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Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
O meu livro sobre a teologia das religiões
foi publicado em 1995 no Brasil. Só agora sai a bem cuidada tradução espanhola,
totalmente revista e ampliada, na coleção Tempo Axial da editora Abya Ayala,
sob os cuidados do grande amigo José Maria Vigil. Nesses quase dez anos de
reflexão sobre a temática da teologia do pluralismo religioso muitas mudanças
foram ocorrendo em meu coração e novas articulações teóricas foram sendo
gestadas na minha caminhada envolvendo esta questão. Um dos aspectos mais
decisivos para esta mudança, que está em curso, foi o aprofundamento da questão
da irreversibilidade e irrevogabilidade das outras tradições religiosas;
sobretudo o respeito crescente à dignidade da alteridade e a percepção cada vez
mais clara e translúcida do pluralismo religioso de princípio ou de direito.
Não há como manter uma autêntica sensibilidade dialogal e uma honrada abertura
ao outro com perspectivas teológicas acanhadas e inibidoras, que não conseguem
visualizar a alteridade senão enquadrando-a em seu horizonte particular. É o
que tem feito o inclusivismo nos seus vários matizes. Tenho verificado que
mesmo entre os teólogos inclusivistas mais abertos há uma dificuldade muito
grande de acompanhar e captar os desdobramentos necessários que envolvem uma
real acolhida do pluralismo de princípio. São bloqueios arraigados, processados
ao longo de várias décadas de reflexão eclesiológica e cristológica
naturalizadas. Não há muito espaço para questionamentos novidadeiros.
Eu recebi em 2003 uma crítica que me
fez pensar. Em artigo publicado na revista brasileira Tempo e Presença, o
teólogo protestante e amigo, Paulo Ayres Mattos, lamentou a ausência de uma
“teologia das religiões produzida para atender aos desafios do diálogo
inter-religioso em nosso contexto latino-americano” (1). Ele mostrou como as
tentativas de elaboração de uma tal teologia ainda estão presas aos parâmetros
específicos da religião cristã, mesmo que movidas pelas melhores intenções
ecumênicas. Ele cita uma passagem do meu livro sobre a teologia das religiões
onde defendo a legitimidade e a plausibilidade do caminho
empreendido pelos inclusivistas abertos: “um inclusivismo que parte da consciência
do acontecimento cristológico como ponto culminante do evento revelador de Deus
(...).” Mas adverte sobre a necessidade de uma reflexão teológica sobre as
religiões que respeite radicalmente o outro, o diferente, em seu direito de
existir. E indaga: “No encontro ecumênico com o diferente/outro todas as partes
envolvidas no diálogo inter-religioso são desafiadas a se reconhecerem,
aceitarem, e afirmarem suas diferenças religiosas enquanto tais, sempre como
manifestações de diferentes práticas e compreensão de suas relações com o
sagrado, repelindo toda tentativa de se querer reduzir o outro diferente à
semelhança de si mesmo”(2).
Hoje aceito com tranqüilidade esta crítica
movida à minha reflexão e tenho percebido nos meus últimos artigos uma
articulação teórica mais sintonizada com esta abertura plural. Tenho buscado
mostrar em minhas análises o valor imprescindível das convicções religiosas dos
diversos participantes do diálogo inter-religioso, e que tais convicções
fundam-se em experiências autênticas de revelação. Não deixo de apontar o valor
e a riqueza das convicções pessoais, das quais também partilho enquanto
cristão, mas tenho chamado sempre a atenção para o risco de absolutizar o
testemunho particular e universalizá-lo como dado objetivante e necessário para
todos. Como muito bem mostrou o teólogo metodista Wesley Ariarajah, não se pode
usar a confissão cristã sobre a dimensão salvífica de Jesus Cristo como base
para negar outras confissões de fé, que são igualmente sagradas para os seus
adeptos: “por mais verdadeira que seja nossa experiência, por mais convencidos
que estejamos de uma confissão de fé, temos que situá-la como confissão de fé e
não como uma verdade em sentido absoluto”(3). Aqui está a chave da questão: temos que
reconhecer a nossa experiência de fé como um confissão existencial verdadeira e
fundamental para nós cristãos, mas que não pode ser absolutizada como verdade
universal para todos os demais. Outros importantes teólogos cristãos
contemporâneos, como Christian Duquoc e Roger Haight, têm mostrado a
importância essencial do reconhecimento do “direito à diferença”, de se levar
mais a sério aquilo que as religiões têm de mais íntimo, e não simplesmente
indicar que o que elas têm de mais legítimo é o “crístico” que nelas está
escondido. Há que honrar, e com razão, a singularidade e originalidade das
diferentes tradições religiosas.
Hoje concordo plenamento com Roger Haight
sobre a necessidade de um passo necessário para além do exclusivismo e
inclusivismo e a manutenção de um espaço aberto para o senso do mistério
transcendente de Deus. Concordo também com Dupuis, quando fala que nossa
terminologia teológica está eivada de um “vocabulário deletério” com respeito
aos outros. Há que purificar nossa linguagem teológica e trilhar caminhos novos
na reflexão. Se fosse hoje retomar a reflexão de meu livro, diria mais
corretamente que a consciência do acontecimento cristológico é, para os
cristãos, um ponto decisivo do evento revelador de Deus, embora a dinâmica
reveladora atue por outros caminhos que são misteriosos. Não há como negar que
a afirmação que anima nossa fé cristã, de que Deus se revelou em Jesus de forma
decisiva, é um “enunciado de fé”, mas não uma constatação que se
imponha para além de nossa fé professada, como objetivante para todos os crentes
e não crentes(4).
Em sintonia fina com a reflexão de Roger
Haight, estou plenamente de acordo com o valor normativo de Jesus Cristo para a
apropriação cristã da realidade última. Jesus é para os cristãos o “ícone de
Deus” (Geffré), do Deus vivo que é surpresa permanente e que se manifesta
também nas inusitadas veredas da história religiosa da humanidade. A história
do diálogo inter-religioso tem favorecido aos cristãos a percepçao de aspectos
originais e novidadeiros nas diversas formas de sintonia com Deus, o que faz
com que o pluralismo religioso seja percebido como um dado rico e positivo.
Concordo com Haight quando diz que “os cristãos hoje podem relacionar-se com
Jesus como normativo da verdade religiosa acerca de Deus, do mundo e da
existência humana, convictos, ao mesmo tempo, de que também existem outras
mediações religiosas que são verdadeiras e, portanto, normativas”(5). Esta é uma tese
coerente e legítima para quem busca compreender o pluralismo religioso como um
dado de princípio ou de direito. Na verdade, as riquezas da experiência de Deus
vividas e partilhadas no espaço da alteridade são também nutrientes
fundamentais para a ampliação de horizontes religiosos. São experiências
relevantes não apenas para quem as vive, mas também para quem participa da
arriscada mas essencial travessia dialogal.
Notas:
[1] Paulo Ayres MATTOS.
Para uma teologia ecumênica das religiões no Brasil. Tempo e Presença, v.
25, n. 332, Rio de Janeiro, 2003, pp. 12-15 (aqui 14).
[2] Ibidem, p. 15
[3] Wesley ARIARAJAH. La
biblia y las gentes de otras religiones. Santander: Sal Terrae, 1998, p.
114.
[4] Edward SCHILLEBEECKX. Umanità
la storia di Dio. Brescia: Queriniana, 1992, p. 193.
[5] Roger HAIGHT. Jesus,
símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, p. 485.
(Publicado em: http://servicioskoinonia.org/relat/357.htm)
........
E em forma esquemática, registro algumas observações que fiz hoje, dia 28/08/2012, durante a defesa de meu orientando, Rogério Santos Bebber, que defendeu sua dissertação de mestrado sobre o tema do Pluralismo Religioso em Questão: A teologia de Jacques Dupuis e suas repercussões:
A leitura da dissertação e a tomada de consciência da
posição de Jacques Dupuis, e diria também de outros teólogos que se inserem na
mesma perspectiva, lança-nos algumas interrogações sobre o estado atual desse
debate:
a)
A questão do pluralismo de princípio: o que significa levá-lo de fato a sério na
reflexão teológica. Quais os desdobramentos teológicos que ele implica? Quais
os rearranjos que ele suscita no pensamento teológico cristão em âmbitos
importantes como os da cristologia, eclesiologia, missão etc.[1]
b)
A questão de uma presença ainda viva de uma
teologia do acabamento, mesmo em autores mais abertos como Dupuis: em aspectos
precisos de sua reflexão, como em dois que se seguem:
- A
permanência da questão da ordenação
à Igreja ou à revelação judaico cristã (cf. Dupuis. Rumo..., p. 340 e na sua
dissertação, p. 38)
-
A questão da permanência da ideia de constitutividade crística para a
salvação universal (cf. Dupuis, Rumo..., p. 421), ainda que amenizada em Dupuis
com o acréscimo do dado relacional.
·
Não seria essa manutenção uma forma sutil de
manter a teologia do acabamento ?
·
Aqui pode ser aplicada também a advertência
feita por Duquoc em seu livro “O único Cristo”: de que cada fragmento tende
estruturalmente para uma unidade. Em analogia, poderíamos dizer: todas as
religiões, ainda que não saibam disso, têm como seu centro salvífico
constitutivo Jesus Cristo. Isso é complicado. Isso acaba minando a sagrada
dignidade da diversidade em sua extraordinariedade. Não se respeita
suficientemente os fragmentos, sublinha Duquoc, quando a única coisa de valor
que deles se conserva é o seu potencial de se abrir positivamente para aquilo
que ignoram (cf. O único Cristo, p. 168).
·
Há autores, como Roger Haight que fazem um
questionamento a tal perspectiva. Haight mantém a LEGITIMIDADE da compreensão
cristã que remonta a Jesus o "testemunho normativo central da realidade de
Deus". Isto Haight sublinha com firme convicção. Assim como Schillebeeckx,
ele tem o cuidado de sempre colocar diante da sua reflexão a expressão: segundo
a perspectiva cristã; na ótica da visada cristã; segundo os cristãos etc. Isso
é importante para delimitar o campo. (Veja Jesus símbolo de Deus,p.
413*). O que, porém, ele contesta é a objetividade de uma tal afirmação, como
valência universal. Como você deve ter visto no meu livro, Teologia e
pluralismo religioso (p. 127), um dos critérios teológicos estabelecidos
por Haight de aplicação na cristologia diz respeito à "inteligibilidade
para o tempo atual". Há que perguntar em que medida uma defesa da
constitutividade universal de Cristo mantém essa inteligibilidade. Essa é a
questão. Haight busca trabalhar isso nas páginas 464 a 467 de seu livro, e é
bem interessante a sua argumentação. Defende a idéia, que é também de Knitter e
Schillebeeckx, de que a mensagem de Jesus é teocêntrica. É uma mensagem que
sempre reenvia ao mistério do Pai. Discorda do estabelecimento de um NEXO
CAUSAL entre Jesus e a salvação de todos, e para ele isso é fruto de
especulação. Assinala com todas as letras que "a posição constitutiva foi
minada por simples internalização da consciência histórica. As pessoas avaliam
mais profundamente que só Deus opera a salvação, e que a mediação universal de
Jesus não é necessária" (p. 466). Na página seguinte, 467, indica - com
razão -, que "tudo isso é verdade PARA OS CRISTÃOS", mas não pode ser
estendido a todos.
·
Com razão, teólogos como Adolphe Geshé e Andrés
Torres Queiruga, reiteram o dado de que pode haver em nossa teologia a defesa
de um cristocentrismo que não é cristão, e que acaba apagando um dos pontos
mais misteriosos que configuram os “campos de imanência” da tradição cristã,
entre os quais o que assinala a “distância” entre Deus e nós. Como indica
Gesché, “um cristianismo que absolutize o cristianismo (Cristo inclusive) e sua
revelação seria idolatria”. Uma proposta autêntica de diálogo interreligioso,
como mostra Queiruga, implica em séria revisão do cristocentrismo. E sublinha a
presença de determinadas expressões do repertório cristão que só se revelam
plausíveis quando compreendidas como linguagem interna, imediatamente
“confessante”, mas que em verdade são ofensivas com respeito aos outros, à
dignidade da diferença.
[1]
Não se nega os importantes avanços realizados por Dupuis nos campos da
cristologia (por ex. quando sinaliza que Jesus não é o salvador absoluto, mas
que esse atributo só pode ser atribuído à Realidade última – Cf Rumo a uma...,
p. 390). Daí não o caráter de sua plenitude não poder ser definido como
definitivo; e da eclesiologia, quando descarta a defesa da igreja como
sacramento universal da salvação. Ela é sim, para ele, sacramento do reino de Deus,
universalmente presente na história, mas não exerce uma atividade de mediação
universal da graça em favor dos membros das outras tradições religiosas, que
entraram no reino respondendo ao convite de Deus pela fé e pelo amor.
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