segunda-feira, 1 de junho de 2015

Apresentação: Livro de Giselle Guilhon - Rumi e Shams

Apresentação – Rumi e Shams

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

            A singular mística beguina, Marguerite Porete (1260-1310), dizia em sua obra O espelho das almas simples que os rios perdem seu nome quando retornam ao mar. Assim também ocorre com as almas que vivem a intensidade da experiência do Amado. Elas perdem seus nomes e vivem a unidade preciosa com Aquele que habita no mais fundo de suas intimidades. É uma experiência difícil de ser descrita, já dizia também Teresa de Ávila, como quando a água do céu caindo sobre um rio se confunde totalmente com ele, a ponto de não haver mais distinção; ou como se o mar inteiro penetrasse com vigor o rio, produzindo uma vitalidade única que escapa a qualquer compreensão. Assim aconteceu com muitos místicos em seu encontro com o Amado, muitas vezes facultado pela presença de um “amigo de Deus” em seu caminho. Encontramos exemplos bonitos nesta direção, como o de Francisco e Clara de Assis; João da Cruz e Teresa de Ávila; Henri le Saux e Marc Chaduc e outros.

            Um dos traços mais bonitos dessa experiência do Mistério de Deus a partir de uma comunhão humana encontra-se no percurso amoroso que uniu Rûmî e Shams de Tabriz a partir daquele outono de 1244 (ano 642 da Hégira). Importantes autores da tradição sufi, como Ibn´Arabî, sublinham que a misericórdia de Deus irradia-se no mundo através da generosidade. O Amado se espraia por toda parte no mundo sensível, através dos aromas, dos sons, das cores e dos amigos. Não há como acessar o Mistério diretamente, mas através de seus rastros no tempo e na história. A união de Rûmî com Shams é descrita como o encontro de dois oceanos. O que se deu entre eles, como assinala José Jorge de Carvalho, “foi algo extremamente raro, em que duas pessoas conseguiram penetrar as esferas recôndidas da realidade extra-sensorial e extra-racional, e ver juntos a mesma dimensão, o mesmo espaço, a mesma fração da verdade absoluta”.  Foi um encontro regado de inspiração mútua, onde na intensidade da experiência mística realizou-se a busca e o abandono nos braços do Amado.

            Do calor desse encontro nasceu uma obras mais vastas e impressionantes de poesia espiritual, as famosas odes místicas de Rûmî, o Divan de Shams de Tabriz, inteiramente consagrado à experiência do amor, que, para além de sua manifestação terrestre, expressa a hipóstase do amor divino. Shams significou para Rûmi não apenas um amigo qualquer, ou mediador da experiência do Mistério, mas algo ainda mais sublime: a manifestação profunda da Divindade sempre maior. Em seus ardentes versos, Rûmî fala desse Sol que brilha no rosto do amigo, que suscita a presença da luz no mundo inteiro; uma presença sem a qual interdita-se a experiência do mar ou a contemplação da lua. Shams é sol, mas também lua: uma lua que desce e fita o amigo, revelando-lhe as belezas do Amado:

            “Como o falcão que arrebata o pássaro,
            essa lua agarrou-me e cruzou o céu.
            Quando olhei para mim, já não me vi:
            naquela lua meu corpo se tornara,
            por graça, sutil como a alma.

            Viajei então em estado de alma
            e nada mais vi senão a lua,
            até que o segredo do saber divino
            me foi por inteiro revelado:
            as nove esferas celestes fundiram-se na lua
            e o vaso do meu ser dissolveu-se inteiro no mar”.[1]

            De forma assim tão linda e singela a poesia do místico afegão traduz o caminho da união mística e encanta a todos os que se deparam com ela. Na sua raiz, o encontro com o amigo que lhe revela as belezas do Amado.

            O presente livro de Giselle Guilhon Antunes, que é parte de sua pesquisa pós-doutoral no PPCIR da UFJF, busca registrar para os leitores brasileiros os passos que marcaram esse encontro de dois grandes mestres do sufismo, favorecendo um campo singular de pesquisa e reflexão sobre temas que ainda são fragmentários no país. Trata-se de uma obra introdutória, de fácil leitura, e fascinante, propiciando também o acesso ao pensamento de Shams de Tabriz, o que é novidade entre nós. Mas sobretudo o convite para tomar contato com a preciosidade de uma reflexão mística gestada num dos campos mais criativos e generosos, que é o sufismo. Ninguém melhor que Rûmî para indicar a riqueza que esse contato propicia a quem se depara com ele:

“Se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram frescos e verdes. Vou então me colocar a sua sombra”.

(Apresentação do livro de Giselle Guilhon, Rumi e Shams – Notas biográficas. São Paulo/Juiz de Fora: Fonte Editorial/PPCIR, 2015, p. 7-11)




[1] Jalal ud-Din RUMI. Poemas místicos. São Paulo: Attar, 1996, p. 53 (A lua de Tabriz).

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