Apresentação – Rumi e Shams
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
A singular mística beguina,
Marguerite Porete (1260-1310), dizia em sua obra O espelho das almas simples que os rios perdem seu nome quando
retornam ao mar. Assim também ocorre com as almas que vivem a intensidade da
experiência do Amado. Elas perdem seus nomes e vivem a unidade preciosa com
Aquele que habita no mais fundo de suas intimidades. É uma experiência difícil
de ser descrita, já dizia também Teresa de Ávila, como quando a água do céu
caindo sobre um rio se confunde totalmente com ele, a ponto de não haver mais
distinção; ou como se o mar inteiro penetrasse com vigor o rio, produzindo uma
vitalidade única que escapa a qualquer compreensão. Assim aconteceu com muitos
místicos em seu encontro com o Amado, muitas vezes facultado pela presença de
um “amigo de Deus” em seu caminho. Encontramos exemplos bonitos nesta direção,
como o de Francisco e Clara de Assis; João da Cruz e Teresa de Ávila; Henri le
Saux e Marc Chaduc e outros.
Um dos traços mais bonitos dessa
experiência do Mistério de Deus a partir de uma comunhão humana encontra-se no
percurso amoroso que uniu Rûmî e Shams de Tabriz a partir daquele outono de
1244 (ano 642 da Hégira). Importantes autores da tradição sufi, como Ibn´Arabî,
sublinham que a misericórdia de Deus irradia-se no mundo através da
generosidade. O Amado se espraia por toda parte no mundo sensível, através dos
aromas, dos sons, das cores e dos amigos. Não há como acessar o Mistério
diretamente, mas através de seus rastros no tempo e na história. A união de
Rûmî com Shams é descrita como o encontro de dois oceanos. O que se deu entre
eles, como assinala José Jorge de Carvalho, “foi algo extremamente raro, em que
duas pessoas conseguiram penetrar as esferas recôndidas da realidade
extra-sensorial e extra-racional, e ver juntos a mesma dimensão, o mesmo
espaço, a mesma fração da verdade absoluta”.
Foi um encontro regado de inspiração mútua, onde na intensidade da
experiência mística realizou-se a busca e o abandono nos braços do Amado.
Do calor desse encontro nasceu uma
obras mais vastas e impressionantes de poesia espiritual, as famosas odes
místicas de Rûmî, o Divan de Shams de
Tabriz, inteiramente consagrado à experiência do amor, que, para além de sua
manifestação terrestre, expressa a hipóstase do amor divino. Shams significou
para Rûmi não apenas um amigo qualquer, ou mediador da experiência do Mistério,
mas algo ainda mais sublime: a manifestação profunda da Divindade sempre maior.
Em seus ardentes versos, Rûmî fala desse Sol que brilha no rosto do amigo, que
suscita a presença da luz no mundo inteiro; uma presença sem a qual
interdita-se a experiência do mar ou a contemplação da lua. Shams é sol, mas
também lua: uma lua que desce e fita o amigo, revelando-lhe as belezas do
Amado:
“Como o falcão que arrebata o pássaro,
“Como o falcão que arrebata o pássaro,
essa lua agarrou-me e cruzou o céu.
Quando olhei para mim, já não me vi:
naquela lua meu corpo se tornara,
por graça, sutil como a alma.
Viajei então em estado de alma
e nada mais vi senão a lua,
até que o segredo do saber divino
me foi por inteiro revelado:
as nove esferas celestes fundiram-se
na lua
De forma assim tão linda e singela a
poesia do místico afegão traduz o caminho da união mística e encanta a todos os
que se deparam com ela. Na sua raiz, o encontro com o amigo que lhe revela as
belezas do Amado.
O presente livro de Giselle Guilhon Antunes,
que é parte de sua pesquisa pós-doutoral no PPCIR da UFJF, busca registrar para
os leitores brasileiros os passos que marcaram esse encontro de dois grandes
mestres do sufismo, favorecendo um campo singular de pesquisa e reflexão sobre
temas que ainda são fragmentários no país. Trata-se de uma obra introdutória,
de fácil leitura, e fascinante, propiciando também o acesso ao pensamento de
Shams de Tabriz, o que é novidade entre nós. Mas sobretudo o convite para tomar
contato com a preciosidade de uma reflexão mística gestada num dos campos mais
criativos e generosos, que é o sufismo. Ninguém melhor que Rûmî para indicar a
riqueza que esse contato propicia a quem se depara com ele:
“Se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que,
depois que deitei meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram
frescos e verdes. Vou então me colocar a sua sombra”.
(Apresentação
do livro de Giselle Guilhon, Rumi e Shams – Notas biográficas. São Paulo/Juiz
de Fora: Fonte Editorial/PPCIR, 2015, p. 7-11)
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