A dimensão pedagógica da
espiritualidade
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
“Calado seguirei, não pensarei em nada:
Mas infinito amor dentro do peito abrigo”
(Arthur Rimbaud)
Trata-se
de um instigante desafio buscar captar a dimensão pedagógica da espiritualidade.
A pedagogia diz respeito ao exercício do ensino. É curioso verificar as
inúmeras analogias que acompanham o ato de ensinar. Com base no dicionário
analógico da língua portuguesa, constata-se que esse exercício evoca uma séria
de palavras que são profundamente relacionadas com a espiritualidade. Ensinar é
instruir, nutrir, edificar, guiar, iluminar, orientar, criar, inspirar,
fecundar, polir, limar, lapidar, desbastar, instilar, encaminhar, dilatar os
horizontes, desbravar
. A
espiritualidade tem essa essencial dimensão formadora e edificadora do
indivíduo. Esta é, infelizmente, uma dimensão um pouco esquecida em nosso tempo
marcado pela racionalidade do mercado e da produtividade. No frenético ritmo
das sociedades pós-tradicionais, valores humanos milenares são colocados à
margem, em proveito de outros “valores”, tais como a competição, a
produtividade, o sucesso, o individualismo, a vantagem, o lucro e o consumismo.
Como bem mostrou Madel T. Luz, essa transformação de valores nos campos mais
decisivos do agir e do viver humanos, com o efetivo amparo de poderosos meios
de comunicação, vem provocando uma “situação de incerteza e apreensão quanto ao
como conduzir e o que pensar e sentir em relação a temas básicos como
sexualidade, família, nação, trabalho, futuro como fruto de uma vida planejada
etc.”
.
Não é, portanto, fortuito o atual interesse pelo cuidado e pela
espiritualidade. Ainda que meio olvidada e descuidada nesse tempo atual, a
espiritualidade emerge como um traço necessário e substantivo para a afirmação
do humano. Ela diz respeito ao cultivo de uma dimensão fundamental, que trata
da interioridade do ser humano, e o seu cultivo resulta na “expansão de
vitalidade” e da qualidade da vida. É a espiritualidade que resgata uma
concepção mais fecunda do ser humano, em particular sua dimensão de
profundidade, que foge aos parâmetros transmitidos pela cultura dominante. Em
texto iluminador, Leonardo Boff assinala:
“
A singularidade do ser
humano consiste em experimentar a sua própria profundidade. Auscultando a si
mesmo percebe que emergem de seu profundo apelos de compaixão, de amorização e
de identificação com os outros e com o grande Outro, Deus. Dá-se conta de uma
Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a
vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as
significações últimas da vida. Trata-se de uma energia originária, com o mesmo
direito de cidadania que outras energias, como a sexual, a emocional e a
intelectual. Pertence ao processo de individuação acolher essa energia, criar
espaço para esse Centro e auscultar estes apelos, integrando-os ao projeto de
vida. É a espiritualidade no seu sentido antropológico de base”.
A
espiritualidade traduz um modo de ser, uma atitude essencial que acompanha o
ser humano em cada passo de seu cotidiano. Ela expressa uma energia que é comum
a todos, independente de crença religiosa, visibilizando a dimensão de
profundidade da própria condição humana.
Mística e Espiritualidade
Esses
dois termos estão intimamente relacionados. A mística pode ser entendida como
“a experiência suprema da realidade” e a espiritualidade como o caminho para
alcançar esta experiência
. A
espiritualidade, como bem sinalizou Raimon Panikkar, é “o caminho da vida”. Há
que desbastar estas palavras que se encontram hoje tão desgastadas ou
incompreendidas e revelar o seu significado preciso. Não há como desvencilhar o
ser humano da mística, pois essa é uma dimensão antropológica fundamental,
compondo o repertório existencial de todo vivente. Na verdade, a mística é a
“experiência integral da vida” ou da realidade. A realidade vem aqui entendida
como um símbolo para expressar o “Todo”, o
to
holon de que falam os gregos. Trata-se de uma expressão mais neutra e de
amplitude ecumênica, capaz de uma abrangência maior do que a traduzida por
“experiência de Deus”, como o que ocorre nos ambientes monoteístas. A mística,
entendida como experiência da realidade, vai ser
diversificadamente interpretada, conforme a
angulação de cada um. Para alguns será a experiência de Deus, para outros, do
“Todo”, do “Nada”, do “Ser”, e assim por diante. Na visão de Panikkar, que se
dedicou com afinco ao tema, a experiência mística é
“a experiência integral da
realidade. Se a realidade identifica-se com Deus, será experiência de Deus; se
esta realidade é vista como trinitária, será experiência cosmoteândrica; se é
vista como vazia, será experiência da vacuidade. Em cada caso é, de qualquer
modo, a experiência do ´Todo`. Desaparece assim a marca de uma mística que se perde
no alto dos céus, desencarnada e distanciada das alegrias e das dores do mundo,
sem que por isto se afogue na pura terrenalidade ou venha sufocada pelo
ativismo, uma vez que experimenta a realidade das condições humanas na sua
totalidade (...)”.
Se
a mística é essa “experiência holística da realidade”, o contemplativo é aquele
que “simplesmente vive”, assim como o peixe n´água
. A
contemplação é o exercício do respiro da vida, sem muitas complicações. Está
profundamente ligada à vida, em suas alegrias, esperanças e dificuldades. É a
espiritualidade que anima o caminho do contemplativo. Ela é como uma “carta de
navegação” na trajetória existencial do ser humano, que pode tornar-se um
contemplativo. A espiritualidade diz respeito à qualidade de vida e de ação, de
potencialidade de abertura ao ilimitado. Não está necessariamente ligada a uma
profissão de credo ou adesão religiosa, pois é um dado antropológico de base.
Todo ser humano vem habitado por sua condição finita, mas aberta ao mistério do
ilimitado e do infinito. A espiritualidade distingue-se da religião:
“Toda religião pertence, ao
menos em parte, à espiritualidade; mas nem toda espiritualidade é
necessariamente religiosa. Quer você acredite ou não em Deus, no sobrenatural
ou no sagrado, de qualquer modo você se verá confrontado com o infinito, a
eternidade, o absoluto – e com você mesmo”.
A
espiritualidade relaciona-se com “qualidades do espírito humano” que tocam sua
dimensão de profundidade. É dela que se irradiam os toques singulares do amor
desinteressado, da gratuidade, atenção, cortesia, compaixão e hospitalidade. Os
indivíduos podem desenvolver tais qualidades, “até mesmo em alto grau, sem
recorrer a qualquer sistema religioso ou metafísico”
. A
espiritualidade aciona o movimento desses valores fundamentais, que são
irradiados por todo canto. Ela é um exercício de vida e experimentação.
Deixar-se habitar pela atmosfera da espiritualidade é criar um espaço garantido
e especial para as fragrâncias da profundidade. Os frutos vão surgindo naturalmente,
pois dali se irradiam serenidade, vitalidade e entusiasmo. A paz também é um
dos efeitos imediatos desse novo modo de ser, uma paz que brota da
profundidade:
“Dessa paz espiritual a
humanidade precisa com urgência. Ela é a fonte secreta que alimenta a paz
cotidiana em todas as suas formas. Ela irrompe de dentro, irradia em todas as
direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa
vontade. Essa paz é feita de reverência, de respeito, de tolerância, de
compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério do
mundo. Ela alimente o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido,
de compreender e de ser compreendido, de perdoar e de ser perdoado”.
Passos da Espiritualidade
O
cultivo da espiritualidade, entendida como movimento e caminho para a
experiência do Real, exige do sujeito uma dinâmica particular de despojamento e
interiorização. Há que romper com um modo habitual de ser e deixar-se tocar
pelos apelos da profundidade. Num dos mais belos textos sobre a descrição dessa
viagem interior, o místico francês, Teilhard de Chardin (1881-1955) assinala
alguns dos passos que a presidem, com base em sua própria experiência interior.
Com a lâmpada na mão, Teilhard deixa a zona aparentemente clara de suas
ocupações do dia a dia e busca descer ao mais fundo de si mesmo, ao abismo
profundo de onde “emana confusamente” o seu poder de ação. Não se trata de uma
viagem tranquila, mas uma “saída” para dentro de si mesmo. Na medida em que se
distanciava das “evidências convencionais” que iluminam superficialmente a vida
social, sentia a insegurança de alguém que se escapa de si mesmo. Assinala que
a cada passo descido era um outro personagem que se revelava, e que fugia ao
controle. Sentia-se asfixiado pelo “abismo sem fundo” sob os passos inseguros,
mas que sinalizavam a onda de sua vida. Vale registrar a descrição do autor:
“Então, totalmente possuído
por minha descoberta, eu quis subir à luz, esquecer o inquietante enigma no
confortável convívio das coisas familiares, recomeçar a viver na superfície,
sem sondar imprudentemente os abismos. Mas eis que, sob o espetáculo mesmo das
agitações humanas, vi aparecer de novo, aos meus olhos prevenidos, o
Desconhecido, do qual eu queria escapar (...). Mas era o mesmo mistério: eu o
reconheci. Nosso espírito se perturba quando procuramos medir a profundidade do
mundo abaixo de nós (...). Após a consciência de ser um outro – e um outro
maior do que eu -, uma segunda coisa me deu vertigem: é a suprema
improbabilidade, a formidável inverossimilhança de encontrar-me existindo, no
seio de um mundo bem sucedido. Nesse momento, como qualquer um que quiser fazer
a mesma experiência interior, eu senti pairar sobre mim a angústia essencial do
átomo perdido no universo (...). E, se alguma coisa me salvou, esta foi
entender a palavra do Evangelho – garantida por sucessos divinos -, que me
dizia do mais fundo da noite: ´Ego sum, noli timere`(´sou eu, não temas`)”.
Os
grandes mestres espirituais assinalam que essa viagem interior, apesar de árdua
e desgastante, revela surpresas inesperadas. Ela requer disposições precisas, e
um exercício radical de despojamento, humildade e purificação do coração. Não
há como viver a intensidade da experiência senão deslocando o ego de sua centralidade,
com a afirmação de sua vulnerabilidade e limite. Não há como tocar o fundo do
Mistério, sua centelha mais íntima, senão mediante uma “límpida humildade”,
como revela Mestre Eckhart. E sublinha de forma poética:
“As estrelas derramam toda
sua força no fundo da terra, na natureza e no elemento da terra, produzindo ali
o ouro mais límpido. Quanto mais a alma chega ao fundo e no mais íntimo de seu
ser, tanto mais a força divina nela se derrama plenamente e opera veladamente
de maneira a revelar grandes obras e a alma tornar-se bem grande e elevada no
amor de Deus, que se compara ao ouro límpido”.
Com grande
propriedade, o evangelho de Mateus sinaliza que os puros de coração verão a
Deus (Mt 5,8). E nesse “portal da misericórdia” é o Mistério mesmo quem se
derrama em vida e doação. Mas não é fácil “despir-se de tudo o que é acidental”
para viver esse despojamento espiritual. Há que recorrer a um guia que possa
orientar essa trajetória. Para achegar-se ao “ponto sutil da alma” é necessário
a presença desse pedagogo espiritual. Na tradição oriental fala-se na
insubstituível figura do guru, que ajuda o iniciante a trafegar nos caminhos da
iluminação. A tradição indica que quando o discípulo está pronto, o guru
apresenta-se automaticamente. É alguém familiarizado com o Mistério, que
conhece por experiência própria as veredas que o precedem e apontam. Pelos
meandros da profundidade, é capaz de iniciar o discípulo nesse caminho e de
suscitar em seu coração a inefável experiência por ele vivida
.
Há, porém, um momento que o discípulo segue o seu rumo sozinho. O guia faculta
o trabalho inicial, de disponibilização da alma para a ação do Espírito, mas o
caminho posterior é traçado por Presença ainda mais delicada:
“Na noite mais ditosa
em
segredo, pois que ninguém me via,
de
nada mais ciosa,
sem
outra luz ou guia,
se
não a que no coração ardia.
Essa
luz me guiava
mais
certa do que a luz do meio-dia,
lá
onde me esperava,
quem
eu bem conhecia,
num
sítio onde ninguém aparecia”.
A espiritualidade e o despertar
para o Real
A
espiritualidade é o caminho para atingir a experiência mística. A palavra
mística relaciona-se com mistério. O místico é aquele que faz a experiência e o
mistério é o seu objeto. Em sua derivação etimológica, a mística vem de myein, que traduz a idéia de fechar os
lábios ou os olhos. A mística lida com um mistério escondido, não revelado ou
comunicado, mas que suscita no buscador uma sede infinita. Na realidade, porém,
o mistério está envolvido nas coisas, nos pequenos sinais do cotidiano. É, na
verdade, o sujeito que não consegue captar sua Presença pois o seu coração está
enredado em nós que impedem a sua visão. É o trabalho da espiritualidade que
desata estes nós e faculta a “secreta mirada”. Tem razão Comte-Sponville quando
assinala que “é no mundo que o mistério é maior”. O Mistério habita e resplende
em todas as coisas, mas passa desapercebido ao olhar superficial:
“Na maioria das vezes,
passamos ao largo: somos prisioneiros das falsas evidências da consciência
comum, do cotidiano, da repetição, do já conhecido, do já pensado, da
familiaridade suposta ou comprovada de tudo, em suma, da ideologia ou do
hábito... ´Desencanto com o mundo`, dizem volta e meia. É que esqueceram de
olhar para ele ou porque o substituíram por um discurso. E aí, de repente, no
meio de uma meditação ou de um passeio, aquela surpresa, aquele deslumbramento,
aquela admiração, aquela evidência: existe alguma coisa, em vez de nada!”
Com
o avanço da “modernidade moderna”, enredada num ego auto-centrado, foi se perdendo
o “sentido da maravilha”, como salientou com acerto Abraham Heschel. E isso é
alarmante, também para o estado da temperatura vital. Não é por falta de
informação que sofre a humanidade, mas por falta de maravilhamento. É a
maravilha o que há de mais íntimo e misterioso. Trata-se da “única bússula que
encaminha ao pólo do significado”
.
Daí a fundamental importância que deve ser dada à atenção: a atenção ao tempo,
aos pequenos sinais do cotidiano, à vida como um todo. A atenção situa o
sujeito em estado de “espera”, aberto ao estupor e às surpresas da vida. Ela
“consiste em suspender o pensamento, em deixá-lo disponível, vazio e penetrável
ao objeto”. A atenção prepara o sujeito para o “toque da centelha”, em estado
desarmado para acolher desnudamente o mistério da verdade, que é dom
.
Em linda carta escrita a Joë Bousquet, em
abril de 1942, Simone Weil sublinhou que a atenção “é a forma mais rara e mais
pura da generosidade”
.
A
atenção verdadeira revela os meandros inusitados do Mistério que está em toda
parte. O que se requer é uma “educação do olhar”. É o primeiro e decisivo passo
para sentir apaixonadamente o tempo, como indicou Teilhard de Chardin. De fato,
“nada é profano, aqui em baixo, para quem sabe ver”
.
O desafio está em “libertar-se do conhecido” para vislumbrar o Real. Tudo é
muito simples, e é belo por ser simples. Há algo de sagrado na “imanensidade”,
na espiritualidade da imanência, que brilha no que há de mais banal e delicado:
“Experiência banal, experiência familiar? Sim, mas que é ainda mais
perturbadora, quando nos permitimos mergulhar nela, nos abandonar nela, nos
perder nela. O mundo é nosso lugar; o céu, nosso horizonte; a eternidade, nosso
cotidiano”
.
No
coração animado pelo toque da espiritualidade o que é simples ganha uma
dimensão inusitada. Todo o universo se revela, de repente, grávido de Deus. As
coisas, em sua simplicidade, que escapam normalmente da atenção, ganham uma
fisionomia nova: é a flor no campo, a brisa suave, o voo do pássaro, o sorriso
da criança, o orvalho da manhã. Elas estão sempre ali, à alçada da vista, mas
distantes da atenção. E, de repente, as coisas assim banais podem tornar-se “o
ponto focal de uma concentração intensa, capturar a atenção num nível anormal”,
inaudito, favorecendo a abertura de uma nova dimensão, completamente distinta.
É a experiência que Dostoievski favorece ao leitor, em passagem singular de sua
obra
Memória da casa dos mortos,
comentada pelo filósofo da Escola de Kyoto, Keiji Nishitani. As mesmas coisas
reais apresentadas ao olhar, ganham uma nova dimensão: “Ele viu as mesmas
coisas reais que todos nós vemos, mas o significado de sua realidade e o
sentimento do real que nelas experimentou, percebendo-as como reais, são
qualitativamente distintas. E justamente por isso ele pode esquecer a sua
´mísera condição`e abrir os olhos para o ´mundo prenhe de Deus`”
.
Confome Nishitani, há uma “ordem mística” presente em todas as coisas, e que
pode ser despertada no “profundo sentimento da realidade das coisas
cotidianas”. É o desafio espiritual de adentrar-se na sua realidade, penetrar
na sua espessura. Mas isto é raro, embora fundamental: “É extremamente raro
para nós ´fixar nossa atenção` nas coisas de modo a nelas nos perder ou, em
outras palavras, tornar-se as coisas que olhamos”
.
Há uma sólida barreira que separa o sujeito do objeto, e isto porque as coisas
são sempre vistas pela perspectiva do “si”, do sujeito ego-centrado
.
A espiritualidade faculta a emergência de uma “subjetividade elemental” que
nasce da morte do eu ego-centrado, abrindo o espaço para uma nova e secreta
mirada.
Há
em todo místico um “desaforado amor pelo todo”, uma sede irremovível de
penetrar os umbrais da vida, de adentrar-se nas entranhas do real. É habitado
pela mesma voracidade da borboleta que devora o seu casulo para poder alçar
voo. Na bela visão da filósofa María Zambrano, o místico é alguém que realizou
“a mais fecunda destruição de si mesmo, para que neste deserto, neste vazio,
venha a habitar por inteiro outro; colocou em suspenso sua própria existência
para que esse outro resolva nele existir”
.
Trata-se, porém, de uma destruição criadora. Esta voracidade de existir, de
encontrar no tempo a “presença e a figura”, não lança o místico para fora de
seu lugar, mas o envolve ainda mais fundo em sua espessura, nas entranhas da
história. O que ocorre com o místico, trabalhado pela espiritualidade, não é um
aniquilamento dos sentidos, mas uma radical transformação. A mudança interior
redimensiona a paisagem:
“Os sentidos vêm, sim,
destruídos, mas somente na sua forma normal, para então ser reconduzidos –
através de recôndidos caminhos a nós desconhecidos – a uma superior agudeza e a
uma união entre si, e deles com a inteligência, que produz uma percepção mais
intensa e total, um abraçar a realidade e penetrá-la”.
A fragrância da espiritualidade
Em
reflexão realizada em março de 1928, Gandhi situou de forma exemplar os efeitos da espiritualidade sobre o tempo e
a história. É pela fragrância da espiritualidade que se consegue captar o seu
significado e valor. A espiritualidade autêntica provoca uma inserção distinta
na vida. Gandhi sinaliza:
“A comprovação real da
verdade de uma religião é a fragrância de espiritualidade, do amor, do
contentamento, da paz reais, e que tais sentimentos podem emanar daqueles que
se atêm àquela religião. E, sem isso, nosso credo e nossas profissões e
pregações desse credo, até mesmo nossos
cultos e preces, não levarão ninguém a ver que nós conhecemos ´um segredo do
Senhor`”.
Num
dos livros que mais inspirou os místicos cristãos, o Cântico dos cânticos, há uma rica passagem onde o amado leva a
amada à adega, que é a casa do vinho, e lá anuncia o seu amor. E a amada,
embevecida e embriagada pelo dom da entrega, não consegue vislumbrar senão o
amor: “Levou-me ele à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor” (Ct
2,4). Essa passagem inspirou João da Cruz em seu Cântico Espiritual. É na “adega interior” que se dá o momento mais
íntimo da união amorosa, o encontro profundo entre o amado e a amada:
“E na adega interior
do Amado
meu bebi; quando eu saía,
de
tanto resplendor,
já
nada mais sabia
e
meu gado perdi, que antes seguia.
Ali
meu deu o seio,
ditando-me
ciência saborosa,
e
dei-me sem receio,
oferta
dadivosa,
e
ali lhe prometi ser sua esposa”.
Na
mais íntima adega ocorre o grau mais extremo do amor e a comunicação mais
sublime do dom inefável do Amado. É o momento onde “a alma se transforma toda
em Deus”, bebendo de seu Deus. Ao sair dessa “borracheira” ela, a amada, tudo
esquece, e a razão de sua vida doravante será o amor:
“Minha
alma ao bem Amado
voltou-se,
dedicada, a seu serviço.
Não
guardo mais o gado
nem
mais tenho outro
ofício,
pois
é somente amar meu exercício”.
Temos
aqui um exemplo claro da fragrância da espiritualidade. A amada sai da adega
revestida da substância do amor, ou seja, a experiência espiritual mais íntima
provoca uma mudança no exercício da vida. A
conversio
cordis provoca a
conversio morum,
ou seja, a conversão do coração leva a uma mudança de conduta. O estado mais
profundo de união mística não tira o sujeito do mundo, isolando-o em
experiências extraordinárias, mas joga-o novamente na vida diária, animado,
porém, com uma nova perspectiva e visada
.
A partir desta “subida experiência” é a vida mesma que em seu conjunto se transforma
e a mística ganha uma dimensão terrenal. Dá-se aqui o que Karl Rahner nomeou
como “mística da cotidianidade”, ou também de “mística de olhos abertos”.
Também
Teresa de Ávila, ao traçar os passos do itinerário espiritual em suas Moradas, sinaliza a dimensão e
importância das obras no caminho onde se alcança a união. Indica, com vigor,
que o essencial não está nas exterioridades das orações “encapotadas”, mas no
exercício efetivo do amor. E adverte:
“Não, irmãs, não; o Senhor
quer obras. Se vedes uma enferma a quem podeis dar algum alívio, não vos
importeis em perder essa devoção e tende compaixão dela. Se ela sente alguma
dor, doa-vos como se a sentísseis vós. E, se for necessário, jejuai para que
ela coma; não tanto por ela, mas porque sabeis que o vosso Senhor deseja isso”.
A
espiritualidade é uma fonte poderosa que se irradia pela vida, produzindo
delicadeza, cortesia, serenidade e paz. Ela conforma um modo de ser, uma
atitude de base que se insere em cada momento da vida cotidiana:
“Mesmo dentro das tarefas
diárias da casa, trabalhando na fábrica, andando de carro, conversando com os
amigos, vivendo a intimidade com a pessoa amada, a pessoa que criou espaço para
a profundidade e para o espiritual está centrado, sereno e pervadido de paz. Irradia
vitalidade e entusiasmo, porque carrega Deus dentro de si. Esse Deus é amor que
no dizer do poeta Dante move o céu, todas as estrelas e o nosso próprio
coração”.
A
experiência da gratuidade do Mistério, de sua presença amorosa, confere um
significado particular à atuação prática. Isto foi verificado de forma exemplar
por Eckhart em sua reflexão sobre Marta e Maria. O seu carinho especial com
Marta revela o sentido mais nobre dessa mística do cotidiano. Assinala a
nobreza da obra no tempo, tão nobre quanto qualquer outra união com Deus: ela
pode “dispor tão adequadamente quanto a coisa mais sublime que possa nos
acontecer”
. A
profundidade da ação de Marta explica-se por sua condição existencial: ela
habita no que é essencial. As obras fluem, naturalmente, de um ser espiritual.
Marta é alguém que tem um “fundo da alma bem exercitado”
,
algo particularmente caro a Eckhart, daí sua predileção por ela.
O
viver a vida com a animação do Espírito foi também percebido com vitalidade na
teologia latino-americana. Trata-se de uma das lições importantes captadas pela
teologia da libertação a partir do início dos anos 1980: a necessidade de uma
“libertação com espírito”. Em sua obra de espiritualidade, Beber no próprio poço, Gustavo Gutiérrez toca com delicadeza e
propriedade nessa questão:
“Fomos compreendendo,
também, que o encontro pleno e verdadeiro com o irmão exige que passemos pela
experiência da gratuidade do amor de Deus. Assim, desprendidos de nós mesmos,
chegamos ao outro libertos de toda tendência de impormos uma vontade que lhe
seja alheia, respeitosos de sua própria personalidade, de suas necessidades e
aspirações. Dado que o próximo é o caminho para chegarmos a Deus, a relação com
Deus será a condição necessária para o encontro, para a verdadeira comunhão com
o outro”.
Conclusão
Todo
esse itinerário da reflexão serviu para mostrar a importância fundamental da
espiritualidade nos tempos atuais. O objetivo central foi evidenciar o papel
pedagógico da espiritualidade, ou seja, sua dimensão iluminadora, edificadora e
orientadora. A espiritualidade tem esse dom particular de encaminhar a vida do
sujeito numa perspectiva distinta, favorecendo um novo olhar sobre o tempo, uma
atenção particular ao cotidiano e um exercício de amor novidadeiro. Cabe também
perguntar, ao final, sobre o lugar de uma espiritualidade da pedagogia. Essa é
uma tarefa que se impõe, com urgência, aos educadores. A pedagogia tem também
essa função maiêutica, de favorecer o nascimento e a afirmação de novos
sujeitos, com uma perspectiva distinta de sentir o tempo e sobre ele atuar.
Parafraseando o grande poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade, há que ter
“duas mãos e o sentimento do mundo”.
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