Névoa e Assobio
Existirmos, a que será que se destina
Caetano Veloso
Faustino Teixeira
Uma das grandes alegrias que
tive nessas semanas foi o convite maravilhoso de Bia Dias para fazer a
apresentação de seu livro. Que desafio! Acabo de ler o texto completo, que vem
contemplado com um título maravilhoso: Névoa e Assobio (Relicário Edições, com desenhos de Julia Panadés).
Nesses dias venho
ruminando cada passagem, cada postagem, e tudo traz recordação, mas também a
força e a garra de uma mulher que veio reencantada por uma criança que viveu
apenas cinco dias, mas cinco dias que preencheram de luz tantas vidas, não só a
da Bia ou de Maurício. Também a minha.
Lendo toda essa memória sinto que saio
reencantado. Retomo aqui uma passagem linda da escrita de Bia, datada de 26 de
agosto de 2014. Ela passava por momentos muito difíceis, acompanhando aquela
criança frágil na UTI Neonatal. De repente, a enfermeira responsável pelo aleitamento
materno guia Bia com seus braços firmes para as máquinas que iriam extrair o
seu leite e animar Caetano. A enfermeira olha para Bia e diz: "Você já
parou para pensar na beleza que há nesse seu esforço insistente de querer
passar 1 ml de leite pela sonda para seu filho?" Diante daquela acolhida,
Bia responde com o silêncio, mas também com o encantamento de uma presença que
fala. E Bia assinala refletindo sobre aquele gesto: "Eu não tinha nenhuma
garantia, mas ainda assim, fazia aquilo com uma força impressionante. Talvez o
sentido da vida seja esse esforço insistente de acreditar na potência do
mínimo, na força do gesto, no amor levado ao último extremo dessa perspectiva
poética e mística: uma gota de leite que se torna oceânica".
Refleti muito
com Bia sobre tudo o que ela passou, e mencionei sempre a presença de uma força
mística que a fortalecia para lidar com essa experiência abissal. Ela mesma se deu conta, em diálogo comigo no Face, que vivenciou uma experiência mística.
Reconheceu que "Caetano nasceu de uma série de experiências místicas desde
o início", desde a "gota improvável". E ele, Caetano, pôde
acompanha-la "numa solidão linda, que não fazia laço", num silêncio
partilhado, interrompido pelo intenso e impressionante esforço da pequena
carícia, pontuada pelo enlaçar dos dedinhos. Como tão bem sublinhou Bia,
Caetano veio, ainda que por pouco tempo, para "inundar os dias com outra
dimensão da existência". Veio como um "enigma", como um
"clarão" fugaz, mas que iluminou o universo inteiro. Foi um milagre
ter sobrevivido ao parto, mas nasceu e deixou raízes vivas.
Linda a forma como
Bia descreveu o seu nascimento, embalado antes pelo mantra poderoso:
"nasce filho, nasce filho". E recorda: "E ele nasceu em mim
naqueles cinco dias, nascia todo dia mais e mais". E depois partiu,
deixando o rastro de uma dor aguda e lancinante, que jamais se apagou. Mas
também o alívio de ter propiciado o dom da vida em alguém: ele se fez carne em
Bia, para sempre. E o relato continua: "Dizem que quem está perto da morte
sabe o essencial: pois ele segurou minha mão naquele esforço absurdo e me
acariciou, depois tentou enlaçar os dedos. Deixou esse nó na carne em mim, um
laço que não me larga. Aquele momento posso chamar de o momento onde reinventei
o ´espiritual`".
E agora a canção de Caetano vem retomada de forma linda,
num livro tecido com ternura e vigor. Como diz Bia, "Meu filho está aí,
entre as coisas, nas minhas escolhas, na minha escrita, no meu sorriso".
Sem dúvida, uma história sublime, de espanto e alegria, de névoa e assobio.
(postado no Face em 16/06/2015)
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