para são Boaventura, “a embriaguez espiritual marca o quarto grau no caminho
para a união com Deus”: Luce LÓPEZ-BARALT. Granadas. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p.
708.
[97]
Igualmente santa Teresa, quando fala da entrada da alma no “aposento do céu
empíreo”, no interior da alma, ao tornar a si perde a capacidade de descrição:
Castelo Interior 6,4,8. In: Obras
completas, p. 528.
[98]
Esta “oferta dadivosa” do Amado encontra analogia na mística sufi com o
conhecimento intuitivo de Deus, a ma´rifa,
formulada pela primeira vez pelo místico egípcio Dhu´n-Num. Numa de suas
celebras palavras disse: “Eu conheci o meu Senhor por meio do meu Senhor, sem o
meu Senhor, jamais haveria conhecido o meu Senhor”: Giuseppe SCATTOLIN. Esperienze mistiche nell´islam, p. 63;
Annemarie SCHIMMEL. Le soufisme ou les
dimensions mystiques del´islam. Paris: Cerf, 1996, pp. 64-69.
[99]
Juan Martin VELASCO. El fenómeno místico,
p. 461.
[100]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p. 111. E esta autora sublinha que a expressão “gozar” no Século de Ouro
expressava justamente o ato de fazer amor. Daí a ousadia de João da Cruz.
[101]
No original a imagem é ainda mais rica: “verse más adentro en su Dios” (CB
36,11). Para João da Cruz adentrar-se na “espessura” traduz “o desejo de uma
penetração divina essencial”: Jean BARUZI. San
Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p. 642.
[102]
Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible,
p.113.
[103]
Nas estrofes 37 e 38 do CB o dêitico ali reaparece três vezes, e isto é bem
simbólico. Na edição brasileira das obras completas o dêitico ali vem omitido
na tradução da estrofe 37. Os tradutores preferiram captar a idéia: “E juntos
entraremos”. No original aparecia: “y alli nos entraremos”. O mesmo ocorreu na
tradução da estrofe 38 feita por Marco Lucchesi, que também omite o dêitico
presente no original: “allí tu, vida mia”.
[104]
É um tema que aparece na obra de são Boaventura, e frei Luis de Granada. Cf.
Eulogio PACHO. Filomena. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 637. E também, largamente,
na tradição sufi. Na literatura mística persa o rouxinol é tido como o “mestre
da palavra poética” (sokhan- dān), o depositário da “linguagem dos pássaros”, o
clássico representante do “místico amante” que, tomado de nostalgia, versa seu
canto em direção à rosa, seu amor impossível. Cf. Farīd al-dīn ´Attār. La rosa
e l´usignuolo. Roma: Carocci, 2003 (a cura de Carlo Saccone).
[105]
No Brasil, o pássaro que canta anunciando a primavera, nas madrugadas e no
anoitecer, é o sabiá. E seu canto é igualmente melancólico e saboroso.
[106]
M. Diego SANCHES. Bibliografia
sistemática de San Juan de la Cruz. Madrid: Editorial de Espiritualidad,
2000; Salvador ROS GARCÍA. La seducción de los místicos Teresa de Jesús y Juan
de la Cruz. In: La mística en el siglo
XXI. Madrid: Trotta, 2002, pp. 203.
[107]
Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche,
p. 14.
[108]
Michel DE CERTEAU. Culturas e espiritualidades. Concilium, n. 9, 1966, pp. 14.15.
[109]
Dizia João da Cruz, na Chama viva de amor: “Primeiramente estejamos certos de
que se a alma busca a Deus, muito mais a procura o seu Amado” (Ch 3,28).
[110]
Simone WEIL. A la espera de Dios.
Madrid: Trotta, 1993, p. 44.
[111]
Simone WEIL. A la espera de Dios.
Madrid: Trotta, 1993, p. 100.
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