O campo religioso brasileiro na ciranda dos
dados
Entrevista com Faustino Teixeira
IHU On-Line – Que mapa religioso se desenha no Brasil a partir dos dados divulgados no
último censo?
Sem dúvida, um mapa marcado por uma diversidade religiosa que se anuncia.
Com respeito ao censo de 2010, algumas tendências se evidenciaram, como a
diminuição dos católicos romanos, que caíram de 73,6% para 64,6% e o
crescimento dos evangélicos, sobretudo pentecostais, que passaram de 15,4% para
22,2%. Numa população de 190,7 milhões de pessoas, os católico-romanos somam
123,2 milhões e os evangélicos 42,2 milhões, dos quais 25,3 milhões de origem
pentecostal. Verificou-se ainda na última década um aumento percentual dos sem
religião, mas um pouco abaixo do esperado, de 7,4% para 8,0% (15,3 milhões). O
país permanece com uma marca cristã, já que 86,8% da declaração de crença do
último censo girou em torno das tradições católica ou evangélica. As outras
tradições religiosas no país ainda são tímidas, em termos numéricos, ainda que
sua influência possa ser maior que a expressa nos simples dados, como no caso
do espiritismo, que apesar de comportar apenas 2,0% da declaração de crença
(3,8 milhões), tem uma ressonância social bem maior no país. As duas grandes
expressões das tradições religiosas afro-brasileiras, a umbanda e o candomblé,
continuam tendo o mesmo registro estatístico do censo anterior, com 0,3% de
declaração de crença (umbanda com 407,3 mil e candomblé com 167,3 mil). As
demais religiosidades permanecem apertadas numa estreita faixa de 2,7%, onde
estão incluídas algumas que começam a despontar com uma presença mais definida:
budismo (243,9 mil), judaísmo (107,3 mil), novas religiões orientais (155,9
mil) e o islamismo (35,1 mil). Há também nesse bloco a presença das tradições
indígenas, cuja declaração de crença envolveu 63 mil pessoas.
IHU On-Line – O que as pessoas esperam das religiões a ponto
de fazerem trânsitos constantes?
De fato, as religiões
funcionam como um dossel protetor, fornecendo significado e sentido para as
pessoas. Como tão bem mostrou Peter Berger, as religiões tem o potencial de
situar ou integrar as experiências limites num quadro de significado,
favorecendo um referencial importante para a construção e manutenção da
identidade. As pessoas realmente transitam em busca de significado para a vida,
e isso pode ser constatado no Brasil. O brasileiro, como diz o clássico
personagem de Guimarães Rosa, gosta de “muita religião” e não se conforma com
uma única parada, pois para ele uma só “é pouca”. Ele precisa ampliar o seu
campo de proteção contra o infortúnio. Os dados dos últimos censos apontam para
essa realidade da experimentação religiosa, mas não se consegue ainda captar
com precisão a declaração de múltipla religiosidade no país. Trata-se de algo muito
comum no Brasil, embora o censo tenha registrado apenas 15,3 mil pessoas que
apontaram para isso. O catolicismo exerce no país o papel de “doador universal”,
ou seja, “o principal celeiro no qual outros credos arregimentam adeptos”
(P.Montero e R.Almeida). Esse trânsito e mobilidade está muito vivo entre os
evangélicos, sobretudo os pentecostais, que circulam pelas denominações que não
param de crescer nas últimas décadas no Brasil. A título de exemplo, em
pesquisa realizada em 1992 pelo Núcleo de Pesquisa do ISER na área
metropolitana do Rio de Janeiro constatou-se a média de criação de cinco novas
igrejas por semana ou uma igreja por dia útil no triênio de 1990-1992. Outra
pesquisa realizada pelo ISER e desenvolvida em 1994 sobre a presença evangélica
no Grande Rio evidenciou que cerca de 70% dos evangélicos daquela região “não
nasceram nem foram criados num lar evangélico”. Ou seja, são fiéis que migraram
de outras tradições religiosas, sobretudo do catolicismo (61%). Esse fenômeno
de experimentação e trânsito religioso é também muito vivo entre aqueles que se
declaram sem religião. Como sabemos, esse grupo de declarantes é composto
sobretudo por pessoas que se desencantaram com suas filiações tradicionais e
encontram-se “desencaixadas”, transitando em busca de vínculos sociais e
espirituais. Para eles, o que conta mais são os “elementos subjetivos”, e de
acordo com o foro íntimo buscam um nicho de sentido que possa responder às suas
expectativas pessoais. Eles se movem como peregrinos do sentido entre as
instâncias nomizadoras. Em recente entrevista concedida ao IHU, a socióloga
Sílvia Fernandes situou muito bem a questão: “Cada vez menos ouvimos a
expressão ´fulano se converteu`, mas é mais comum ouvirmos ´fulano agora é de
tal religião`. Assim, a transitoriedade da adesão religiosa é uma marca desses
tempos”.
IHU On-Line – Em vinte anos, a população católica diminuiu
22%, ou seja, em proporção, a Igreja Católica perdeu mais de um quinto de seus
fiéis. A que se deve este fato, no seu entendimento?
A diminuição da
declaração de crença católica vem se acentuando há mais tempo. Se observarmos
os dados dos últimos censos essa tendência é nítida: 1970 (91,1%), 1980
(89,2%), 1991 (83,3%), 2000 (73,6%) e 2010 (64,6%). E as projeções estatísticas
indicam que até 2030 os católicos terão um índice menor que 50% e em 2040
ocorrerá um empate com o grupo evangélico. Não é tarefa muito simples indicar
as razões que levaram a tal situação. Pode-se aventar a hipótese de que a
estratégia missionária da igreja católica nas últimas décadas tem fissuras
importantes. Verifica-se que o repertório doutrinal mantém-se defasado com
respeito aos sinais dos tempos. Há muita resistência na igreja católico-romana
para atualizar a reflexão e modernizar a postura pastoral em campos que são
nodais como os da atuação na história, no diálogo ecumênico e inter-religioso e
no âmbito da moral. Nota-se um claro enrijecimento da conjuntura eclesiástica
nos últimos trinta e cinco anos, e não há sinais de arejamento eclesial. E é
também curioso constatar como as estratégias realizadas no campo da renovação
carismática católica, com a presença dos padres cantores e uma busca de ação
mais viva na área midiática não surtiram os efeitos desejados. As iniciativas
realizadas revelam-se tímidas diante de outras implementadas pelos evangélicos,
como a marcha para Jesus que se repete anualmente com grande sucesso. Outro
dado intrigante a respeito é a incapacidade dos setores eclesiásticos, no
âmbito católico-romano, de perceberem com clareza a dimensão da crise em curso.
Diante dos dados apresentados, reage-se com ingênuo otimismo. Ou se diz que
aqueles que permanecem católicos são de fato os mais convictos, e que o
catolicismo privilegia não o traço quantitativo, mas qualitativo; ou então
busca-se firmar um outro olhar, sinalizando, na contra mão, a vitalidade do
catolicismo. É o que se verificou com a reação de muitos clérigos diante dos
dados apresentados no último censo. Aos dados do censo do IBGE, buscou-se
contrapor os dados do último censo realizado pelo CERIS a respeito da igreja
católica no Brasil, cobrindo o primeiro semestre de 2011, tendo como referência
o ano de 2010. Segundo os dados do CERIS, o catolicismo no Brasil está “vivo e
vicejante”, e isto vem demonstrado pelo considerável crescimento das vocações
sacerdotais e pelo aumento do número de paróquias no território nacional. O
documento sinaliza que há uma “evolução no número de fiéis” e que “as novas
comunidades religiosas têm também despertado esse reencantamento da fé
católica”. Para quem lê atentamente os dados do censo do IBGE e as reflexões
sociológico-antropológicas que se seguiram, não há como deixar-se de
surpreender com tamanha ingenuidade. Reagindo a tal ocular, o sociólogo e
ex-assessor da CNBB, Pedro Ribeiro de Oliveira – em entrevista ao IHU -,
assinala: “Achar que aumentar o número de paróquias é aumentar a presença da
igreja no mundo é um equívoco, no meu entender, de todo tamanho. E o segundo é
dizer que a igreja está viva porque aumentou o número de padres. A igreja está
mais clerical, porque aumentou o número de padres, mas o número de padres não
representa a vitalidade da igreja. A vitalidade da igreja sempre foi a
atividade dos leigos”. Esta análise de Pedro Oliveira é certeira, e vem de um
perspicaz analista da igreja católica no Brasil. Concordo plenamente com ele
quando diz que a vitalidade de uma igreja se mede por sua capacidade de
congregar as pessoas, de entusiasmar as pessoas no trabalho pastoral. E isto
não se vê hoje com clareza. O que existe é uma igreja que fala para dentro, que
deixa de exercer o seu papel público imprescindível e que perde seu potencial
de contágio evangelizador. Como assinala Pedro, “hoje o que vemos é a força de
atrair para dentro, ou seja, o bom católico é aquele que está na igreja. Isso
aí é o definhamento da instituição”.
IHU On-Line – As
regiões onde o Catolicismo mais decresceu foram naquelas de “recepção de
migrantes”, nas fronteiras agro-minerais do Norte e do Centro-oeste e
nas periferias dos grandes centros urbanos do Sudeste brasileiro.
A que se deve esse fato e como a Igreja Católica atuou para acompanhar tanto a
mobilidade territorial e, principalmente, a mobilidade religiosa?
De fato, é nesses regiões que se verifica a crescente presença
pentecostal. Um olhar atento sobre o gráfico apresentado pelo IBGE, o maior
colorido pentecostal localiza-se nas frentes de ocupação das Regiões
Centro-Oeste e Norte, bem como na linha litorânea das grandes metrópoles do Sudeste,
em particular nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. Em
cidades do Estado do Rio, como Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Belfort Roxo, o
número de evangélicos já superou o número de católicos. Os católicos marcam sua
presença mais decisiva nas Regiões Nordeste, Sul e Estado de Minas Gerais. A
meu ver, a igreja católica tem tido muita dificuldade de entender a dinâmica
desta mobilidade religiosa, estando também carente de instrumentação para
reagir a tal situação. O que alguns documentos da instituição assinalam como
meta essencial da missão católica é “ir ao encontro dos afastados”, contrariando,
de certa forma, a ideia por ela mesma defendida de que a igreja está viva e
atuante. Um dado curioso apontado no
censo do CERIS é a queda acentuada do número de religiosas no Brasil, que
passou de 35.039, em 1961, para 33.386, em 2010. Vale lembrar que as religiosas
tiveram um dos importantes trabalhos na irradiação evangelizadora. A igreja
católica fala em buscar os afastados, mas está movida por um discurso que
muitas vezes não lhes interessa ou motiva. Daí toda a “desafeição” em curso.
Ela que era forte na dinâmica popular, de irradiação criadora no campo e nas
periferias, deixou de incentivar ou apoiar o importante trabalho das
comunidades eclesiais de base, que tinham um alcance evangelizador
significativo. Como se diz com acerto, a igreja católica optou pelos pobres,
mas não levou a sério essa opção, privilegiando um trabalho intestino e
clericalizante. As igrejas se fecharam, muraram suas redondezas, protegeram-se
dos incômodos outros e limitaram o tempo para a acolhida dos pobres e
excluídos. Esse trabalho veio ocupado, com eficácia, pelas igrejas
pentecostais, que atingem rincões inalcançáveis pela atual pastoral católica.
IHU On-Line – Em paralelo, percebe-se que há o crescimento
da população evangélica, que passou de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. O que
isto significa?
Esse pujante crescimento
pentecostal não é um exclusivo fenômeno brasileiro, mas mundial. Como mostrou
Peter Berger em reflexão sobre a dessecularização do mundo, os dois maiores
fenômenos verificados na cena religiosa mundial relacionam-se com a irradiação
islâmica e a explosão pentecostal. A presença pentecostal, sinalizada por
Harvey Cox com a imagem do “fogo do céu”, é um fenômeno impressionante e que
merece dedicada atenção. O seu crescimento no Brasil é mesmo espantoso, embora
se perceba um traço de pulverização, em razão das constantes divisões ocorridas
em seu meio e da criação de novas igrejas a cada momento e nos espaços mais
exíguos. Algumas igrejas pentecostais históricas, como a Assembléia de Deus,
mostram um inaudito vigor, com presença em todos os cantos do país. É a igreja
evangélica de denominação pentecostal mais numerosa, contando hoje com 12,3
milhões de adeptos, seguida pela Congregação Cristã do Brasil, com 2,2 milhões
de fiéis. Não há semelhante registro de presença entre as evangélicas de
missão, com exceção da igreja batista, que congrega 3,7 milhões de adeptos.
Verifica-se, porém, nos últimos anos disputas acirradas por fiéis no âmbito de
algumas pentecostais, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
e a Igreja Mundial do Poder de Deus. Segundo os dados do último censo, a IURD
perdeu 228 mil fiéis na última década, quebrando o ritmo de um crescimento que
era notável nos anos 1990.
IHU On-Line – Como o senhor vê o futuro das religiões no
Brasil, após a divulgação dos dados do Censo?
A meu ver, vamos ter que
nos acostumar com um país cada vez mais pontuado por diversidade religiosa e
também por distintas opções espirituais, religiosas ou não. Saber lidar com
essa pletora de inscrições de sentido constitui um dos grandes desafios desse
novo milênio. A tarefa de encarar a diversidade religiosa como um valor e uma
riqueza é também um repto que se abre para as diversas igrejas cristãs. Nada
mais problemático hoje em dia do que continuar defendendo a precária ideia de
que as outras religiões são destinadas a encontrar o seu acabamento fora de si
mesmas, numa pretensa religião que englobaria em si o domínio da verdade. Nada
menos plausível hoje do que uma tal ideia que, infelizmente, continua viva no
repertório da igreja católica pós-Dominus
Iesus. Gosto muito de uma passagem do Diretório
para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo, de 1993, onde
se diz que os católicos “hão de respeitar com todo o cuidado a fé viva das
outras Igrejas e Comunidades Eclesiais que pregam o Evangelho e hão de
alegrar-se de que a graça de Deus frutifique entre eles” (n. 206). E cada vez
mais acho que uma tal perspectiva de abertura e reconhecimento da dignidade da
diferença deve ser ampliada para as outras tradições religiosas.
IHU On-Line – Como pode ser descrita a “desafeição religiosa”?
Em que consiste? O que ela significa?
Em sua entrevista ao
IHU, Pedro Ribeiro de Oliveira recuperou essa expressão sociológica que se aplica
muito bem aos 15,3 milhões de pessoas que se declararam sem religião no último
censo. É curioso notar que nesse quadro
dos sem religião, os que se declaram ateus ou agnósticos constituem minoria,
respectivamente 615 mil e 124,4 mil declarantes. Grande parte dos sem religião
estão entre aqueles que se desencaixaram de seus antigos laços e mantém sua
religiosidade com os recursos da subjetividade, mais do que com o aporte da
tradição. Há também aqueles que se desafeiçoaram de suas tradições e buscam caminhos
alternativos. É um segmento mais afeito ou disponível às experimentações. Vem
composto por pessoas que transitam entre vários pertencimentos, sempre sedentos
por vínculos sociais e espirituais.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/512819-o-campo-religioso-brasileiro-na-ciranda-dos-dados
(Publicado nas
Entrevistas do Dia do IHU Notícias, de 25/08/2012 e na Revista do IHU sobre o
Censo 2010 – 27 de agosto de 2012)
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